MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

DEFININDO O CAPITALISMO

Uma das maiores causas da confusão dos tempos modernos é que as pessoas não sabem mais o que as palavras significam. Isso muitas vezes é intencional, porque muita gente se preocupa mais em ganhar as discussões do que resolver os problemas. As palavras relacionadas com a economia e a política estão entre as maiores vítimas. Ninguém parece se preocupar com as definições, e se interessa apenas em dividi-las em palavras “do bem” e “do mal”. Como exemplo, vamos tentar destrinchar uma das mais comuns, o tal do capitalismo.

Para um certo grupo, o capitalismo é uma coisa horrível, e a solução para ele é o socialismo. Para outro grupo, o socialismo é que é horrível e o capitalismo é que é a solução. Na verdade, essas duas palavras falam de coisas diferentes e uma não é o oposto da outra.

Partindo da simples formação da palavra, capitalismo é o sistema onde existe capital, o que inclui praticamente toda a humanidade. E o que é capital? É qualquer coisa que aumente a capacidade das pessoas de produzir bens ou riquezas, ou que produza esses bens e riquezas por si só. Vamos dar um exemplo metafórico: uma pessoa comprou, ganhou ou achou na rua uma galinha. Essa galinha constitui um capital, e o dono pode usá-la de três formas básicas:

1 – Ele mata a galinha, assa no forno e come. Ou seja, o capital foi consumido.

2 – Ele conserva a galinha viva e come os ovos. O capital é mantido apenas para sustentar o consumo; portanto, não aumenta.

3 – Ele deixa a galinha chocar os ovos. Nascem novas galinhas, e a produção de ovos aumenta. O capital é reinvestido, ou, em outras palavras, o capital aumenta a si mesmo (e matematicamente pode-se mostrar que este aumento é exponencial).

Interpretando no mundo real, algumas coisas se tornam óbvias:

– Não adianta ter muitas galinhas se não há ninguém para comprar os ovos. Ou seja, o capital se torna produtivo quando existe um mercado.

– Um grande criador de galinhas irá necessitar de ração, medicamentos, gaiolas, embalagem para os ovos, transporte, etc, e tudo isso representa uma oportunidade para outras pessoas. Ou seja, o capital também pode beneficiar outras pessoas além do seu dono.

– Um grande criador de galinhas provavelmente contratará funcionários. O funcionário não precisa de capital próprio, ele apenas vende partes de seu tempo na forma de trabalho.

Essa última questão gera uma grande polêmica. Segundo alguns, o regime capitalista seria injusto porque o dono do capital se aproveita do trabalho alheio (é o que Marx chamou de mais-valia). Do ponto de vista do conceito básico, é isso mesmo, porque a ciência econômica não faz juízos de “certo” ou “errado”, ela apenas explica como as coisas funcionam e quais as consequências de cada ato.

O empregado, enquanto empregado, não é um capitalista, e portanto não vai usufruir das vantagens que o capitalismo traz. Mas uma pessoa não é apenas um empregado – essa é apenas uma parte de sua vida. Nada impede que o empregado poupe e transforme uma parte do salário que recebe em capital. De que forma? Muitas: pode comprar ferramentas e máquinas e passar a trabalhar como autônomo, pode abrir um pequeno negócio, pode comprar um imóvel, pode simplesmente aplicar o dinheiro em um fundo de investimentos ou na poupança. De qualquer forma, uma vez iniciado o processo, o capital pode aumentar a si mesmo, se usado da forma correta.

Quem reclama, normalmente se queixa de que o conceito não se aplica na prática: o empregado ganha muito pouco, seu salário mal dá para viver, ele jamais conseguirá reunir capital. Eles propõem uma quarta opção para o dono da galinha:

4 – Ele conserva a galinha viva, e entrega uma parte dos ovos para um grupo de pessoas muito bem-intencionadas chamadas “políticos”. Essas pessoas supostamente irão usar esses ovos para promover “igualdade” e “justiça social” (mas na prática geralmente elas mesmas ficam com a maioria dos ovos).

Então, para resumir a coisa: o capitalismo nunca se propôs a enriquecer quem não têm capital, mas ao mesmo tempo não impede ninguém de conseguir. O que caracteriza as sociedades mais ricas não é a existência de alguns com muito capital, mas a existência de muitos com capital. Isso acontece porque em algumas sociedades a maioria se dedica a reunir capital e a fazê-lo crescer, enquanto outras se dedicam a tirar o capital de quem têm para dá-lo a quem não têm. O capital não aumenta quando é movido de um lugar para outro; aumenta quando é deixado livre para produzir.

Para encerrar, uma frase do economista Howard Kershner: “Quando um povo dá ao seu governo o poder de tirar de uns e dar a outros, o governo irá crescer continuamente até que a última gota de sangue do último pagador de impostos seja sugada.”

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

O FUTEBOL E O FOOTBALL

Pouca gente desconfia que o esporte onde se chuta uma bola redonda e o esporte onde se carrega ou se arremessa uma bola oval têm a mesma origem. Mas o conceito de dois times tentando levar um objeto para o campo inimigo, em uma metáfora dos campos de batalha, já existia na Grécia antiga, com o nome de Episkyros. De lá foi para Roma, com o nome de Harpastum. Na Idade Média, o jogo conservou sua popularidade nas Ilhas Britânicas, onde era jogado nas ruas. Uma lei de 1363 já falava em “hand ball” (bola de mão) e “foot ball” (bola de pé). O conceito era sempre o de “invadir” o terreno adversário, com a bola sendo o símbolo dessa “conquista”. As regras variavam segundo o costume de cada lugar.

Em 1845, um colégio na cidade de Rugby criou um campeonato interno com regras escritas, que rapidamente se espalharam por outros colégios da Inglaterra. Os jogos baseados nesse regulamento passaram a ser chamados “Rugby football”, ou “Futebol de Rugby”. Em 1895 surgiu a primeira liga, formada por 21 clubes. Com isso, o rugby tornou-se o primeiro esporte a ter jogadores profissionais, que recebiam dinheiro para jogar. Antes disso, o esporte já era praticado nos colégios e universidades dos EUA, onde recebeu modificações que levariam ao moderno football (chamado em português de futebol americano).

As primeiras restrições ao uso das mãos surgiram com a criação da Football Association em Cambridge, em 1863: era permitido segurar a bola com as mãos, mas não carregá-la. Nos anos seguintes, as regras foram mudando rapidamente até se tornarem um esporte bastante diferente do rugby. Por seguir as regras da Football Association, esse esporte passou a ser chamado “Association Football”, ou “futebol da Associação”. Com o tempo, foi abreviado para “Soc Football” e finalmente “soccer”. A FIFA, atualmente a entidade máxima do futebol, foi fundada em 1904.

Nos tempos modernos, é interessante notar o quanto o football e o futebol refletem os costumes e a sociedade dos países que os praticam. Para não ficar muito extenso, vamos nos restringir a Brasil e EUA:

Nos EUA, berço da livre iniciativa, o football profissional é sinônimo de NFL. Trata-se de uma liga formada por 32 times, e cada time tem um dono. O objetivo da liga é claro: vender um produto de entretenimento para obter lucro. A liga é dona de si mesma, faz suas próprias regras e controla a comercialização de seus produtos. A liga sabe que se o público não gostar, não compra, e portanto se esforça em oferecer um “bom produto”. Se alguém quiser fazer concorrência para a NFL e criar outra liga, é só começar – aliás, existem outras ligas, mas tão menores que muita gente nem sabe que elas existem. Trata-se, em resumo, de um claro exemplo de livre mercado.

No Brasil, o futebol segue uma lógica diferente, do mesmo jeito que o restante: os times pertencem a clubes, e cada clube é administrado de um jeito. Embora sejam eles que “fazem o jogo acontecer”, quem manda e faz as regras é uma confederação nacional complementada por 27 federações estaduais, e esta confederação obedece a um órgão mundial chamado FIFA. Os torcedores, de modo geral, não têm a menor idéia de como funcionam as tais federações, quem as dirige, e de que forma são escolhidos seus dirigentes. Da mesma forma que no mundo real, simplesmente se aceita que existem os que mandam e os que obedecem. Vale lembrar que se um grupo de pessoas quiser montar um campeonato alternativo, não pode, a menos que seja autorizado pela federação. Isso, aliás, não é só para o futebol: qualquer esporte no Brasil só pode acontecer sob os auspícios da respectiva confederação e das 27 federações estaduais, ainda que algumas nem existam.

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Nos EUA, um dono de time de football daria boas gargalhadas se lhe pedissem para seus jogadores jogarem de graça para alguém.

No Brasil, e no resto do mundo do futebol, é normal que o time que banca os jogadores tenha que cedê-los de graça para jogar nas seleções. As seleções participam de copas e torneios que são organizados pelas confederações e pela FIFA em um modelo em que o lucro é delas e a despesa é dos outros. Da mesma forma que no “mundo real”, é considerado normal que os “donos do poder” vivam às custas do trabalho alheio.

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No football, as regras são claras e extremamente minuciosas. Se em um jogo acontece algo que é visto como indesejável ou anti-esportivo, muito provavelmente será criada uma regra específica para essa situação. A idéia é que os times devem se guiar pelo “espírito esportivo”, e não procurar se beneficiar de brechas no regulamento.

No futebol, embora existam regras objetivas, prevalece a idéia de que sempre deve haver um recurso para impôr uma decisão “subjetiva”. No mundo real as leis costumam usar a expressão “a critério da autoridade competente”. No futebol, diz-se que é uma “questão de interpretação”. Como exemplo, o árbitro pode mostrar um cartão amarelo ou um vermelho, baseando-se unicamente em seu critério pessoal, e sabendo que essa decisão pode influenciar bastante no resultado do jogo. Claro que esses casos são discutidos por horas e horas nas famosas “mesas redondas” dos canais esportivos, mas na prática o poder do árbitro prevalece e raramente é questionado pelos “poderes superiores”.

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No football, após uma falta, os juízes (são 7) conversam entre si, consultam o vídeo se necessário e chegam a um consenso. Então o juiz principal vai até o centro do campo, liga o microfone e explica através dos alto-falantes do estádio o que aconteceu. O jogo recomeça.

No nosso futebol, após uma falta, o juiz (único) é imediatamente cercado por jogadores de ambos os times e inicia-se um bate-boca, com todos falando ao mesmo tempo. O juiz anda para trás e é seguido pelos jogadores que continuam falando (nós, do público, não podemos ouvir). Após algum tempo a “reunião” acaba, a falta é cobrada, e o jogo prossegue. Em alguns casos, a critério exclusivo do juiz e sem nenhuma prova factual, um jogador recebe o famoso “cartão por reclamação”.

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No football, existe um relógio regressivo que marca os quinze minutos de cada um dos quatro “tempos” do jogo. Cada tempo acaba exatamente quando o relógio chega a zero.

No futebol, cada tempo dura 45 minutos e mais um “acréscimo”. Cada tempo acaba exatamente quando o juiz quiser.

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Os times da NFL jogam cinco meses por ano (setembro a janeiro) e o calendário é definido pela própria liga. As redes de TV concorrem entre si para comprar os direitos de transmissão, gerando uma receita de dez bilhões de dólares por ano. Praticamente não existem jogos sem estádio lotado (o recorde é do Green Bay Packers, que esgotou todos os ingressos em todos os seus jogos em casa desde 1959).

No futebol, o calendário é definido pelas federações e pela CBF, que parece mais atenta aos interesses das redes de TV que aos dos clubes. São disputados quatro campeonatos ao mesmo tempo e alguns clubes jogam duas vezes por semana durante meses. Jogos com estádios praticamente vazios são comuns. Mas no Brasil certamente não é só no futebol que coisas absurdas prejudicam a maioria para beneficiar alguns poucos.

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Nos EUA, assistir a um jogo é considerado “entretenimento”. As pessoas vão ao estádio (que têm enormes estacionamentos), bebem cerveja, comem cachorro-quente, comemoram os gols e voltam para casa felizes (em caso de vitória) ou tristes (em caso de derrota), mas sem achar que o resultado tenha alterado a vida de alguém.

No Brasil, jogo de futebol parece uma declaração de guerra: torcedores são acompanhados pela polícia e ruas próximas ao estádio são fechadas. Em jogos “importantes”, a rotina pós-jogo inclui brigas coletivas, depredações variadas e torcedores presos.

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Nos EUA, os torcedores geralmente vêem com bons olhos um jogo pacífico, sem polêmicas e com uma arbitragem justa e imparcial.

No futebol daqui, o torcedor acredita com toda convicção que o seu time nunca comete uma falta sequer, e que se o juiz marcar alguma é ladrão. Acredita também que é obrigação do bandeirinha nunca marcar impedimento para o seu time, mas sempre marcar para o time adversário. Mesmo ser ver, sabe que se foi contra o seu time, não foi pênalti, mas se foi a favor, então foi. Repete sempre que “ganhar roubado é mais gostoso” e acha que o juiz têm obrigação moral de sempre errar a favor do seu time. De modo geral, o brasileiro usa este mesmo modo de pensar quando se trata de políticos e de eleições.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

QUANDO O DINHEIRO DE VERDADE DEIXOU DE EXISTIR

No século 19, o dinheiro era o ouro. Cada país tinha suas moedas, mas elas eram apenas uma conveniência, para que ninguém precisasse usar balanças para pagar ou receber. Como cada moeda era equivalente a uma quantidade fixa de ouro, não havia “cotações de câmbio” e o comércio entre países era muito mais fácil do que é hoje.

Na Primeira Guerra Mundial, os países da Europa repetiram uma idéia que já havia sido usada por muitos países quando o governo ficava sem dinheiro: acabar com a equivalência em ouro e fabricar dinheiro de papel. Isso levou países como a Alemanha à hiperinflação. Quando os Estados Unidos cometeram o mesmo erro nos anos 20, criaram a “Grande Depressão”, que afetou o comércio e a economia do mundo todo, e pode ser considerada uma das causas da Segunda Guerra Mundial.

Em 1944, antes mesmo da guerra acabar, todos perceberam que seria necessário reconstruir o sistema financeiro mundial. Após algumas negociações prévias, representantes de 44 países se reuniram em um hotel de luxo nos EUA e firmaram um acordo que ficou conhecido pelo nome da cidade onde aconteceu, Bretton Woods.

Todos sabiam que para criar um sistema sólido, era preciso voltar ao ouro. O problema é que os países da Europa haviam usado suas reservas para pagar as despesas da guerra, e em 1944 os EUA eram donos de dois terços de todo o ouro do mundo. Criou-se então um sistema em que o dólar seria fixado em ouro (35 dólares por onça, ou 0,888 gramas por dólar), e os demais países manteriam suas moedas em uma cotação fixa em relação ao dólar. Os EUA se comprometiam a trocar dólares por ouro se algum país pedisse.

Com a enorme demanda gerada pela reconstrução da Europa, com os EUA fornecendo crédito aos demais países, e com a estabilidade trazida pelo câmbio fixo, os anos do pós-guerra foram de enorme crescimento da economia. A Europa se esforçava para retornar aos níveis pré-guerra, e os EUA, que saíram da guerra ilesos, experimentavam um boom econômico sem precedentes.

Em 1963 o presidente John Kennedy, aproveitando o momento favorável, propôs uma lei reduzindo impostos. Antes da lei ser aprovada pelo congresso, porém, Kennedy foi morto em Dallas e seu vice, Lyndon Johnson, assumiu a presidência. O otimismo gerado pela redução de impostos já estava mostrando resultados, e o PIB do país mostraria um crescimento de 10% no ano de 1964. Esse otimismo também permitiu a Johnson se reeleger com larga margem de votos e com uma confortável maioria no congresso.

Poucas coisas são tão ruins para um país como um presidente popular em um período de vacas gordas, especialmente se sua popularidade incluir a imprensa. Animado com as boas notícias e com poder para aprovar qualquer coisa que quisesse, Johnson inventou um programa que ficou conhecido como “Great Society”. Na metade de 1964, foram criados 14 grupos de trabalho incumbidos de propor programas para “melhorar” todos os aspectos importantes do país. Os grupos, compostos de acadêmicos, “especialistas” e altos funcionários do governo, foram nomeados pelo presidente e por dois assessores, e trabalharam em segredo para “evitar perda de tempo com polêmicas”. Como se pode notar, quando um governo se sente forte, a primeira coisa que faz é jogar pela janela as idéias de “democracia”.

Para explicar o que foi o tal plano, vou usar trechos de uma publicação da época (1965):

“Os planos para as cidades americanas do futuro exigirão que a remodelação urbana seja subvencionada em escala crescente.”

“Os programas de trânsito serão subvencionados na Grande Sociedade.”

“Inúmeros bilhões de dólares poderão ser gastos proveitosamente, segundo os planejadores, na remodelação das cidades.”

“Com o planejamento as cidades poderão tornar-se lugares onde um número cada vez maior de habitantes poderá viver com segurança e satisfação.”

“Terá de haver mais dinheiro para parques em torno das cidades. Os parques nacionais terão de ser ampliados.”

“O congresso aprovou uma lei que destina verbas federais para se juntarem à verbas estaduais e municipais no combate à poluição e à fumaça.”

“O Presidente tem idéias bem assentadas sobre a educação. Uma delas é o aumento da ajuda federal em escala muito maior.”

“O plano compreende o aumento das verbas federais para preparação de professores e construção de escolas.”

“Um programa de assistência hospitalar aos aposentados, mantido pelos impostos, será um dos primeiros a ser criado.”

“O congresso aprovou um programa de bolsas para estudantes de enfermagem e de subvenções para escolas de enfermagem.”

“Serão ampliados os programas do governo para estabilizar o preço dos produtos agrícolas e a renda dos agricultores.”

“Haverá distribuição de excedentes de comida aos necessitados.”

“A tendência dos programas agrícolas será a de pagamento direto aos agricultores.”

São quatro páginas de promessas maravilhosas. Talvez alguns leitores, no meio de tantas maravilhas, se pergunte “e quem paga?” No fim do artigo, um solitário parágrafo diz o seguinte:

“Uma estrutura de programas-piloto está em cogitação e pode ser efetuada com uma despesa que talvez não assuste os eleitores. Depois, no caso de um retardamento na economia privada, será posta em funcionamento a máquina por meio da qual poderá ocorrer um grande e rápido dispêndio de fundos.”

À parte a deliciosa ironia do “talvez não assuste os eleitores”, fica bem claro que a resposta para tantos subsídios, verbas e subvenções é a velha e conhecida máquina de imprimir dinheiro, e foi exatamente isso que aconteceu.

Um dos truques preferidos dos políticos é criar programas onde os benefícios aparecem a curto prazo e os malefícios, a longo prazo. Os fãs de político adoram criar narrativas supostamente imparciais onde os períodos analisados são cuidadosamente escolhidos para incluir os dados bons e deixar de fora os dados ruins. A “Grande Sociedade” não é exceção. Em seus dois primeiros anos, 1965 e 1966, os efeitos benéficos da redução de impostos efetuada por Kennedy mantiveram a economia em alta. À medida em que os planos iam sendo implementados, as despesas iam crescendo e o governo se enchia de novos departamentos e novos funcionários, a máquina de fazer dinheiro funcionava cada vez mais para pagar a conta. Não demorou para a inflação começar a dar o ar de sua graça.

Os demais países perceberam que os EUA não estavam mais levando a sério o compromisso de manter o dólar ancorado em ouro, e sabiam as consequências disso. Em 1968, vários países começaram a trocar suas reservas em dólar por reservas em ouro, pelo valor combinado em 1944. Com os programas criados por Johnson gastando dinheiro a todo vapor e a despesa da guerra do Vietnã aumentando, a fabricação de dinheiro aumentava sem parar. Em 1970, as reservas de ouro dos EUA cobriam apenas 22% do total de dólares existentes. Em maio de 1971 a Alemanha abandonou o acordo de Bretton Woods. Em julho, a Suíça solicitou a troca de 50 milhões de dólares por ouro, e a França, 190 milhões. O governo dos EUA percebeu que aquela situação esgotaria as reservas de ouro do país em pouco tempo.

Em agosto de 1971 o presidente Richard Nixon anunciou que os EUA não fariam mais trocas de dólares por ouro, o que significava que o preço do ouro passaria a ser determinado pelo mercado. Adicionalmente, no melhor estilo terceiro mundo, foi anunciado um congelamento de preços (para “conter a inflação”) e um aumento dos impostos de importação (para “proteger a indústria e o comércio nacionais”).

Alguns números para mostrar os resultados: o desemprego saltou de 3,5% em 1969 para 6% em 1971-1972 e atingiu 9% em 1975. O preço do ouro, que permaneceu fixo em $35 durante vinte anos, saltou para $200 em 1975, e ultrapassou os $500 nos anos 80. A taxa de juros, que havia chegado a 1% nos anos 50, pulou para 9% em 1969 e 13% em 1975. O índice de preços que permaneceu abaixo dos 3% até 1965 subiu para 6% em 1970 e 12% em 1975.

E no resto do mundo? Com o dólar transformado em moeda de papel, os demais países se sentiram livres para fazer o mesmo, com a destacada exceção da Suíça. O dinheiro de verdade, aquele que não perde seu valor e é reconhecido no mundo inteiro, virou história. Foi substituído por pedaços de papel colorido que perdem valor dia a dia, e que, a rigor, não valem nada e precisam de uma lei para obrigar as pessoas a usá-los.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

ESCLARECIMENTO

Em meu pitaco de quinta-feira, eu defendi a liberdade de expressão. Incidentalmente, comentei sobre a ironia de termos hoje no Brasil dois grupos opostos que apoiam a liberdade de expressão mas também apoiam e elogiam governos e governantes que foram ou são contrários a essa liberdade.

Seguiu-se um debate na seção de comentários que deslocou-se da questão da liberdade de expressão para a questão das torturas e mortes que ocorreram durante a ditadura do período 1964-1984. Neste texto eu pretendo colocar de forma clara minha posição e dar por encerrada minha participação no assunto.

Acredito que devem existir princípios éticos que não são negociáveis, e portanto minha opinião a respeito de alguns assuntos é firme. Tortura é um desses assuntos.

Na minha ética, tortura é imoral. Não me importa se é feita pela polícia em nome da lei e da ordem, se é feita pelo governo em nome da segurança nacional ou se é feita pela Santa Inquisição em nome de Deus. Não é assunto a ser debatido. Não existem argumentos, motivos ou circunstâncias que a tornem aceitável. Para mim, é coisa de bandido, de marginal, de covarde, de mau-caráter, de canalha.

Por coerência, quem defende, apóia ou justifica torturas e torturadores é digno, em minha opinião, dos mesmos adjetivos. Mas defendo o direito dessas pessoas de expressarem livremente essa opinião, até mesmo para que todos fiquem cientes desse aspecto de seu caráter.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

A LONGA HISTÓRIA DA LIBERDADE DE FALAR

Você sabia que já existiu um partido nazista nos Estados Unidos? Sim, existiu. Foi fundado no final dos anos 50 por George L. Rockwell. Em junho de 1960 ele comunicou à prefeitura que pretendia realizar um comício na Union Square, e a prefeitura proibiu o comício. Sabe o que aconteceu? A opinião pública condenou a atitude do prefeito. O New York Times disse que a liberdade de falar não deve ser restringida. A União de Liberdades Civis foi à justiça para defender o direito de Rockwell realizar seu comício, e levou o caso até à Suprema Corte. Estas pessoas concordavam com Rockwell? De forma alguma. Todos o detestavam. O New York Times o chamou “miserável e desprezível fomentador de ódio”, no mesmo texto em que defendeu seu direito de falar. Por quê? Porque entendia que existe uma diferença entre discordar de uma idéia e proibir que essa idéia seja exposta. Indo mais longe, o New York Times e a União de Liberdades Civis sabiam que proibir alguém de falar por ser nazista ou fascista ou comunista ou seja lá o que for é justamente um dos passos que levam a regimes como o nazismo ou o fascismo ou o comunismo.

Um dos primeiros a defender o conceito da liberdade de expressão foi Sócrates, que em 399 a.C. disse “Uma sociedade sem liberdade de expressão é o mesmo que um universo sem sol. Uma vida que não é exposta à discussão não vale a pena ser vivida”. Sócrates, como se sabe, foi condenado à morte pelos governantes de Atenas sob a vaga acusação de “corromper a juventude”.

A existência concreta da liberdade de expressão surgiu na Inglaterra. Enquanto o restante da Europa vivia as trevas da Idade Média, onde todos deviam obediência absoluta e críticas ao rei eram consideradas traições puníveis com tortura e morte, os nobres ingleses obrigaram o rei João a assinar o que hoje é conhecido como Carta Magna, e que deu origem à instituição do Parlamento. Em 1688 o rei William assinou um novo “Bill of Rights” que dizia: “A liberdade de palavra e de debate no Parlamento não deve ser restrita nem discutida.” Foi a primeira vez em que esse direito foi colocado por escrito em uma lei.

As colônias inglesas na América (que viriam a ser os EUA) herdaram esse conceito e o ampliaram. A Carta de Maryland, de 1632, foi a primeira a garantir a liberdade de religião (era comum usar a religião como pretexto para calar alguém). Em 1641 foi aprovado o Conjunto de Liberdades de Massachusetts, que garantia a qualquer um, “habitante ou estrangeiro, livre ou não”, o direito de se manifestar nas reuniões públicas.

As tentações autoritárias sempre existiram. Em 1765 a Câmara da Virgínia votou uma série de resoluções protestando contra aumentos de impostos decretados pela Inglaterra. Um deputado propôs então que se fizesse uma lei declarando que quem defendesse os aumentos de impostos seria considerado inimigo do povo. Foi vaiado.

Com a Independência, as ex-colônias, agora estados, redigiram suas constituições. A da Pensilvânia, em 1776, foi a primeira no mundo a prescrever explicitamente: “todas as pessoas tem direito à liberdade de palavra”. Quando se formou uma convenção para elaborar a Constituição Nacional, a maioria julgou desnecessário incluir nela os direitos fundamentais, já que todas as constituições estaduais já o faziam. Assim, a Constituição federal dos EUA descreve apenas a organização e a estrutura básica do governo. Após terminada, porém, os estados exigiram que uma declaração de direitos fosse incluída, o que foi feito (por James Madison) na forma de emendas. A primeira delas diz “Não será feita nenhuma lei que restrinja a liberdade de expressão”.

Tudo isso aconteceu nos séculos 18 e 19. No século 20, o governo agigantou-se de tal forma que passou a se intrometer em todos os detalhes da vida dos cidadãos, e a liberdade de expressão foi se tornando algo inconveniente. Como falar contra a liberdade de expressão de forma direta seria arriscado, novos métodos foram sendo inventados para fazer as pessoas acharem que a liberdade é algo perigoso ou inconveniente.

Então, ao invés de fazer leis suprimindo a livre expressão, o governo manipula o medo das pessoas para fazê-las se sentirem ameaçadas por discursos contrários às suas crenças. Acrescente uma pitada do gosto instintivo por mandar nos outros, que existe em praticamente todo ser humano, e temos o caminho perfeito para um mundo de proibições:

“Palavras machucam”
“Se uma pessoa discorda de mim ela está me agredindo”
“Se uma pessoa faz qualquer coisa que eu não gosto ela está me agredindo”
“Eu tenho direito de não ser agredido”
“O estado precisa me proteger das agressões calando e suprimindo quem me agride”

Pronto! Magicamente, o que era liberdade virou agressão e deve ser eliminada. O sistema judicial baseado em leis, instituições e princípios como o contraditório, que foi construído a duras penas ao longo de séculos, foi descartado e substituído por um regime de linchamentos sumários, em que basta apontar o dedo e gritar uma palavra de ordem (“racista!”, por exemplo), e em instantes forma-se um pelotão de execução, sem que ninguém se atreva sequer a perguntar por quê, com medo de ser acusado também.

Na presente situação brasileira, o fanatismo político dá ares quase surreais a essa situação. Um grupo, fã de determinado político, fala com horror da situação de algumas décadas atrás, quando uma ditadura censurava a imprensa, impedia a livre expressão e praticava prisões arbitrárias. Esse mesmo grupo está apaixonado pelo regime atual, que censura a imprensa, impede a livre expressão e pratica prisões arbitrárias. Do lado oposto, fãs de outro político estão horrorizados com o regime atual, que censura a imprensa, impede a livre expressão e pratica prisões arbitrárias, e suspiram de saudade daquele regime anterior, que censurava a imprensa, impedia a livre expressão e praticava prisões arbitrárias.

Desculpem-me pelo parágrafo cansativo e pelas repetições, mas a ênfase é necessária para mostrar que estou falando de farinha do mesmo saco, gente que se deixou cegar pela propaganda do governo e adora arbitrariedades, desde que sejam contra “os outros”, ou seja, contra quem pensa diferente deles. Esses grupos são cada vez mais numerosos, porque encontram ambiente favorável. Ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil nunca passou pela fase de reconhecer a importância de direitos fundamentais como a liberdade de expressão. Pulamos o Iluminismo e passamos direto da Idade Média para o mundo da pós-verdade. O governo reduz a liberdade do grupo A sob os aplausos do grupo B, e em seguida cerceia as liberdades do grupo B com o apoio do grupo A. Quando A e B perceberem que estão ficando sem liberdade nenhuma, já será tarde demais.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

DONA IRMA

Era uma típica cidade do interior, a pracinha com coreto em frente à igreja. No quarteirão ao lado, o pequeno grupo escolar onde reinava dona Irma, professora da turma única onde crianças de várias idades se misturavam para as aulas de português, matemática, história e geografia. Carinhosa mas rígida na disciplina, dona Irma era respeitada por todos – afinal, ela tinha sob seus cuidados a prole da cidade inteira.

Crianças mais espertas ou mais burrinhas eram tratadas com a mesma dedicação. Para cada uma, dona Irma descobria o jeito e o ritmo certos para fazê-las aprender. Para as mais indisciplinadas, restava o recurso de uma visita da professora à casa dos pais. No dia seguinte, a cidade toda sabia que a família do fulano tinha recebido uma visita de dona Irma, e essa vergonha era estímulo suficiente para que os pais encontrassem um jeito de colocar o filho no caminho certo.

Os incorrigíveis eram extremamente raros, mas existiam; foi o caso do Juquinha. As visitas de dona Irma à casa de sua mãe viúva eram frequentes: Juquinha não estudava, não fazia as lições, tumultuava as aulas, perturbava os colegas. A mãe prometia providências, mas nada acontecia.

Um dia, Juquinha resolveu celebrar as festas juninas estourando bombinhas dentro da sala, e por pouco não incendiou a escola inteira. Foi a gota d’água para a professora: na mesma noite, foi à casa de Juquinha pela última vez e comunicou que o menino estava expulso, em nome da segurança dos demais alunos.

A mãe de Juquinha reagiu mal: xingou a professora, acusou-a de perseguição e por fim declarou que iria embora da cidade que rejeitava seu filho. Iria para uma cidade grande, declarou, e trabalharia dia e noite se fosse preciso para que seu filho pudesse frequentar uma boa escola, entrar para uma faculdade e virar doutor. A promessa não era vã: no dia seguinte Juquinha e sua mãe entraram em um ônibus e nunca mais foram vistos na cidade.

***

Trinta anos depois, a pequena cidade estava crescida. Muita coisa estava diferente, mas o grupo escolar continuava no mesmo endereço. Era um prédio novo, com várias salas e turmas. A diretora era dona Irma, que acumulava a função com a de professora, porque não queria deixar de fazer o que mais amava: ensinar.

Dos naturais da cidade, poucos não haviam sido alunos de dona Irma, e por isso a notícia de que ela havia passado mal e sofrido um desmaio durante a aula correu a cidade com a velocidade de um furacão. O médico mais respeitado da cidade, que também era o secretário municipal de saúde, após examinar dona Irma no colégio, foi até a prefeitura e entrou no gabinete do prefeito com cara preocupada:

– Prefeito, examinei dona Irma e receio que o caso seja grave. Não posso fazer muita coisa aqui. Ela precisa ir para um hospital com mais recursos, e quanto antes melhor.

Não foi preciso argumentar mais; em pouco tempo, o prefeito determinava que a única ambulância da cidade levasse dona Irma e o Secretário para o melhor hospital da capital.

No dia seguinte, o secretário ligou para o prefeito com informações. Dona Irma tinha um aneurisma no cérebro, gravíssimo. Era quase um milagre ter sobrevivido à viagem de quase três horas na ambulância. Ela estava sedada e sob vigilância constante. Se o aneurisma rompesse, seria morte imediata. A esperança, completou o médico, é que as imagens dos exames já estavam sendo enviadas, via Internet, aos melhores especialistas de todo o país.

Mais um dia se passou, e o secretário voltou a ligar: quase todos os especialistas consideraram o caso inoperável. Apenas um médico, de São Paulo, se dispôs a tentar, e mesmo assim ressalvando que as chances eram pequenas. Mas o problema era: como levar dona Irma até lá? Os riscos eram enormes.

O prefeito ligou para todos seus amigos e até para alguns inimigos. Fez dezenas de ligações para todos os figurões de Brasília. Acabou conseguindo um avião-UTI que poderia levar dona Irma à São Paulo. As ruas no caminho do hospital ao aeroporto foram bloqueadas pela polícia para que a ambulância fizesse o trajeto com a maior calma e segurança possíveis.

Em São Paulo, dona Irma, ainda inconsciente, foi desembarcada do avião e embarcada em um helicóptero que a levou ao hospital, onde a equipe médica a aguardava já na sala de cirurgia.

***

Apenas dois dias depois os médicos interromperam a sedação e permitiram que dona Irma despertasse. Quando abriu os olhos, sem saber onde estava, a primeira coisa que viu foi um homem de meia-idade, vestido de branco, sorrindo para ela:

– Dona Irma, que bom ver que a senhora está bem. Eu estava aqui esperando que a senhora acordasse.

– Mas onde estou, e quem é você?

– A senhora está em um hospital, dona Irma. A senhora foi operada, mas não se preocupe, tudo correu bem, a cirurgia foi um sucesso, a senhora já está boa. E eu, eu sou o Juquinha, que foi seu aluno, lembra-se de mim?

Lentamente, dona Irma reconheceu seu antigo aluno no rosto sorridente à sua frente. Sim, era Juquinha, o aluno que ela expulsara do colégio. Juquinha era faxineiro do hospital, e quando reconheceu sua ex-professora ao limpar o quarto quis ficar ali até que ela acordasse.

Você não achou que Juquinha tinha se tornado o melhor neurocirurgião do país, achou?

Feliz Primeiro de Abril!

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

AS MESMAS MENTIRAS DE SEMPRE

Qualquer aspirante a ditador sabe que é mais fácil controlar as pessoas quando elas são ignorantes. Para conseguir esse objetivo, praticamente todos os governos se esforçam para controlar duas coisas: a educação e a imprensa. Controlando as duas, fica fácil produzir um povo ignorante, basta acostumá-lo a não pensar e a aceitar sem questionar qualquer coisa que as “autoridades” digam. Entre os vários campos do conhecimento, o mais crucial, aquele que deve ser mantido afastado do entendimento das pessoas, é o conhecimento sobre os princípios básicos da economia.

O JBF publicou no último dia 6 um editorial da Gazeta do Povo (um dos melhores jornais do país atualmente) que mostra bem como a imprensa repete dogmas e trata o governo como algo divino e inquestionável. Entre análises corretas sobre as consequências indesejáveis da inflação, o jornalista declara que ela, a inflação, é “um dos temas mais complexos da ciência econômica”.

Não, caro jornalista. A inflação não é nada complexa. É simples, desde que se use o cérebro para pensar.

Se tentarmos pensar em “inflação” como “todos os preços subindo ao mesmo tempo”, realmente seria algo complexo. O mundo é povoado por milhões de pessoas que interagem entre si, cada uma com seus desejos e gostos, e por milhões de empresas que competem entre si para conquistar a preferência destas pessoas, em um conjunto chamado “mercado”. É impossível achar que o mercado possa ser controlado ou regulamentado por um governo, embora muitos tenham tentado (e falhado). Um fenômeno que afetasse todos os preços dentro dessa enorme rede de informações que é o mercado é mesmo difícil de imaginar.

Mas inflação é muito mais simples que isso. Imagine que você pesou todos os habitantes de uma cidade. Depois de alguns dias, você pesa todos novamente e descobre que todos estão pesando mais. O que é mais provável: que todas as pessoas resolveram engordar ao mesmo tempo ou que a balança tenha se desregulado? Inflação é quando o dinheiro passa a valer menos; como estamos acostumados a usar o dinheiro como medida de valor, achamos que o valor de todas as coisas aumentou quando na verdade foi apenas o valor do dinheiro que diminuiu.

Como e por que o valor do dinheiro diminui? Por causa da mais fundamental lei da economia: oferta e procura. Acontece que o governo concede a si mesmo o poder de fabricar dinheiro, que ele usa para pagar suas contas. Só que quando a quantidade (ou “oferta”) de dinheiro na economia aumenta, o seu valor diminui, como acontece com qualquer bem. Para ser mais exato: se a oferta de dinheiro aumentar no mesmo ritmo do crescimento da economia, não haverá inflação, porque a procura também aumentará, mantendo o equilíbrio. Só que não é isso que os governos constumam fazer: eles gostam de imprimir dinheiro aos montes, e isso causa inflação.

Existe muita gente que afirma que imprimir dinheiro não causa inflação. Todas as explicações, quando existem, só funcionam no modo “aceite sem questionar”; nenhuma resiste a duas ou três perguntas. Existe até gente nas redes sociais que afirma que “não porque não, e pronto”, sem sequer se dar ao trabalho de inventar uma explicação. Enquanto isso, o fato é que na história toda vez que o governo fabricou dinheiro além do que devia houve inflação, e toda vez que houve inflação o governo fabricou dinheiro. É uma relação direta: não se encontram casos de um sem o outro nem do outro sem o um.

Para mostrar melhor como a imprensa do mundo todo fala do assunto, vamos dar uma examinada nas falácias mais comuns, e fazer algumas perguntas “inconvenientes”:

Inflação de demanda: significaria que os preços subiram porque as pessoas passaram a gastar mais, desequilibrando oferta e demanda.

Pergunta: de onde veio o aumento de dinheiro que as pessoas estão gastando? Se elas ganharam mais dinheiro trabalhando, então houve aumento de produção antes do aumento de consumo, o que significa que a oferta começou a crescer antes da demanda, e isso por definição causa redução de preços, não aumento. Aliás, é exatamente assim que funciona uma economia saudável.

A explicação real: o governo imprime dinheiro, esse dinheiro vai para os bancos, os bancos aumentam o crédito, e as pessoas começam a gastar o dinheiro que não têm, fazendo dívidas. A demanda sem dúvida aumenta, mas isso é consequência, não algo que aconteceu do nada. Ou seja, “inflação de demanda” é apenas a consequência daquilo que o governo fez.

A prova: se aumento de consumo baseado em crédito causa “inflação de demanda”, quando o crédito volta a encolher (inevitável), a demanda volta a diminuir e os preços deveriam voltar ao que eram. Mas não é isso que acontece: se o governo reduz a fabricação de dinheiro, o crédito some e costuma haver recessão, mas os preços não diminuem, apenas param de aumentar.

Inflação de custos: significa que a culpa é do tomate, da gasolina ou do remédio, que subiram muito, e fizeram os outros preços subir também.

Pergunta: quando o preço de alguma coisa sobe, o consumo cai, e isso tende a estabilizar o preço. Quando é algo que as pessoas não podem deixar de comprar, como gasolina, a tendência é que o consumo de outras coisas caia, o que faz o preço cair. Assim, se a gasolina sobe, faz sentido dizer que as pessoas vão gastar mais em gasolina e também vão gastar mais em todas as outras coisas, e continuar consumindo na mesma quantidade? Com que dinheiro?

A explicação real: a inflação do tomate ou da gasolina é só uma desculpa do ministro para negar que o responsável pela inflação é ele mesmo. Enquanto o governo está imprimindo dinheiro e fabricando inflação, sempre haverá alguma coisa que pode ser usada para desviar a atenção. Pode ser uma seca ou uma enchente, que causa uma redução na oferta de algum alimento, ou pode ser a própria inflação: o governo faz os preços subirem e depois finge que não sabe porque os preços subiram. É como dizer que o culpado pela febre é o termômetro.

A prova: se fatores externos como chuva ou guerra na Ucrânia fazem todos os preços subirem, porque os preços não voltam a baixar quando estes fatores se normalizam?

Inflação mundial: é a falácia mais recente, diz que a inflação se espalha de um país para o outro, como a covid.

Pergunta: a primeira coisa que sobe quando o governo imprime dinheiro é o câmbio. Isso significa que a moeda dos outros países ficou mais forte e o preço dos produtos para os estrangeiros ficou mais baixo. Como isso pode gerar inflação nos outros países?

Outra pergunta: se a inflação é mundial, porque na Suiça, Singapura e Japão a inflação não subiu? Será mera coincidência que estes países não fabricaram dinheiro, enquanto Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Européia, que imprimiram trilhões de dólares, libras e euros durante a pandemia, estão apavorados com a inflação?

A explicação real: muitos países imprimiram dinheiro como loucos para tentar compensar os prejuízos dos lockdowns, e obviamente só pioraram as coisas. Como a guerra da Ucrânia causou um aumento temporário nos preços do petróleo, os culpados de sempre correram para colocar a culpa no coronavírus e no Putin.

A prova: se o aumento dos preços do petróleo foi a causa da subida de preços no mundo inteiro, porque agora que o petróleo voltou para onde estava antes da guerra os preços não voltaram também?

Quem prestou atenção notou que há muita coisa repetitiva nesta explicação. É assim mesmo, porque toda essa “complexidade” que o jornalista da Gazeta diz existir é apenas lero-lero para esconder uma verdade que é bem simples.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

SOBRE O DINHEIRO DIGITAL, DE NOVO

Eu já falei sobre o dinheiro digital antes. Veja clicando aqui e também aqui. Não imaginei que gente do governo fosse entregar a rapadura tão cedo e admitir o que pretendem fazer.

Estou falando das declarações do coordenador dos trabalhos do real digital no Banco Central, Fábio Araújo, na última quinta-feira. Em um evento sobre o real digital, ele disse as seguintes frases:

“Uma Prefeitura poderá dar um voucher para comprar leite que pode ser digital e estar na carteira digital do cidadão, e ter todas as características de dinheiro, mas, na hora do pagamento, ele só vai se prestar para aquela finalidade.”

“Em um caso extremo, um voucher entregue como dinheiro poderia proibir o consumo de refrigerante com açúcar em meio a uma eventual epidemia de obesidade. “

“Tem um grau de influência na vida das pessoas quando você começa a pensar nesses mecanismos, que vão muito além do que se deveria fazer com essa tecnologia.”

Note o tempo verbal na última frase: “do que se deveria fazer”. É bem diferente de “não será feito”. E é bem diferente justamente porque este é o objetivo principal do projeto: controlar o uso do dinheiro. Ou alguém acha que nossos políticos, ao terem esse poder nas mãos, não vão usá-lo?

A população já está sendo condicionada a aceitar esse controle faz algum tempo. Bloquear bens de “suspeitos” sem julgamento já é trivial. O controle cada vez maior do governo sobre o que as pessoas fazem com seu dinheiro é sempre justificado com expressões vagas como “combater a sonegação”, “combater o crime organizado” ou “combater a lavagem de dinheiro” – é bom lembrar que quem diz o que é “sonegação”, “crime organizado” ou “lavagem de dinheiro” é o governo, e qualquer coisa que ele não goste pode ser encaixada nessas definições.

O PIX vem cumprindo sua função de acostumar as pessoas à presença do governo como intermediário em cada pequena compra do dia-a-dia. Pouca gente parece preocupada em pensar que em um futuro próximo, comprar comida no mercado ou pão na padaria só será possível com a participação (e a anuência) do Banco Central e da Vivo, Claro ou TIM.

No momento em que o dinheiro físico deixar de existir (e isso acontecerá em poucos anos), cada pessoa passará a ser prisioneira do governo de seu país. Só poderá trocar seu dinheiro por outra moeda, ou por ouro, ou por bitcoins, se o governo deixar. Os impostos poderão ser cobrados diretamente da conta, na quantidade que o governo desejar. Os políticos estarão livres para implantar as “políticas públicas” que muita gente pede, já que poderão controlar em que cada pessoa poderá gastar seu próprio dinheiro, como o funcionário do BC exemplificou aí acima. E muita gente irá apoiar e aplaudir, porque está desde criancinha escutando que “o governo só quer o nosso bem”.

Um último e importante aviso: hoje, quando um governo começa a fabricar moeda além do razoável, as pessoas correm para o dólar, o ouro ou o bitcoin. No momento em que as pessoas não puderem mais levar seu dinheiro para fora do sistema, o governo ficará livre para inflacionar a moeda o quanto desejar.

Você está pensando em se mudar para fugir disso? As opções não são muitas: EUA e União Européia estão tão animados quanto o Brasil para implementar o dólar e o euro digitais. No momento, os refúgios que me vêm à mente são Suíça, Cingapura e Nova Zelândia, e não confio muito nessa última.

Segundo o BC, o real digital entrará em fase de teste piloto neste mês de março. A versão final tem previsão de lançamento para 2024.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

ECONOMIA

A economia é uma ciência estranha. Seu campo é analisar o comportamento das pessoas, e o senso comum diz que o comportamento humano é imprevisível. Isso não impede que as faculdades de economia passem anos mostrando aos alunos um amontoado de fórmulas que supostamente permitem prever todos os parâmetros econômicos de uma sociedade.

Esse mito é tão forte que eu me assustei essa semana ao ler, em um site de economia, a seguinte afirmação:

“Um dos maiores consensos no final do ano passado era de que o mundo entraria em uma recessão em 2023. Essa contração da economia começaria pela Europa, e depois se alastraria para os EUA e outros países. [..] O consenso é tão forte que, pela primeira vez na história, os economistas estavam prevendo uma recessão antes de ocorrer. Ora, quem olha os dados passados sabe que, em geral, as projeções de uma recessão acontecem durante, ou até após, o início dela. “

Como é? Um economista, em um site de economia, admitindo que até hoje os economistas nunca conseguiram prever uma recessão? De onde veio esse sincericídio?

A humilde (mas não muito) opinião deste pitaqueiro é que a ciência econômica hoje está em algum lugar entre a teologia e a astrologia. Explico:

Assim como os astrólogos, os economistas fazem cálculos complicados e “mapas astrais” cheios de detalhes, mas baseados em premissas completamente arbitrárias. Pode-se determinar com absoluta precisão que no momento em que uma determinada pessoa nasceu, Mercúrio estava retrógrado em relação à constelação de Capricórnio; isto é matematicamente exato. Tirar daí uma conclusão sobre o futuro da pessoa é algo completamente diferente. Da mesma forma, economistas, especialmente os que trabalham para o governo, passam a vida coletando dados e somando-os em planilhas complicadas, sem chegar à conclusão alguma, exceto talvez prever uma recessão depois que ela já está ocorrendo.

Em comum com a teologia, a economia adota o hábito de tomar como premissas aquilo que deveria ser a conclusão. Ao invés de estudar quais os resultados das intervenções do governo, os economistas proclamam estes resultados como dogmas inquestionáveis e desenvolvem o raciocínio a partir daí. Entre estes dogmas estão “um pouco de inflação é bom”, “é preciso estimular o consumo”, “moeda desvalorizada é bom para a balança comercial”, “gastos do governo enriquecem o país” e por aí afora.

Com o apoio entusiasmado dos jornalistas econômicos (que têm como mantra “o governo sempre acerta”) e com os acadêmicos fornecendo os “argumentos de autoridade”, também conhecidos como “você sabe com quem está falando?”, o resultado da intervenção do governo na economia segue mais ou menos o seguinte padrão:

1 – A economia está indo bem, as pessoas estão trabalhando, não há grandes problemas à vista. Como alguns preços dependem de fatores incontroláveis, como o clima no caso dos alimentos, existem oscilações de preço. O mecanismo do mercado “absorve” estas oscilações, de forma que o impacto geral é pequeno.

2 – Como tudo está bem, o governo resolve se meter para “estimular a economia”, usando seu poder para fabricar dinheiro do nada. O dinheiro vai parar nos bancos. Os bancos usam esse dinheiro que ganharam sem custo para conceder empréstimos e ganhar mais dinheiro.

3 – Com o crédito fácil, a população começa a se endividar para consumir. À medida em que o dinheiro criado se espalha pela economia, a lei da oferta e procura entra em ação e o valor do dinheiro cai, o que significa que os preços sobem. O aumento súbito do consumo também ajuda a empurrar os preços para cima.

4A – Em países onde o governo é irresponsável, o governo reage ao aumento de preços fabricando ainda mais dinheiro. Isso inicia um círculo vicioso que acaba em hiperinflação. Nota: alguns economistas chegam a ter a cara-de-pau de dizer que hiperinflação não é culpa do governo, mas até hoje nenhum deles foi capaz de citar um caso sequer de hiperinflação que não tenha sido precedida por um aumento na fabricação de dinheiro (em economês: expansão monetária).

4B – Se o governo é um pouco mais responsável, ele percebe a burrada e reduz a fabricação de dinheiro, e em muitos casos aumenta a taxa de juros para “esfriar a economia”. O resultado é que as pessoas ficam endividadas e com menos dinheiro; os preços permanecem altos. A economia entra em recessão. As pessoas apertam o cinto para pagar as dívidas contraídas na época da farra, as empresas que investiram para aumentar a produção vêem o investimento não dar retorno, o governo começa a apontar culpados: a chuva, a falta de chuva, o calor, o frio, os especuladores, os produtores, algum país estrangeiro, qualquer um, menos ele mesmo.

5 – Se nesse ponto o governo não fizer mais nada, aos poucos as coisas voltam ao lugar, embora geralmente em uma situação um pouco pior do que antes. Os preços se estabilizam, as pessoas pagam suas dívidas e voltam a consumir, oferta e demanda voltam a se equilibrar. Voltamos ao ítem 1. Se o governo insistir em querer “consertar” a economia, podemos esperar medidas cada vez mais irracionais e um caos cada vez maior. Exemplos clássicos: a depressão de 1921 nos EUA foi do primeiro tipo. Houve um ano ruim, e depois a economia voltou a crescer. Já a depressão de 1929 foi do segundo tipo: o governo se meteu em tudo que podia, e como resultado a crise durou quinze anos.

6 – Sempre existe o perigo dos políticos ficarem com medo do resultado das eleições e passarem direto do estágio 5 para o 2, sem que a economia tenha realmente se recuperado da crise. A tendência então é o país entrar numa espécie de montanha-russa de subidas e descidas, com o governo tomando medidas para um lado e para o outro tentando “estabilizar” a economia, mas conseguindo apenas agravar a situação. É que os políticos, que não entendem nada de economia, tomam decisões se baseando no que dizem os jornalistas, que não apenas não entendem mas acreditam em coisas que são opostas à realidade.

Passando da teoria para a prática, como o mundo está neste momento?

A crise da COVID foi uma das maiores de toda a história econômica do ocidente. Pessoas foram proibidas de trabalhar, empresas foram fechadas à força. Os mesmos governos que fizeram isso fabricaram dinheiro em escala nunca vista, acreditando que uma coisa compensaria a outra. O resultado, naturalmente, foi inflação. Os países desenvolvidos têm muito medo de inflação e ficam apavorados quando ela chega, embora nunca entendam porque ela apareceu. Quando os números começaram a ficar altos, os bancos centrais cortaram a fabricação de dinheiro.

O gráfico abaixo mostra a variação na quantidade de dinheiro na economia dos países membros da OCDE, mas não em valores nominais, como é comum, mas em termos de poder de compra. Ou seja, um número positivo indica que o dinheiro está valendo mais, um número negativo indica que o dinheiro está valendo menos. Vejamos:

O gráfico abrange 42 anos, começando em 1980. Até 2021, o índice variava entre 2 e 6% ao ano, com picos chegando a 12% em 1986 e 8% em 1999, 2001 e 2008. O que aconteceu nos últimos dois anos? Um aumento anual de 18% em 2021 seguido de uma redução de 7% em 2022. Em economia, ver números completamente diferentes do usual geralmente não é uma boa coisa.

O aumento inédito em 2021 é fruto de uma enorme emissão de dinheiro, da ordem de trilhões, feita pelos EUA e UE. Quando os preços começaram a subir, a emissão parou, o que causou o também inédito repique negativo no ano seguinte. Em termos práticos, as pessoas estão com menos dinheiro e este dinheiro está valendo menos. Em termos mais práticos ainda, recessão.

A história econômica mostra que em casos assim, o melhor que um governo pode fazer é não fazer nada, e esperar os preços se estabilizarem. É doloroso, mas funciona. Infelizmente, políticos sempre querem mostrar que estão “fazendo alguma coisa”, e as chances são de que novas bobagens venham a piorar ainda mais a situação, provavelmente caindo na montanha-russa do estágio 6 lá de cima.

Coisas que complicam a situação para a Europa:

– O caríssimo “estado de bem-estar social” exige gastos cada vez maiores, especialmente nos famosos “saúde e educação”, e nenhum político tem coragem de tocar no assunto.

– A guerra na Ucrânia bagunçou o mercado de energia, que já estava precário por conta de políticas eleitoreiras e demagógicas. No ano passado a União Européia gastou quase UM TRILHÃO de euros em subsídios a combustíveis e energia elétrica.
– A produtividade da população vem caindo, com as novas gerações preferindo viver de ajuda do governo ao invés de entrar no mercado de trabalho.

Concluindo, a Europa de hoje é um cenário pronto para fazer parte dos futuros livros-texto das faculdades de economia. Resta saber que rumos os políticos irão tomar neste ano que começa.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

DIREITOS

Um sujeito estava em um táxi, e o motorista dirigia bem rápido. De repente, chegando em um cruzamento, o motorista pisou forte no freio, e o passageiro foi parar com a testa encostada no pára-brisa. Espantado, o passageiro perguntou: “Por que você parou, se a rua que estamos é preferencial?” “Meu senhor”, respondeu o taxista, “preferência não é uma coisa que se têm. É uma coisa que te dão. Se não te derem, você não tem.”

Embora seja apenas uma piada, essa pequena história transmite uma mensagem profunda. A “preferência” de que o taxista fala é um “direito”, e no mundo de hoje cada vez mais pessoas acreditam ter direitos que na verdade não são direitos.

Existem direitos? Sim, existem: o direito de não ser agredido, o direito de pensar o que quiser, o direito de dizer aquilo que pensa, o direito de trabalhar, o direito de usufruir de seu patrimônio, e de forma geral o direito de viver com liberdade, desde que não impeça os outros de desfrutarem destes mesmos direitos.

O que define um direito? Antes de tudo, é preciso acreditar que esse direito seja de todos. Um direito que só algumas pessoas têm não é um direito, é um privilégio. E caso alguém tente usar o velho argumento de que “são casos diferentes”, a resposta é tão velha quanto: quem julga cada caso e resolve quem tem direito e quem não tem? Ou melhor, quem detém o monopólio da moral para definir os parâmetros que dizem quem tem direito e quem não tem?

Existe outro parâmetro mais importante: um direito não é moralmente correto se ele existe às custas da coerção alheia. Em linguagem mais simples, um direito não é um direito se ele cria obrigações para os outros – o nome disso, em última análise, é exploração. Quando alguém diz que tem direito a ganhar coisas de graça, geralmente oculta o fato de que as coisas não são realmente gratuitas, elas apenas estão sendo pagas por outras pessoas, e quase sempre de forma coercitiva.

Essa manipulação em que se mostra a parte boa (o “direito”) mas se esconde a parte ruim (a obrigação) é uma das artimanhas preferidas de qualquer governo. Ele se mostra como bonzinho e caridoso ao falar dos beneficiados, e desconversa quando se fala dos prejudicados. Tudo começa quando, num truque de vocabulário, o governo diz que cria leis. Quem cria leis é a natureza, e das leis da natureza ninguém foge. Os políticos escrevem coisas em um papel e ao chamar isso de leis tentam dar a impressão de que a Lei Paulo Gustavo ou a Lei Maria da Penha são coisas tão eternas e imutáveis quanto a Lei da Gravidade. Não são. Em um segundo truque, os mesmos políticos dizem que as leis “criam” e “garantem” direitos. Na verdade, o que as leis feitas pelos políticos fazem é fornecer os parâmetros de como o dinheiro das pessoas será cobrado pelo governo, que usará a maior parte para si mesmo e deixará uma pequena parte para fornecer algum serviço. Ao não enxergar o truque, as pessoas passam a ver o governo como uma entidade mágica que faz surgir coisas do nada. Como disse Bastiat, “o governo é uma grande ficção através da qual todos acreditam que podem viver às custas dos outros”. A consequência disso também foi prevista por Bastiat: “Quando explorar os outros se torna um modo de vida para um grupo de pessoas, este grupo cria uma lei que autoriza a exploração e uma moral que a glorifica”.

Por exemplo, para acreditar que é possível existir “direito à saúde” ou “direito à educação”, há duas opções: uma é acreditar que médicos e professores devem ser obrigados a trabalhar de graça; outra é acreditar que as pessoas devem ser obrigadas a dar dinheiro aos políticos para que estes paguem os médicos e professores e digam que eles, políticos, estão “garantindo direitos”. Nenhuma das opções é moralmente correta, porque fere um direito fundamental de todo ser humano, que é a liberdade. Esta palavra é odiada pelos políticos, que dedicam sua vida a repetir que liberdade é algo perigoso, e que todos devem abrir mão da sua e entregá-la a um grupo de iluminados que sabe o que é melhor para todos. Esses iluminados, claro, são os próprios políticos.

A tática funciona, e hoje em dia muita gente no mundo teme a liberdade, preferindo viver sob as ordens de um governo que lhes dá “direitos”.