O tic-tac do relógio de parede quebrava o silêncio da tarde se despedindo. A noite já espreitava escurecendo o dia. Ricardo apurou os ouvidos tentando encontrar respostas para uma inquietação. Onde estaria Esmoler? O amigo se ausentara no meio do cochilo da tarde. Não era seu costume sair sem avisar. Esperava ouvir seus passos subindo os batentes, rangendo a madeira sob o peso de cada passada.
O cego segurou a bengala pelo meio. Bateu duas vezes com o objeto no canto da mesa. De repente uma música veio à sua lembrança. A voz do cantor ecoando em sua lembrança. Sentiu o cheiro da dama que lhe abraçara duas vezes antes de dizer “até amanhã”. Um amanhã que nunca ocorreu para os dois. No outro dia ele viajara cedo, sem o nome dela, sem seu endereço… apenas a sensação do calor de sua mão sobre sua mão.
Poucos anos depois, quando a vista já dava sinais de cansaço, assistia na TV um programa de calouros quando a viu: julgava o concurso. Descobrira ali o nome dela.
Coincidência ela haver dado a maior nota justamente para o rapazinho que cantara Unchained Melody num Inglês perfeito. A mesma que dançaram duas vezes – ele pagara para a orquestra repetir – antes de saírem andando pela madrugada, como se não tivessem para onde voltar.
Descobrira pela TV o quanto estavam distantes um do outro. A saudade que sentiu naquele momento foi maior que a distância.
Estava nessas lembranças quando ouviu os passos de Esmoler e os reclames da madeira. Em seguida os passos pararam, a chave foi introduzida na fechadura, girou, a maçaneta desceu com um rangido baixinho. Mais baixo que o ruído das dobradiças se curvando na abertura da porta.
– Ricardo, desculpe-me sair sem avisá-lo – Esmoler falou depositando um pacote sobre a mesa. – Seu sono estava de ronco.
– Não se desculpe por isso. Se desculpe por me haver partido agora uma lembrança boa – falou baixando a cabeça.
– Qual? Posso saber?
– Ah, meu amigo Esmoler! Você não compreenderia. Precisaria sentir a distância e a saudade como eu as sinto, para entender.
– Entender? O quê? Fale-me – pediu o amigo.
O cego levantou a cabeça como se pudesse ver pela janela do apartamento. Houve um silêncio. Por fim falou:
– Que a distância é o parâmetro físico ou temporal pelo qual se mede uma saudade. Quanto maior a distância, maior a saudade.
Ficaram outra vez em silêncio.
Esmoler deixou a sala. Entrou no quarto, acendeu a luz e se perdeu em outras preocupações.
Ricardo tamborilou na mesa e cantou baixinho “God speed your love to me”, repetindo as duas últimas palavras com uma saudade eterna.
Na parede o relógio sabia exatamente do tempo presente.