De uns tempos pra cá, não passa um único dia sem que eu ouça a palavra “narrativa”. Geralmente, alguém responsabilizando outra pessoa, de interesses contrários, por sua criação:
— Ele está construindo uma narrativa!
— Essa narrativa não pára em pé!
— Enquanto nós apresentamos fatos vocês vêm com narrativas!
Lembro de quando escrevi o seguinte, em 2019:
Palavra também entra na e sai de moda. É por isso que quase ninguém diz hoje em dia que vai dar um “amplexo” em “outrem”. Já “impactar” e “agregar valor” são termos que escutamos várias vezes em um mesmo dia.
“Resiliência” também me parece em alta. “A nível de” teve seus dias de glória, depois perdeu força. “Meme” e “viralizar” são como startups: têm seu habitat natural na internet.
Falava eu então sobre a palavra “transparência”, que não apenas estava na moda (e ainda se mantém), mas havia ganho destaque com um sentido diferente do original, conforme demonstro no referido texto (clique aqui para acessar).
Naquela época, “narrativa” ainda não tinha adquirido a popularidade que tem hoje, mas observo que também neste caso temos uma palavra que ganha destaque ao mesmo tempo em que muda de sentido.
Afinal, até recentemente, “narrativa” era uma palavra que interessava basicamente a quem se preparava para o vestibular:
— A redação pode ter a forma descritiva, dissertativa ou narrativa! — dizia a professora,
O sentido atual é outro, de conotação pejorativa. “Narrativa”, no sentido que se tem dado ultimamente, é algo que não merece crédito. Uma versão fantasiosa dos acontecimentos. Não propriamente uma mentira, mas um encadeamento de fatos verdadeiros (perdoem-me a redundância), expostos de forma a induzir o interlocutor a erro, ou conduzi-lo a uma conclusão previamente estabelecida e desconectada da realidade.
Nesse mister, o autor ou propagador da narrativa pode lançar mão de recursos retóricos, dando ênfase, por exemplo, a determinados aspectos dos fatos expostos. Ou misturá-los a subjetividades e intenções nem sempre demonstráveis, mas muito bem recebidas por quem comunga das convicções do narrativista.
Aliás, após escrever o parágrafo anterior, procurei a palavra “narrativista” no Google, e fiquei sabendo que o Dicionário On Line de Português ainda não tem um significado para “narrativismo”.
Encontrei, sim, referências ao narrativismo, em estudos de psicologia, mas não me considero apto a comentá-las. Aqui, narrativista significa apenas “a pessoa que cria ou propaga uma narrativa”, no atual sentido atribuído à palavra “narrativa”, o que, pelo que se deduz, é algo bem diferente de narrador.
Dicionarizado ou não o narrativismo, o certo é que esse novo sentido deu força à palavra “narrativa”, trazendo-a para o centro dos debates políticos. Parlamentares de esquerda e direita usam e abusam, não apenas da palavra, mas também da prática que ela descreve.
Nenhuma novidade na parte final do parágrafo anterior, mas agora há um novo significante para o significado.
Embates políticos à parte, acredito que nem todo mundo se dê ao trabalho de observar os detalhes de quando uma palavra surge ou adquire um novo sentido em nosso idioma. Para mim, no entanto, é como descobrir uma nova espécie. Daí a vontade de chamar a atenção para o acontecimento.
No mais, garanto que me limitei a apenas expor os fatos. Mas não me surpreenderei se algum leitor disser que estou criando uma narrativa.