PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

UM CORDEL CHEIROSO

PEIDOS E PEIDÕES – Chico Gabriel

Quero aqui falar de peido
E peidadores também,
Bem sei que sobre esse assunto
Já falaram mais de cem
Mas sempre tem novidade
Se tem peido em quantidade
Pode falar mais alguém

Porém eu vou com cuidado
Pra não fazer algo feio,
Pois tanto li sobre peido
Que escrevo com receio,
De sem haver intenção
Repetir sem ter razão
Um verso que seja alheio.

Por muita gente foi dito
Que o peido só lhe faz bem,
Portanto lhe valorize
Com o valor que ele tem.
Pode peidar sem parar
E não vá se incomodar
Com censura de ninguém.

Falei um pouco do peido
E do valor que ele tem,
Porém dos nomes dos peidos
Eu quero falar também.
Dos nomes que pesquisei
O pior que encontrei
É chamado peido trem.

Por ser o mais trovejante
Foi de trem foi apelidado,
Por apitar e roncar
Deixando o povo assustado,
Se ele vem fedorento
Além de ser barulhento
Fede a enxofre queimado.

Tem também o peido ninja
Esse não tem outro gual,
Potente e eficiente
Com poderio fatal,
Assassino poderoso,
Muito calmo e perigoso
E com um cheiro mortal.

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PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

UM CORDEL DE LEANDRO GOMES DE BARROS

O dinheiro neste mundo
Não há força que o debande
Nem perigo que o enfrente
Nem senhoria que o mande
Tudo está abaixo dele
Só ele ali é o grande.

Ele impera sobre um trono
Cercado por ambição
O chaleirismo a seus pés
Sempre está de prontidão
Perguntando-lhe com cuidado:
– O que lhe falta, patrão?

No dinheiro tem-se visto
Nobreza desconhecida
Meios que ganham questão
Ainda estando perdida
Honra por meio da infâmia
Gloria mal adquirida

Porque só mesmo o dinheiro
Tem maior utilidade
É o farol que mais brilha
Perante a sociedade
O código dali é ele
A lei é sua vontade.

O homem tendo dinheiro
Mata até o próprio pai
A justiça fecha os olhos
A polícia lá não vai
Passam-se cinco ou seis meses
Vai indo, o processo cai.

Compra cinco testemunhas
Que depõem a seu favor
Aluga dois escrivães
E compra o procurador
Faz dois doutores de prata
Pronto o homem, meu senhor!

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PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

UM POEMA DE CANCÃO

João Batista de Siqueira, Cancão, São José do Egito-PE (1912-1982)

MOMENTOS MATUTINOS

Nas noites caliginosas
As estrelas luminosas
Pelas grimpas montanhosas
Derramam luz soberana
As florzinhas da paisagem
Dormem por entre a ramagem
Talvez sonhando a imagem
Dos sorrisos de Diana

Os pirilampos pequenos
Vindos de outros terrenos
Pousam, sutis e serenos
Pelos estrumes da terra
Os perfumados vapores
Passam roçando os verdores
Levando os leves rumores
Das águas brandas da serra

A Lua, alta e feliz
Linda mãe dos bugaris
Derrama raios sutis
Por toda extensão da selva
Dos lírios desabrochados
Brancos e imaculados,
Os seus perfumes sagrados
A brisa bafeja e leva

Dentro da floresta densa
A vegetação imensa
Parece ficar suspensa
Nesse ditoso momento
As carnaúbas rendadas
Criadas lá nas chapadas
Abrem as frondes copadas
Para a passagem do vento

A brisa sopra dolente
Por entre a flora virente
O céu de cor transparente
Azul, sem uma só mancha
Branca neve matutina
Envolve a vasta campina
Toalha de gaze fina
Que o dia rasga e desmancha

As corujas traiçoeiras
Com suas asas maneiras
Passam nos ares, ligeiras
Para o grotilhão enorme
Foge o tenebroso véu
Na aroeira, o xexéu
Olhando as cores do céu
Desperta a mata que dorme

Para as bandas do levante
Lindo clarão rutilante
Vem-se alargando, brilhante
Cheio de glória e encanto
A neve se desenrola
E o beija-flor, por esmola
Em cada fresca corola
Deposita um beijo santo

Dos floridos vegetais
Os orvalhos matinais
Como gotas de cristais
Se desprendem tremulantes
Um traço de fina luz
Aquece os verdes bambus
Dos altos cumes azuis
Das cordilheiras distantes

A borboleta amarela
Passa juntinho à janela
Vai pousar, serena e bela
Num lindo caramanchão
O sabiá, lá da mata
No ingazeiro desata
A nota suave e grata
De sonorosa canção

Cantam na serra os pastores
Os tempos de seus amores
Sentindo os brandos calores
Dos raios do sol nascente
E a Natureza selvagem
Estende a sua ramagem
Como rendendo homenagem
A um Deus onipotente.

PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

DOIS POEMAS DE CANCÃO

João Batista de Siqueira, Cancão, São José do Egito-PE (1912-1982)

* * *

MEU LUGAREJO

Meu recanto pequenino
De planalto e de baixio
Onde eu brincava em menino
Pelos barrancos do rio
Gigantescos braunais,
Meus soberbos taquarais
Cheios de viço e vigor
Belas roseiras nevadas
Diariamente abanadas
Das asas do beija-flor

A terra da catingueira
Criada na penedia
Onde a ave prazenteira
Canta a chegada do dia
Planalto, ribeiro, prado
Onde até o próprio gado
Parece ter mais prazer
Terreno das andorinhas
Onde arrulham mil rolinhas
Quando começa a chover

A borboleta ligeira
Que desce do verde monte
Passa voando maneira
Roçando as águas da fonte
As aragens dos campestres
Pelas florzinhas silvestres
Atravessam sem alarde
Quando o sol se debruça
A Natureza soluça
Nas sombras do véu da tarde

Terreno em que os sabiás
Cantam com mais queixumes
Belas noites de cristais
Cravadas de vaga-lumes
Meus mangueirais magníficos
Por onde os ventos pacíficos
Atravessam mansamente
Verdes matas perfumadas
Nas lindas tardes toldadas
Das cinzas do sol poente

Esvoaçam, preguiçosas,
As abelhas pequeninas
Tirando néctar das rosas
Das regiões campesinas
Os colibris multicores
Pelos serenos verdores
Perpassam com sutileza
O orvalho cristalino
Lembra o pranto divino
Dos olhos da Natureza

Palmeiras que o rouxinol
Canta ainda horas inteiras
As auras do pôr-do-sol
Soluçam nas laranjeiras
A pelúcia aveludada
De muitas flores bordada
Desde o vale até o outeiro
Lugar em que cada planta
Soluça, sorri e canta
Pelos trovões de janeiro

Deslumbra a gente o encanto
Das borboletas douradas
Pousarem no róscio santo
Das manhãs cristalizadas
Fingem variadas fitas
De fato que são bonitas
Porém se fingem mais belas
Que a divina Natureza,
Por ter-lhes posto a beleza,
Deu mais vaidade a elas

Oh, noite de Lua cheia
De minha terra querida!
Lindas baixadas de areia
Princípios da minha vida
Lugares de despenhado
Onde gozei, descansado
Sombra, frescura e carinho
Bosque, vale, serrania
Lugares onde eu vivia
Em busca de passarinho

Os colibris delicados
Pelas manhãs de neblina
Passam voando vexados
Na vastidão da campina
Nos frondosos jiquiris
Dezenas de bem-te-vis
Elevam seus madrigais
Lugar que grita o carão
Olhando o santo clarão
Primeiro que o dia traz

As pequeninas ovelhas
Descem buscando o aprisco
Colhendo ainda as centelhas
Do sol ocultando o disco
Seguem pelas mesmas trilhas
Como que sejam as filhas
Dum pastor que lhes quer bem
Recebendo ainda as cores
Dos derradeiros rubores
Que o céu do oeste tem

Vivia sempre brincando
Fosse de noite ou de dia
Na alma se apresentando
Um mundo de poesia
Minhas queridas delícias
Aquelas santas primícias
Se passaram como um hino
Hoje só resta a lembrança
Do tempo em que fui criança
No meu torrão pequenino.

* * *

MINHA MENINICE

Foi-se meu tempo de flores
A data da inocência
Dos primeiros resplendores
Do sol da minha existência
Meu palacete dourado
Puramente bafejado
Das brisas celestiais
Felizes dias risonhos
Foram ilusões, foram sonhos
Que ao despertar não vi mais.

Estórias de belas vindas
De príncipes, reinos e fadas
Atrás de princesas lindas
Que ainda estão encantadas
Depois da hora da ceia
Ia saltar sobre a areia
Logo que a lua surgia
Sentia a má impressão
Olhando a sombra no chão
Fazendo o que eu fazia.

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PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

GRANDES MESTRES DO REPENTE

O paraibano Severino Lourenço da Silva Pinto, o Pinto do Monteiro (1895-1990)

* * *

Pinto do Monteiro:

Quando é de manhãzinha,
Se apagam os pirilampos,
O homem vai para os campos,
A mulher vai pra cozinha;
Sacode milho à galinha,
Se, por acaso, ela cria!
Canta o galo, o pinto pia,
Salta o bode no terreiro,
Se despede o violeiro,
Dando adeus, até um dia.

Recordo perfeitamente,
Quando em minha idade nova,
O meu pai abria a cova,
E eu plantava a semente.
Eu atrás, ele na frente,
Por ter força e mais idade…
Olhando a fertilidade
Da vastidão da campina,
Aquela chuvinha fina
Me faz chorar de saudade.

Em dezembro, começa a trovoada,
Em janeiro, o inverno principia,
Dão início a pegar a vacaria:
Haja leite, haja queijo, haja coalhada!
Em setembro, começa a vaquejada:
É aboio, é carreira, é queda, é grito!
Berra o bode, a cabra e o cabrito;
A galinha ciscando no quintal,
O vaqueiro aboiando no curral;
Nunca vi um cinema tão bonito!

* * *

Oliveira de Panelas:

Na mulher toda têmpera se envolve
Seu ciúme é cuidado impertinente
Seu desejo é fornalha incandescente
Quando pode, é perigo, o que devolve,
Quando está duvidosa só resolve
Pelo fio da ânsia propulsora,
Quando assume o papel de genitora
Aurifica seu corpo fecundante,
Pra tornar-se a maior representante
Dessa lei biológica criadora.

No namoro é centelha de ilusão
No noivado é a fonte de esperança
Sendo esposa é profunda a aliança
E faz unir coração com coração,
Como mãe é suprema adoração!
Sendo sogra é as vezes tempestade
Quando amiga, é amiga de verdade,
Sendo amante é volúpia no segredo,
Porém sendo inimiga causa medo
Ao mais forte machão da humanidade.

* * *

Lenelson Piancó:

Completou a missão como ninguém
Muito antes que o pai lhe resgatasse
Jesus Cristo virou a outra face
Pra que seu seguidor vire também
Assombrada, ficou Jerusalém
Por Jesus perdoar o bom ladrão
Nosso mestre deixou o seu perdão
Para quem lhe furou com uma lança
Não permita que o vírus da vingança
Contamine de vez seu coração!

* * *

Antônio Francisco:

Quem já passou no sertão
E viu o solo rachado,
A caatinga cor de cinza,
Duvido não ter parado
Pra ficar olhando o verde
Do juazeiro copado.

E sair dali pensando:
Como pode a natureza
Num clima tão quente e seco,
Numa terra indefesa
Com tanta adversidade
Criar tamanha beleza.

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PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

DOIS MOTES BEM GLOSADOS E UM FOLHETO BUNDEIRO

Marcílio Pá Seca Siqueira glosando o mote:

Eu não tive, não tenho nem vou ter
Condições de esquecer os beijos dela.

Sem os beijos daquela desgraçada
Sem um “xero” fungado em meu pescoço
É tirar o cuscuz do meu almoço
Ou trazer o pirão sem a buchada
Se deitar numa rede mal armada
Ou botar um espinho em minha sela
Esquecer de por sal numa panela
Ter os olhos na cara mas não ver
Eu não tive, não tenho nem vou ter
Condições de esquecer os beijos dela.

Eu tentei esquecer o nosso caso
Nossa história de amor e desventura
E dizer não passou de aventura
Foi um breve romance por acaso
Tá na hora do fim findou-se o prazo
Da história que unia eu e ela
Não importa a tristeza e a sequela
Que o fim do romance vai trazer
Eu não tive, não tenho e nem vou ter
Condições de esquecer os beijos dela.

* * *

Marcílio Pá Seca Siqueira glosando o mote:

Não existe uma carga mais pesada
Que essa carga que a vida põe na gente.

Quando era mais moço coloquei
Uma carga no lombo tão pesada
Que ao longo da longa caminhada
Sem pensar no futuro eu carreguei
Muito jovem e robusto eu não pensei
No meu ato infeliz e inconsequente
O meu corpo cansado agora sente
Os volumes da carga carregada
Não existe uma carga mais pesada
Que essa carga que a vida põe na gente .

Fui boêmio da noite doidejante
Foram noites de sono mal dormidas
Que abriram fissuras e feridas
Cicatrizes marcando meu semblante
De uma forma tão firme e tão marcante
Mas meu jeito de vida displicente
Tá cobrando uma conta atualmente
De uma vida de farra desregrada
Não existe uma carga mais pesada
Que essa carga que a vida põe na gente .

* * *

O PODER QUE A BUNDA TEM – José João dos Santos (Mestre Azulão)

Nesse troço de bunda e banda
O leitor não se confunda
Tanto a bunda como a banda
Tem uma atração profunda
Chico Buarque de Holanda
Ficou rico com a banda
Carla Perez com a bunda.

Nestes versos de humorismo
Não quero atingir ninguém
E sim, arrancar do povo
Risos que nos fazem bem
Dizer detalhadamente
O poder que a bunda tem.

A bunda que me refiro
É da mulher, com razão
Com o seu poder oculto
De magia e sedução
Que faz a visão direta
Deixando a mulher completa
De beleza e perfeição.

Com bunda grande e bem feita
A mulher se sente bem
Onde passa todos olham
Mas a mulher que não tem
Faz um gesto e sai olhando
Quem sabe até desejando
Ter bunda grande também.

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PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

GRANDES MOTES, GRANDES GLOSAS

Mote:

Quanto mais canto o sertão,
Mais tem sertão pra cantar.

João Paraibano:

Lembre-se de armadilha e quixó,
Pássaro beliscando frutas,
Mas não esqueço das matutas
Com o rosto cheirando a pó.
Doidas pra ir pra o forró,
E o pai sem querer deixar,
Mas estou perdido empatar:
Quando ele dorme, elas vão .
Quanto mais canto o sertão,
Mais tem sertão pra cantar .

Sebastião Dias:

Quando eu canto a capoeira,
O sertão é minha cara.
Canto o preá na coivara,
Canto o tejo na carreira
E o boi, quando tem visto
Que pega você incomoda,
Para a observação parar,
Passa a língua como a mão
Quanto mais canto o sertão,
Mais tem sertão pra cantar .

* * *

Mote:

No sertão falta água para o gado
Porém sobra nos olhos do vaqueiro.

Ivanildo Vilanova:

No sertão quando o solo está enxuto
Sofrem dois elementos de uma vez
Falta líquido pra língua de uma rês
Chovem gotas dos olhos do matuto
Ser humano padece, sofre o bruto
O segundo bem mais que o primeiro
Se dos olhos caísse um aguaceiro
O problema estaria saneado
No sertão falta água para o gado
Porém sobra nos olhos do vaqueiro.

Raimundo Caetano:

É assim lá na terra sertaneja
Bicho e gente sofrendo a mesma mágoa
No olhar do vaqueiro sobra água
Mas a bomba celeste não despeja
Quem aboia e campeia não deseja
Ver o gado com sede o ano inteiro
Nem o gado quer ver seu companheiro
Em um rio de lágrimas sufocado
No sertão falta água para o gado
Porém sobra nos olhos do vaqueiro.

Ivanildo Vilanova:

Dá um nó emotivo na garganta
quando a época da chuva vai embora
Sobra lágrima nos olhos de quem chora
Falta água na cova de quem planta
Se dos olhos cair não adianta
Que não enche cacimba e nem barreiro
Cresce mais a angustia e o desespero
Vendo o bicho sofrer sem ser culpado
No sertão falta água para o gado
Porém sobra nos olhos do vaqueiro.

Raimundo Caetano:

No sertão muitos sofrem sem motivo
E eu não sei se merecem sofrer tanto
Falta chuva no céu sobra no pranto
De quem cuida do gado inofensivo
O vaqueiro agradece ainda estar vivo
Personagem de um drama costumeiro
Vendo o sol afastar o nevoeiro
Alvejar criação, pessoa e prado
No sertão falta água para o gado
Porém sobra nos olhos do vaqueiro.

Ivanildo Vilanova:

Se repete esse drama no sertão
Fortaleza abissal dos aperreios
Os olhares humanos estão cheios
Mas os rios e poços não estão
Uma gota do céu não cai no chão
Ressecando inda mais o tabuleiro
Muge o boi mas da água nem o cheiro
Chora o homem com pena do coitado
No sertão falta água para o gado
Porém sobra nos olhos do vaqueiro.

Raimundo Caetano:

O trovão com a voz estrepitosa
Nas encostas do céu se locomove
O relâmpago aparece mais não chove
Que irrigue o pistilo de uma rosa
A promessa de chuva é enganosa
Só o choro do homem é verdadeiro
Quem mais sente é o vaqueiro e o fazendeiro
Vendo o gado sedento e castigado
No sertão falta água para o gado,
Porém sobra nos olhos do vaqueiro.

Ivanildo Vilanova:

Um vaqueiro soluça de manhã
Sem ter água no poço ou na cascata
Anda até seis quilômetros com uma lata
Perde as forças na aventura vã
Vê tombando de sede uma marrã
Uma vaca uma cabra ou um carneiro
E um garrote pertinho de um facheiro
À Espera do líquido esverdeado
No sertão falta água para o gado
Porém sobra nos olhos do vaqueiro.

Raimundo Caetano:

O sertão vive cheio de armadilhas
É um palco de cenas ruins e boas
Descem Lágrimas dos olhos das pessoas
Falta líquido no cocho das novilhas
Esqueletos de bichos sobre as trilhas
Muitas vítimas de um clima traiçoeiro
Na estampa do céu um fogareiro
No olhar do matuto um alagado
No sertão falta água para o gado
Porém sobra nos olhos do vaqueiro.

* * *

Mote:

Fiz um túnel na cela da saudade
Pra tentar escapar da solidão.

Wellington Vicente:

Recebi a sentença ainda moço
Pela lei mais severa de Cupido
Mesmo sem o histórico de bandido
Vivo preso neste feio calabouço
Bem na frente da cela existe um fosso
Onde uma valente guarnição
Se reveza em escala de plantão.
Nem o sol pode entrar em minha grade!
Fiz um túnel na cela da saudade
Pra tentar escapar da solidão.

Recorri, mas perdi nos tribunais.
Já não tenho esperanças como antes:
Dez motivos tenho como os agravantes
E nem cinco atenuantes tenho mais.
Com os poucos contatos pessoais
Consegui um pedaço de formão,
Toda noite, em silêncio, cavo o chão,
Falta um metro para a minha liberdade!
Fiz um túnel na cela da saudade
Pra tentar escapar da solidão.

PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

UMA DUPLA EM CANTORIA

A grande dupla de cantadores Sebastião Silva e Moacir Laurentino glosando o mote:

Sem a minha viola eu não sou nada,
mas sou tudo com ela no meu peito.

Sebastião da Silva:

Essa minha viola é companheira,
que dá tudo o que quero em minha vida,
é a deusa total e tão sentida,
que me serve de amiga a vida inteira,
essa minha viola é padroeira,
é a deusa que dorme no meu leito,
é a força que causa grande efeito,
é a deusa divina idolatrada.
Sem a minha viola eu não sou nada,
mas sou tudo com ela no meu peito.

Moacir Laurentino:

Eu sem esse pedaço de madeira,
já não tinha alegria em minha vida,
minha face seria entristecida,
porque falta a legítima companheira,
ela toca comigo a noite inteira,
eu com ela decanto satisfeito,
da maneira dum caboco do eito,
arrastando no cabo da enxada.
Sem a minha viola eu não sou nada,
mas sou tudo com ela no meu peito.

Sebastião da Silva:

Com a minha viola em minha mão,
penso, toco, divirto, bebo e canto,
vou com ela feliz pra todo canto,
pra exercer muito bem a profissão,
é com ela que eu tenho inspiração,
o meu verso no ato sai direito,
no repente que faço eu aproveito
caminhando feliz na minha estrada.
Sem a minha viola eu não sou nada,
mas sou tudo com ela no meu peito.

Moacir Laurentino:

Essa minha viola é ganha pão,
misturada com minha cantoria,
sacrifício, talento e melodia,
e um pouquinho da minha inspiração,
a palheta pegada em minha mão,
e o baião tão saudoso sai perfeito,
que eu com ela pelejo e me ajeito,
e num instante fazer bela toada.
Sem a minha viola eu não sou nada,
mas sou tudo com ela no meu peito.

Sebastião da Silva:

É a viola que espanta as minhas dores,
é quem mata as mágoas que eu sinto,
com a minha viola em meu recinto
canto modas em músicas e tenores,
gosto muito de ouvir dois cantadores,
para o povo ficar mais satisfeito,
um poeta canhoto, outro direito,
e a cantiga bastante fermentada.
Sem a minha viola eu não sou nada,
mas sou tudo com ela no meu peito.

Moacir Laurentino:

Sem a minha viola eu vou sofrer,
mas com ela inda gozo em meu destino,
que ela segue o poeta Laurentino,
e acompanha o que eu posso dizer,
que me dá de comer e de beber,
e com ela eu não tenho preconceito,
ao contrário aumentou o meu conceito,
ela é minha eterna namorada.
Sem a minha viola eu não sou nada,
mas sou tudo com ela no meu peito.

* * *

A DUPLA IMPROVISANDO NUM QUADRÃO PERGUNTADO

PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

GRANDES MOTES, GRANDES GLOSAS

Aluisio Lopes glosando o mote:

Toda vez que se prende um passarinho
Diminui na floresta um seresteiro.

Um pequeno vivente exilado
Canta o solo agrural da orfandade
No pequeno calabouço da saudade
Uma lágrima, no canto afinado
Lembra o laço que o tornou destronado
Do seu reino, velho angico altaneiro
Dos filhotes, não sabe o paradeiro
Um covarde caçador desfez seu ninho
Toda vez que se prende um passarinho
Diminui na floresta um seresteiro.

Vá na mata , sinta o cheiro da ramagem
O olor das flores, seu verdume
As abelhas doidivanas, no costume
Um regato cristalino, bela imagem
Borboletas multicores em passagem
Pergunte lá; se está tudo prazenteiro
Se, sem musica, sem cantor, isto é certeiro
Fauna e flora lhe responde: é só espinho
Toda vez que se prende um passarinho
Diminui na floresta um seresteiro.

Sob o visgo da covarde armadilha
De um covarde que não teve coração
Mente má que semeia escuridão
Mão cruel que apaga a luz que brilha
Que descarta a liberdade da cartilha
Que despreza o que disse o conselheiro
Ainda há tempo se arrependa companheiro
Deixe o menestrel voltar pro seu cantinho
Toda vez que se prende um passarinho
Diminui na floresta um seresteiro.

Quem não fez nenhum crime, o que merece?
Sem juízo, viver posto na prisão?
Pegar pena perpétua, sem razão?
Então, o que quer que ele confesse?
Se o homem é o rei, por que se esquece?
Que liberdade, só presta por inteiro
Que esse bicho pequenino é o curandeiro
Dos que sofrem na mata sem carinho
Toda vez que se prende um passarinho
Diminui na floresta um seresteiro.

O pentagrama natural da mãe natura
Sente a falta das notas do cantor
Quando em solo delirante, o torpor
Invadia tudo em sua tablatura
O compasso da pequena criatura
Fez-se pausa no tempo, em tempo inteiro
Em exílio eternal do seu terreiro
Melancólico, canta então pobre bichinho
Toda vez que se prende um passarinho
Diminui na floresta um seresteiro.

Um corista está faltando no coral
A sinfônica sente a falta do cantor
Sente a flora, o gorjeio que faltou
A cantata de então não é igual
Sua falta faz falta no festival
Se perturbe, se comova carcereiro
Quebre as talas, abra a porta do viveiro
Deixe a mata ter de volta o cantorzinho
Toda vez que se prende um passarinho
Diminui na floresta um seresteiro.

* * *

Jó Patriota de Lima glosando o mote:

Passa tudo na vida, tudo passa,
Mas nem tudo que passa a gente esquece.

Passa dia por mês e mês por ano
Passa ano por era, era por fase
Nessa base tão triste eu vejo a base
Do destino passar de plano em plano
Com a mão da saudade o desengano
Passa dando um adeus fazendo um S
Vem a mágoa o prazer desaparece
Quando chega a velhice, foge a graça,
Passa tudo na vida, tudo passa,
Mas nem tudo que passa a gente esquece.

* * *

Gregório Filó glosando o mote:

Meu engenho de saudade
Quebra cana todo dia.

O meu engenho de aço
Não moeu mais uma cana
Já faz mais de uma semana
Que um alfenim eu não faço
Não vendi mais um cabaço
De garapa a freguesia
A máquina da nostalgia
É que trabalha à vontade
Meu engenho de saudade
Quebra cana todo dia.

Nunca mais fiz uma farra
Por causa da falta dela
Vou como um boi de barbela
Atrelado à almanjarra
A moenda só esbarra
De encontro à melancolia
E a fornalha não esfria
Queimando a felicidade
Meu engenho de saudade
Quebra cana todo dia.

* * *

Manoel Xudu glosando o mote:

A viola é a única companheira
Do poeta nas horas de amargura.

Se eu morrer num sábado de aleluia
E for levado ao campo mortuário,
Se alguém visitar o meu calvário,
Jogue água em cima com uma cuia.
Leve junto a viola de imbuia,
Deixe em cima da minha sepultura.
Muito embora que fique uma mistura
De arame, de pus, terra e madeira,
A viola é a única companheira
Do poeta nas horas de amargura.

PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

GRANDES MESTRES DO REPENTE E UM CORDEL DE CANCÃO

Lenelson Piancó

Quando a chuva passava aparecia
Muita água descendo o tabuleiro
E um açude na curva do terreiro
Com uma quenga de coco eu construía
Como eu nunca entendi de engenharia
Meu diploma foi só de agricultor
O açude não tinha sangrador
Toda vez que enchia, ele arrombava
No passado era assim que se criava
Um menino feliz e sonhador!

* * *

Cicinho Gomes

Eu admiro o cancão
Na cabeça de uma estaca;
Olha pra baixo e pra cima
Acuando a jararaca
Como quem diz : “Ó meu Deus!
Ah se eu tivesse uma faca!”

Eu admiro demais
É uma gata parir,
Pegar o filho na boca,
Levar pra onde quer ir.
Nem fere o filho no dente,
Nem deixa o gato cair.

* * *

Bráulio Bessa

Sou o gibão do vaqueiro,
Sou cuscuz sou rapadura
Sou vida difícil e dura
Sou nordeste brasileiro
Sou cantador violeiro,
Sou alegria ao chover
Sou doutor sem saber ler,
Sou rico sem ser grã-fino
Quanto mais sou nordestino,
Mais tenho orgulho de ser.

Da minha cabeça chata,
Do meu sotaque arrastado
Do nosso solo rachado,
Dessa gente maltratada
Quase sempre injustiçada,
Acostumada a sofrer
Mais mesmo nesse padecer
Eu sou feliz desde menino
Quanto mais sou nordestino,
Mais orgulho tenho de ser.

Terra de cultura viva,
Chico Anísio, Gonzagão
De Renato Aragão
Ariano e Patativa.
Gente boa, criativa
Isso só me dá prazer
E hoje eu quero dizer
Muito obrigado ao destino,
Quanto mais sou nordestino
Mais tenho orgulho de ser.

* * *

Zé Saldanha

Sou poeta sertanejo,
Sei o caminho onde passo
Tem muito poeta grande
Que nunca fez o que faço
Nem sabe tudo que sei
Nem traça o traço que traço.

Baralho tem 4 ases,
Quatro Duques, 4 Três,
Quatro 4, quatro 5,
Quatro 8, quatro 6,
Quatro 9, quatro 7,
Quatro 10, quatro valetes,
Quatro Damas, quatro Reis.

* * *

Generino Batista

Nós somos dois caborés
cantando aqui neste escuro
é um em cima de um toco
o outro em cima de um muro
e quem tá de fora dizendo:
– Ô caborés sem futuro!.

Eu moro num pé de serra
que não sabe ler ninguém
o meu pai chama “promode”
minha mãe chama “quiném”
e o filho de um casal deste
que português é que tem?

* * *

Manoel Dodô

Na profissão de carreiro,
eu faço tudo e não deixo,
compro sebo ensebo o eixo,
a canga e o tamoeiro,
sete palmos de fueiro
medidos na minha mão,
uma vara de ferrão,
dois canzis de mororó:
carro de boi e forró
faz eu gostar do sertão.

* * *

UM CORDEL DE JOÃO BATISTA DE SIQUEIRA, O CANCÃO

A CASA DO ÉBRIO

Era um casebre tristonho
De cujas paredes tortas
Vinha um rangido enfadonho
Dos gonzos de duas portas
As telhas já nodoadas
Duas roletas deitadas
Numa camarinha escura
O vento, quando passava
Parecia que falava
Nas frinchas das fechaduras.

Na parede do nascente
Um banco desmantelado
Um garrafão de aguardente
Que ainda havia sobrado
Junto ao quarto de dormida
Cera que foi derretida
Do resto de algumas velas
No chão, marcas de escarros
Cacos de vidros, cigarros
Rolavam por cima delas.

Uma rede remendada,
Outra parte descosida
Em um torno pendurada
Pela fumaça tingida
De um lado havia um cambito
Onde um couro de um cabrito
Sobre um arame pendia
Mais adiante, um jirau
Junto à travessa de um pau
Onde um morcego vivia.

Uma corda, uma rodilha
Bem acima de um caixão
Um pote, numa forquilha
Vazava junto ao fogão
Um gato cego e doente
Deitado sobre um batente
Por certo sentia sono
De fora, um jumento olhava
O seu olhar revelava
A malvadez do seu dono.

Uma vara de ferrão
A banda de uma tigela
Meio quilo de sabão
Embrulhado dentro dela
A banda de um cobertor
Atada em um armador
Onde havia um candeeiro
Uma camisa de saco
Mostrava por um buraco
A tampa dum tabaqueiro.

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