DEU NO JORNAL

A RESISTÊNCIA: UMA HISTÓRIA SOBRE A LIBERDADE

Roberto Motta

Vladimir Lenin representado num cartaz de Valentin Shcherbakov em 1928: décadas após o líder comunista, o Estado tirânico ressurgiu para supostamente “proteger” a democracia.

Vladimir Lenin representado num cartaz de Valentin Shcherbakov em 1928: décadas após o líder comunista, o Estado tirânico ressurgiu para supostamente “proteger” a democracia

Há muito tempo escutei de um jornalista americano uma história que jamais esqueci. O nome dele era Larry. Fomos apresentados por um amigo em comum, que tinha acompanhado minha participação na criação do partido Novo (uma história que conto em detalhes no meu livro Os Inocentes do Leblon).

Estávamos em outra época. Não seria exagero dizer que vivíamos em outro mundo – um mundo onde liberdade era a regra, não a exceção. As exceções, na verdade, eram alguns poucos regimes ditatoriais na América Latina, leste da Europa, Oriente Médio e Ásia, que ainda se agarravam aos destroços de ideologias totalitárias ou ao fundamentalismo religioso para se manter no poder.

No resto do planeta, naquele intervalo de luz, fazíamos a colheita da liberdade. A humanidade vivia um momento brilhante depois de uma sequência de sombras, e a luz prometia durar para sempre. Com a derrota do nazifascismo pelos países aliados na Segunda Guerra Mundial e o desmoronamento do muro de Berlim em 1989, nada havia no futuro da humanidade senão liberdade política eterna, construída sobre a democracia, e liberdade econômica garantida pelo modelo capitalista, com um mercado tão livre quanto possível.

Esse era o caminho. A certeza de sua inevitabilidade era tão grande que o cientista político Francis Fukuyama escreveu um livro com o título O Fim da História e o Último Homem, no qual argumentava que a difusão mundial das democracias liberais, do capitalismo de livre mercado e do estilo de vida ocidental, marcava o ponto final da evolução cultural e da luta política da humanidade.

Hoje nos surpreendemos com a ingenuidade desse pensamento. O mundo ao nosso redor é radicalmente diferente do mundo de apenas cinco anos atrás. Radicalmente é a palavra-chave.

Liberdade de expressão voltou a ser, inacreditavelmente, motivo de debate. A polícia do pensamento foi ressuscitada de várias formas e em vários lugares, sob o disfarce precário e quase sempre caricato do politicamente correto. O Estado tirânico ressurgiu para proteger a democracia. É tudo para seu bem.

Em países grandes ou pequenos, pobres ou desenvolvidos, republicanos ou parlamentaristas, pessoas voltaram a ser perseguidas, bloqueadas, censuradas, desmonetizadas, exiladas e presas apenas pelo crime inexistente de expressar sua opinião ou descrever a realidade como ela é.

Nada disso tinha acontecido ainda quando conversei com Larry, o jornalista americano, muitos anos atrás, em uma tarde de outono, em um restaurante em frente ao mar do Aterro do Flamengo. Larry me falou de seu trabalho e das viagens que fizera aos países da Cortina de Ferro, aqueles países do leste europeu que foram subjugados e dominados pela tirania soviética e pelos tanques do Exército Vermelho.

Nunca esqueci uma história em particular. Ela se passou na Polônia, na época em que o país era dominado pela ditadura comunista do general Jaruzelski. Larry visitava a Polônia para fazer contato com os grupos clandestinos que formavam a resistência, e que tentavam manter viva a ideia da liberdade que viria um dia, embora ninguém soubesse como ou quando.

Um desses grupos era formado apenas por um casal, marido e mulher. A tarefa deles era operar uma estação de rádio clandestina. Era uma tarefa arriscada. O governo tinha detectores que rastreavam a origem das transmissões; por isso eles nunca podiam transmitir por muito tempo do mesmo lugar. O casal chegava em um local, montava o equipamento, transmitia por alguns minutos e precisava desligar o transmissor, desmontar tudo e ir embora antes que a polícia política chegasse.

Como todos os ativistas clandestinos, o casal vivia a incerteza, a angústia e o medo de quem enfrenta um mecanismo do mal, muito maior e poderoso. Tudo ficava mais difícil porque, sob a mão de ferro comunista, que a todos silenciava, era impossível saber se as transmissões da rádio rebelde, feitas com tanto risco, eram ouvidas por alguém.

Em um dia de inverno, próximo do Natal, o casal transmitia do apartamento de uma família quando a angústia atingiu seu limite e transbordou em desespero. Sem que tivesse planejado, sem conseguir conter a sensação que lhe subia pelo peito, a mulher disse no microfone do rádio: “Se alguém estiver ouvindo essa transmissão, nos dê um sinal. Se você me escuta, acenda e apague a luz de sua casa”.

Depois desligou o aparelho e olhou para o marido, assustada com o que tinha feito e com a própria imprudência. Cansados, apoiando-se um no outro, o casal desmontou o equipamento e se despediu da família que os havia abrigado.

Era hora de enfrentar o frio e o medo. Estaria a polícia esperando por eles lá embaixo? Foi com esses pensamentos que o homem se encaminhou para a porta.

Mas ele foi detido pela mulher, que segurou seu braço. Gentilmente, ela o puxou para perto da janela. Lá fora, na noite escura e fria da Polônia comunista, as luzes de milhares de apartamentos estavam sendo acesas e apagadas, repetidamente.

DEU NO X

XICO COM X, BIZERRA COM I

MINHA TABACARIA

Todo o mistério que envolvia a tabacaria da Tabacaria de Pessoa foi desvendado em minuciosa e competente pesquisa de Dr. Zé Paulo (JC, 08.09.23). A verdade é que na Havaneza dos Retrozeiros um Alves lhe atendia e o deixava feliz com seus cigarros e cigarrilhas que, de tão prazeirosos, não lhe permitia perceber o estrago que produziria em seus pulmões (mais vale um prazer que um pulmão sadio, diria minha vó Mariquinha). Fernando comprava-os e voltava para seu quarto sem janelas no aguardo de Manassés, que lhe fazia a barba. Todo santo dia.

A BODEGA DE ‘SEU’ JÚLIO

Eu, adolescente, sem barba por fazer, escolhi a venda de seu Júlio, duas ruas atrás da minha, perto da Igreja e do colégio, para ser minha tabacaria, até porque, além das especiarias e condimentos comuns a uma bodega de bairro, era a única da região que vendia cigarros a ‘de menores’. Fumávamos escondidos de nossos pais, como rezava a cartilha dos bons adolescentes. Seu Júlio era o único que tinha coragem de transgredir a regra de não vender fumo aos ‘pirralhos’. Além do que, seu filho, Cauby, era nosso amigo de peladas (ainda hoje não sei se o seu nome foi em homenagem ao Cantor, famoso na época). Talvez por isso o perdoássemos e não levássemos a sério suas grosserias e indelicadezas. Usávamos a ‘elegância’ do fumo para ressaltar nossa macheza, para nos tornar adultos na aparência, e, principalmente, para exibição às menininhas nos ‘assustados’ da época.

CONTINENTAL E HOLLYWOOD

Parei de fumar faz 20 anos mas ainda hoje sonho com tabaco e vem-me à lembrança a figura baixinha e grossa do bodegueiro – físico compatível com seu proceder. Assim era seu Júlio, o da minha tabacaria, que não vendia cigarrilhas finas ou charutos, como as de Lisboa antiga que abastecia o Poeta lusitano, mas apenas cigarros Continental, Hollywood e BB, estes de qualidade inferior e, talvez por esta razão, mais baratos. Saudades da tabacaria. Da minha saudosa tabacaria, tão modesta quanto as letras que hoje arrumam meus textos.

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DEU NO X

PENINHA - DICA MUSICAL