DEU NO X

RLIPPI CARTOONS

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

PODERES E EMENDAS

A gente aprende na escola que o governo é dividido em três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Também nos ensinam que os tais poderes são “independentes e harmônicos” e que cada um têm uma função específica.

Claro que na prática a gente vê que não é bem assim: o Executivo gosta de legislar e de julgar no lugar do Judiciário; o Judiciário também gosta de legislar e de governar no lugar do Executivo; e o Legislativo gosta de brincar de Judiciário de vez em quando e de ser o Executivo de vez em sempre. Mas em uma coisa eles são bem harmônicos: todos eles querem manter-se no poder.

Um bom exemplo dos mecanismos que o poder usa para se perpetuar pôde ser visto nesta eleição:

Em 2019 nosso Legislativo aprovou uma emenda constitucional criando um novo tipo de emenda parlamentar – “emenda parlamentar” é o eufemismo para verba, dinheiro, grana. Mais especificamente, uma emenda é quando o Legislativo, cuja função deveria ser elaborar leis, se mete no trabalho do Executivo e diz para onde deve ir o dinheiro arrecadado dos nossos impostos. A novidade, identificada pelo código RP6, permite que um parlamentar ordene que uma determinada quantia seja transferida para um estado ou município sem especificar o destino ou finalidade da verba. É quase um “presente” do deputado para o prefeito. No dia-a-dia, o tal RP6 foi apelidado de “emenda pix”. Neste ano, o congresso distribuiu mais de 8 bilhões em emendas pix, a maior parte para municípios pequenos.

O resultado e a idéia por trás de tudo isso ficaram bem claros quando os resultados da eleição foram cruzados com os dados das emendas. Dos cem municípios que mais receberam emendas pix, em 66 deles a “situação” venceu a “oposição”.

Para detalhar mais: em 58 desses 100 municípios, o prefeito concorreu à reeleição, e 54 – mais de 90% – se reelegeram. Entre os demais 42, 12 prefeitos elegeram o sucessor. As três cidades que receberam as maiores verbas nesse método foram:

– Macapá (AP): recebeu 44,9 milhões; o prefeito se reelegeu com 85% dos votos.
– Coari (AM): recebeu 33,6 milhões; foi eleito o primo do atual prefeito.
– Coração de Maria (BA): recebeu 20,3 milhões; o prefeito se reelegeu com 67% dos votos.

Vale notar que as verbas recebidas por Coari e Coração de Maria correspondem a mais de mil reais por eleitor do município.

As emendas parlamentares são, desde o ano passado, o tema de uma acalorada disputa entre o congresso e o STF, mas tudo indica que após intensas negociações, os poderes independentes e harmônicos chegarão a um consenso que seja bom para todos. Para todos eles, naturalmente, não para nós contribuintes.

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DEU NO JORNAL

OS DONOS DA DEMOCRACIA

Marcel van Hattem

A Comissão de Constituição e Justiça ainda deliberava a sua pauta de PECs e projetos de lei limitando poderes dos ministros do Supremo Tribunal Federal e a imprensa já publicava as reações dos atingidos: “Não pode! Tem vício de iniciativa… matéria que trata de Poder Judiciário precisa vir do próprio Poder Judiciário!”. É o que teria dito, sob anonimato, um dos membros da Suprema Corte brasileira. Confirmando que nem de Constituição os ministros entendem mais, errou Sua Excelência: PEC alguma pode ser proposta pelo Poder Judiciário no Brasil.

A vitória parlamentar foi avassaladora na quarta-feira (9). As PECs aprovadas tratavam do fim das decisões monocráticas de ministros do Supremo suspendendo a eficácia de legislações aprovadas no Congresso Nacional (PEC 8/2021, de autoria do senador Oriovisto Guimarães, que relatei); e da possibilidade de o Congresso Nacional sustar decisões do STF que inovem ao criar novas normas gerais e abstratas – ou seja, que acabem usurpando do Congresso seu poder de legislar (PEC 28/2024, de autoria do deputado Reinhold Stephanes e relatada pelo deputado Luiz Philipe de Orleans e Bragança).

As duas propostas de emendas constitucionais apreciadas e aprovadas ontem pela CCJ nada mais são do que uma afirmação do Parlamento em defesa de sua principal função: a legislativa. Ter de reafirmar o óbvio é até esquisito, mas necessário. E outra obviedade ululante é a de que democracia não existe sem Parlamento e está em risco quando sua função principal é esvaziada ou usurpada por outro poder. Portanto, a defesa da prerrogativa parlamentar é também a defesa da democracia representativa e constitucional.

E fica mais esquisito ainda: Gilmar Mendes, em sessão do STF na tarde desta quinta-feira (10), decidiu declarar o contrário. Segundo Sua Excelência, é o STF quem garante a democracia no Brasil. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, foi na mesma linha ao afirmar que não se mexem em instituições que estão funcionando. Funcionando para quem? E democracia composta por quem? São eles, agora, os Supremos, os donos da nossa democracia e os iluminados guias das nossas instituições?

Os ministros do Supremo até podem sonhar com tais devaneios, mas a Constituição brasileira é clara no seu primeiro artigo: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Frise-se: eleitos ou diretamente. Não há nenhuma previsão de exercício de poder no Brasil fora os dois claramente expressos. Todo poder que não for exercido diretamente ou por meio dos representantes eleitos, é delegado por eles.

Se há um poder que está acima dos demais, portanto, não é o do STF, mas o do Congresso Nacional, eleito pelo povo. A ideia de que o Supremo é um poder moderador, ou um guardião da Constituição inquestionável, é inconstitucional e antidemocrática. É também uma afirmação soberba, arrogante e absolutamente equivocada. Os ministros do STF não são os donos da democracia e, a rigor, sequer têm a prerrogativa de qualificá-la e muito menos de tutelá-la!

A reação dos ministros do STF às atividades legislativas do parlamento brasileiro é, ela própria, uma desvirtuação do papel institucional da Suprema Corte. As críticas que fazem ao Parlamento, portanto, muito melhor caberiam se feitas diante de um espelho. Não, o STF não é o dono da democracia. A democracia é o governo do povo. E, no Brasil, o povo governa diretamente ou por meio de seus representantes eleitos. É o que diz a Constituição, não importa o que digam os atuais ministros do STF.

DEU NO JORNAL

VIOLANTE PIMENTEL - CENAS DO CAMINHO

UMA VIAGEM ATRAPALHADA

Íamos, eu e minha filha Diana, em outubro de 2013, ao XXXIX CONGRESSO NACIONAL DOS PROCURADORES DE ESTADO, a ser realizado em Porto de Galinhas (PE), cujo tema era:

“O Advogado público, as funções da cidadania e os 25 anos da Constituição de 1988. Porto de Galinhas – PE- Outubro de 2013.”

Preferimos ir de táxi, pois tenho pavor a viajar de avião.

Sabendo disso, um casal amigo nosso, me vendeu a ideia de contratar para nos levar a Porto de Galinhas, um excelente taxista, Seu Radir, da amizade dos dois, que eram seus compadres. Apesar de eu não conhecer ainda o motorista, aceitei viajar com ele, para Porto de Galinhas.

Eles mesmos telefonaram para Seu Radir para que eu falasse com ele e o contratasse para a esperada viagem.

Acertados o preço e o horário, no sábado, às sete horas da manhã, estava o táxi de Seu Radir na porta do edifício em que moramos, para nos levar a Porto de Galinhas.

Muito educado, o motorista se desculpou porque o carro não era novo, mas o importante, para mim, é que ele tivesse experiência com estrada e fosse cuidadoso.

Colocamos a nossa bagagem na mala do veículo e nos sentamos no banco de trás, muito mal acomodadas, tendo entre nós uma grande ampola portando combustível (gás), o que nos assustou.

Não gostei de viajar ao lado dessa ampola de combustível. Tive medo que explodisse. Mas, diante das excelentes informações que nossos amigos nos tinham dado sobre o motorista, procurei me controlar. Iniciada a viagem, me benzi e fechei os olhos por alguns minutos, pedindo a Deus para fazermos uma ótima viagem. Quando abri os olhos, estranhei a estrada que estávamos trafegando, pois o motorista não estava seguindo pela: BR 101.

Perguntei:

– Por que o Senhor não está indo pela BR. 101?

Muito calmo, o motorista respondeu que estava indo pela estrada certa e tinha muita experiência em viagens. Disse que o caminho certo para GALINHOS, perto de Macau (RN), era o que ele estava fazendo.

Fiquei gelada de raiva.

Perguntei o que tinha a ver Porto de Galinhas em Pernambuco, com Galinhos (RN).

O homem mudou de cor. Havia confundido os dois lugares e já estava perto de Galinhos.

Pedi imediatamente para voltar a Natal, para eu contratar um outro motorista que nos levasse a Porto de Galinhas.

O taxista chorou e garantiu que já tinha ido diversas vezes a Porto de Galinhas.

Apenas, dessa vez, sem querer, tinha se equivocado, e entendeu que a nossa viagem seria para Galinhos (RN).

Fiquei furiosa e pedi para voltar para Natal, pois o trato que eu tinha feito com ele era para nos leva a Porto de Galinhas, em Pernambuco.

Realmente, eu o tinha contratado para nos levar a Porto de Galinhas (PE), para a abertura do Congresso de Procuradores do Estado, que seria á noite.

Ao ver o equívoco que havia cometido, o motorista implorou para que eu o desculpasse e permitisse que ele retornasse e seguisse viagem para Porto de Galinhas.

Como eu já tinha pago o hotel e a nossa inscrição, concordei em continuar a viagem com o mesmo taxista.

Superado o problema do equívoco, prosseguimos viagem para Porto de Galinhas, o que durou oito horas.

Depois de duas horas de viagem, pedi ao motorista que ligasse o som do carro e pusesse o CD novo de Chico Buarque que eu levava na bolsa. Ele suspirou e respondeu:

– Como seria bom que isso fosse um som, meu Deus! Mas, de som, só tem a tampa!

E continuou:

– Esse carro (Corsa Classic) faz parte da “frota” de táxis de um conhecido vereador de Natal, e faz dois anos que o som quebrou-se. Ele diz ter levado o som para consertar, e até hoje não trouxe de volta.

Resultado: Fomos de Natal a Porto de Galinhas, sem, ao menos, um rádio para nos distrair, e com um precário ar condicionado.

Ainda bem que o encontro de Procuradores e o Congresso foram uma maravilha, e o show de encerramento com Alceu Valença compensou a viagem.

Como “castigo”, o tal vereador de Natal, dono da frota de táxis, nunca mais conseguiu se reeleger. Ainda se candidatou este ano, mas obteve pouquíssimos votos.

LAUDEIR ÂNGELO - A CACETADA DO DIA

MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

A CARTA DO RÉU (UM CASO DE PERDÃO JUDICIAL EM TRÁFICO INTERNACIONAL)

Remexendo em meus arquivos no Google Drive, encontrei recentemente uma sentença que proferi em agosto de 2013, na qual utilizei um instituto que, se não me falha a memória, só apliquei aquela vez, nos meus (até agora) 23 anos de magistratura: o perdão judicial.

Foi em um caso de tráfico internacional de drogas. Ao tentar embarcar do Brasil para um país da Europa, o rapaz foi flagrado com mais de 20Kg de cocaína na bagagem.

Poderia ser apenas a prisão de mais uma “mula”, como acontece tantas vezes nos aeroportos internacionais do Brasil, não fosse o fato de o flagranteado ter resolvido colaborar com as investigações. Ainda no aeroporto, passou aos policiais federais informações precisas e detalhadas sobre aquela remessa ilegal.

E a colaboração deu resultado. Com base nas informações por ele prestadas, outras duas pessoas foram presas em flagrante, apontadas como responsáveis pela preparação da mala que ocultava a droga. Objetos aparentemente utilizados no crime foram apreendidos e se tornaram provas nos autos.

Ao final do processo, condenei os três, mas concedi o perdão ao colaborador.

Juridicamente, o caso tinha uma peculiaridade interessante, que era a necessidade de definir se seria permitido o perdão judicial em caso de tráfico internacional. Um aparente conflito entre a Lei 9.807/1996, que regula o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (sim, isso existe no Brasil) e a Lei 11.343/2006, que trata do tráfico de drogas.

Segundo a Lei 9.807/1996, “poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal” (art. 13).

Já a Lei 11.343/2006 não prevê perdão, mas a redução da pena, dispondo que “o indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços” (art. 41).

A Lei 12.850, que tempos depois passaria a detalhar minuciosamente a colaboração premiada, havia sido publicada no dia 5 daquele agosto de 2013, mas só entraria em vigor 45 dias depois. Assim, não foi considerada na discussão.

Refleti sobre o caso, ponderei suas circunstâncias e, como já anunciado desde o título, concedi o perdão judicial. Na sentença, escrevi:

(…) tenho para mim que a aplicação dos benefícios estabelecidos pela lei que instituiu a delação premiada – Lei 9.807/1996 – deve ser a mais ampla possível, alcançando a mais variada gama de delitos. Não faz sentido dar interpretação restritiva a uma lei cuja finalidade primeira é o incentivo à colaboração com a atuação estatal de repressão à criminalidade organizada, criando inclusive toda uma estrutura de proteção aos colaboradores, ocultando-lhes inclusive a identidade.

No caso do tráfico transnacional de drogas, qualquer juiz com alguma experiência em varas criminais sediadas em cidades com aeroporto internacional sabe que a quase totalidade das pessoas presas nos aeroportos transportam mercadoria ilícita que não lhes pertence. O silêncio das chamadas “mulas”, entretanto, quase sempre inviabiliza que se identifiquem os verdadeiros donos da droga.

Diante de tal realidade, entendo que, somente se a Lei 11.343/2006 vedasse expressamente a aplicação do perdão judicial previsto na Lei 9.807/1996 é que se poderia cogitar de sua inaplicabilidade, não sem antes se perquirir de sua constitucionalidade, em face do princípio da isonomia.

Mas além do aspecto jurídico, esse caso tem um lado humano bem interessante.

Entre a prisão do rapaz e a decisão que o libertou, houve toda a instrução do processo, que durou um semestre inteiro. Nesse ínterim, havia uma série de cuidados para que sua vida não corresse risco. Delatores não são muito populares nas prisões.

Recordo que a administração do presídio certa vez chegou a cogitar a sua acomodação na ala dos evangélicos, mas mesmo ali ele correria riscos em razão de sua formação espírita.

Apesar dessas preocupações com a integridade física do rapaz, lembro que, na hora de assinar o alvará de soltura, fiquei uns longos minutos refletindo sobre o fato de estar devolvendo às ruas alguém que havia tentado sair do país com mais de 20Kg de cocaína.

O fato de estar convicto dos fundamentos jurídicos de uma decisão não impede o juiz de ter dúvidas quanto aos seus efeitos práticos.

E naquele dia, eu ainda não sabia que a sentença seria confirmada pelo TRF da 5ª Região e pelo Superior Tribunal de Justiça. Na verdade, só recentemente tomei conhecimento de que o processo havia chegado ao STJ, tendo o recurso especial sido julgado em maio de 2018. A Quinta Turma acatou a tese do cabimento do “instituto do perdão judicial no tráfico de drogas, desde que preenchidos os requisitos do artigo 13 da Lei n. 9.807/99”. Quanto ao cumprimento dos requisitos, considerou que era matéria das instâncias ordinárias e aplicou a Súmula 7.

Mas não foram apenas os acórdãos do TRF5 e do STJ, ratificando a sentença, que reforçaram minha convicção de ter feito a coisa certa naquele processo. Anos antes, o réu perdoado também ajudou.

Umas duas semanas depois da expedição do alvará de soltura, ele compareceu espontaneamente à Justiça Federal e pediu para falar comigo. Para evitar surpresas desagradáveis, o recebi na presença do meu oficial de gabinete.

Mas ele queria apenas agradecer pelo retorno à liberdade e me presentear com um pequeno livro. Entre suas páginas, havia uma carta, cujo texto reproduzo a seguir:

Caro Doutor Marcos,

Hoje estou muito cansado e muito feliz!

Cansado de tanto caminhar para poder sentir a maravilha de ser; de existir; de fazer; de acontecer… de viver!

Feliz por poder de novo interactuar com o mundo no qual eu sempre acreditei, vivi e amei. O mundo das pessoas boas, trabalhadoras, idealistas, lutadoras, apaixonadas e sonhadoras. O mundo ao qual pertenço!

Este pequeno livro, escrito pela autora “desencarnada” Joana de Angelis, nascida em minha amada e saudosa Espanha; é uma pequena e modesta mostra de gratidão, bem como este poema que escrevi no exílio:

Perfeição

“Quero tentar ser melhor do que fui ontem…

Julgar menos e amar mais. Não se preocupar tanto! sim, começar a relaxar…

Reclamar pouco e manter minha paz,

deixar de buscar como um loco obstinado. Aprender a esperar…

Falar apenas o necessário; o importante é o que se sente. Ser otimista, nada perfeccionista:

Este é o caminho da razão! já que a verdadeira perfeição é algo inexistente,

um esforço inútil, pois o ser perfeito é a busca do imperfeito em encontrar a perfeição!”

Muita paz, amor e luz,

Nunca mais tive notícias daquele rapaz, mas acho que ele mereceu aquela segunda chance.

Espero que tenha aproveitado bem.

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