Mané foi meu colega de trabalho por mais de 20 anos e com ele dividi algumas missões institucionais quando éramos funcionários públicos. Sempre o achei meio esquisito, mas isso nunca impediu um convívio harmonioso em prol do bom resultado das tarefas para as quais havíamos sido designados. Nossa aposentadoria, por coincidência, aconteceu na mesma data. De passagem por Fortaleza, encontrei-o no final da tarde de uma sexta-feira de dezembro. Pálido e triste, voltava para casa depois de mais um dia em frente ao quartel da 10ª. Região Militar, próximo à Praia de Iracema. Era sua rotina há cerca de quarenta dias. Melhor proveito teria se tivesse ido à praia ali pertinho, observar a beleza natural do mar e das moças bonitas que por lá passeavam.
ALHO E AMULETO
Mané mascava um dente de alho e levava na mão um pé de coelho. Segundo ele, a receita lhe fora passada por um ‘colega’ de acampamento, tão ’herói’ quanto ele, objetivando, com o amuleto, atrair sorte para o seu lado; com o alho, eliminar os efeitos dos resíduos de cobre inseridos em seu corpo quando da primeira (e única) dose da vacina tomada contra o Corona, por insistência dos filhos e da mulher. Se arrependimento matasse … Menos mal que a dose aplicada, segundo ele, não foi suficiente para transformá-lo em jacaré … Por pouco. De nada adiantou minha tentativa de explicar-lhe que a vacina era fruto de estudos, pesquisas e experiências desenvolvidas por renomados cientistas do mundo inteiro. Ele preferia crer no poder curador do alho e na superstição do amuleto, orientação de seu amigo, bandeira desfraldada, gritos ao ar. Voltará no dia seguinte, disse-me, e por lá ficará até não se sabe quando, até quando restar o mínimo de esperança de um golpe na mente vã de um ‘patriota’ que detesta democracia. Seu mau hálito agredia quem de longe com ele conversasse. Mais até que sua atabalhoada ideologia. Por certo o resíduo de cobre em sua corrente sanguínea lhe fazia menos mal.
O MANÉ PERDEU
Depois desse dia não mais vi o Mané. Um outro amigo, colega comum, disse tê-lo visto com um dente de alho na mão, um pé de coelho pendurado no cós da bermuda, perambulando por uma calçada do Recife, abandonado à sorte, fazendo xixi no muro de um hospital na Tamarineira: ainda estava do lado de fora. Até quando? Alguém passou de carro e gritou: – Perdeu, Mané! Ele fez de conta que não era com ele. Mas era.