JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

UMA GRANDE HISTÓRIA

Essa é a história improvável de um menino que trocou sua infância pela aventura (quase insensata) de conquistar o mundo. Por saber, desde cedo, qual roteiro estava prometido para ele – o de escapar das entranhas do Brasil popular e profundo para ser um dos grandes personagens de seu país.

Em bem conhecido livro escrito há exatos 50 anos, Surveiller et punir, Michel Foucault dizia que ao ver riscos deixados na neve era capaz de saber os pesos e as habilidades dos esquiadores. Razão pela qual concluiu “A identidade é uma trajetória”. O que vale para o presente caso. Aqui, neste livro, se fala dos caminhos percorridos por João Carlos Paes Mendonça. O que faz lembrar o poeta do rio Guadalquivir, Don Antonio Machado Ruiz, em Proverbios y cantares:

“Caminhante, são tuas pegadas
O caminho e nada mais
Caminhante, não há caminho
Se faz o caminho ao andar”.

Falava de barcos sem nenhuma rota, nas águas em frente, só com “estrelas no mar” pelas quais se guiam os navegadores. Deixando, atrás de si, espumas que podem ser seguidas. Como uma estrada. Uma vereda. Um caminho. E lembro, pela proximidade nos temas, salve António Gedeão (na verdade Rómulo Vasco da Silva Carvalho) que, em Impressão digital, escreveu:

“Inútil seguir vizinhos
Querer ser depois ou antes
Cada um é seus caminhos
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São Gigantes”.

Uma bela definição, “cada um é seus caminhos”. O dos esquiadores na neve, de Foucault. O dos navegadores, no mar de Machado. Os que definem o personagem desse livro, a partir de Gedeão, ao mesmo tempo como Sancho e Quixote. O Escudeiro na compreensão de que, para sobreviver na atividade econômica, deveria jogar as regras do mercado. E fez isso bastante bem, não há dúvida, tanto que é hoje um dos mais importantes empresários do país. Mas foi também o Cavaleiro Andante, nas ações sociais, em que igualmente se destacou de maneira exponencial. Cumprindo, na vida, pelo menos três compromissos principais. A ver:

O primeiro compromisso é íntimo, com o ser correto numa dimensão ética. Razão pela qual sempre mereceu respeito de todos e cada um dos que cruzaram com ele, nesse mundão de meu Deus. Desde muito jovem, que já estava trabalhando na loja do pai quando todos em volta, na sua idade, ainda jogavam bolas de gude. E pensou generosamente, sempre, sem limites, cercas ou fronteiras.

O segundo compromisso é com o coletivo. Nos comentários econômicos que publica nos jornais, por exemplo, não se apontará um sequer em que tenha defendido interesses pessoais. Ou de suas empresas. São sempre temas ligados a algo mais amplo, o interesse público. Como o embate contra as desigualdades regionais. A falta de racionalidade no planejamento da ação governamental. Mais recentemente, a necessidade de desburocratizar o país. A preocupação com o futuro. E nunca em tom de frustração, de lamento, de perda, sentimentos hoje banalizados em nossas elites. Ao contrário, demonstrando sempre confiança no futuro. A mesma que teve quando saiu, sem sair, de Serra do Machado.

O terceiro compromisso, aquele que considera hoje mais relevante, é com o social. Em razão do que vai passar pela existência deixando marcas a perdurar. Ele, que veio de baixo e ascendeu pelo duro suor do rosto, sentia no coração que seu dever seria o de permitir que tantos jovens, como os que um dia foi, tivessem a chance concreta de ter inclusão social a partir de educação e ensino de ofícios. No sonho implausível de escrever seus próprios destinos. Uma missão, literalmente, redentora. E faz isso já por quase todo o Nordeste, como adiante se verá melhor nessas folhas.

Em Serra do Machado seu Zezinho, com rosto que parecia fazer parte da paisagem, apontou a casa de sua família dizendo “João nasceu aqui”; e confirmou, em seguida, “com 9 anos ele já tomava conta da loja do pai”. A imagem talvez seja uma chave para desvendar aquela trajetória que é sua identidade. Indicando que se pode partir, sem nunca partir realmente. Sua presença, naquela pequena cidade, era um resgate da infância que não teve. Um como que retorno às origens da família, aos sonhos e às memórias de um tempo sem volta. Um compromisso com crianças quase sem futuro. Provando que difícil nem é vir de um lugar perdido no mapa, como Serra do Machado, para ser cidadão do mundo. Difícil, mesmo, é vir de Serra do Machado e não esquecer disso. Sem se perder no caminhar.

Robert Frost (em Poemas completos) escreveu: “Alguns dizem que o mundo acaba em fogo/ Outros dizem que em gelo”. No seu caso, não é o mundo que finda, mas começa, com o fogo – o livro e a história adulta dele próprio. No tanto em que as chamas, ao destruir tudo que tinha construído até então, valem como um convite a começar de novo. Com ânimo redobrado. Com uma força que vem de dentro. E esse fogo haverá de perdurar em torno dele, para sempre, nas gerações que virão. A partir de seu exemplo.

No fundo, este livro revela uma trajetória nada comum, a de um homem incomum. Razão pela qual é com alegria e justiça que se vê agora, em livro, a saga majestosa de João Carlos Paes Mendonça.

*Prefácio para O grupo e a trajetória de JCPM, livro lançado nesta segunda (12/05/2025).

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

A ARTE DE CONVERSAR

Os homens, no começo, comunicavam-se por gestos. Ou símbolos. Até hoje, ao menos alguns gênios. Como Rubem Braga, que era de Cachoeira de Itapemirim, a terra de Roberto Carlos. E, todas as madrugadas, falava com Millôr Fernandes (os apartamentos eram próximos) mexendo os braços, como aprenderam na marinha. Millôr começava:

‒ B/o/m/ d/i/a/.

E Rubem, exagerando como sempre,

‒ B/o/m/ d/i//a m/e/u/ c/a/r/o/ c/o/l/e/g/a/ d/e/ p/r/a/ç/a/s/ e/ d/e/ m/a/d/r/u/g/a/d/a/s.

Saudades dos amigos queridos. Só que esse tipo de comunicação logo foi substituído pelas palavras. Também aqui havendo problemas, com relação às distâncias, que a voz ia só até onde o ouvido pudesse escutar. Cito um caso. Emilio Menezes, na Academia Brasileira de Letras, odiava o confrade Oliveira Lima ‒ por Gilberto Freyre definido como Quixote Gordo. Quando estava no Rio, não era sempre, Oliveira e sua mulher, Flora, todas as tardes saiam de braços dados para caminhar em Copacabana. Emílio ficava na esquina do edifício e, quando passavam, dizia com altura de voz suficiente para que Oliveira, pobre dele, pudesse ouvir

‒ Aí vão a Flora e a Fauna da literatura brasileira.

Com o tempo, essa comunicação foi mudando. E conversas, entre pessoas próximas, passaram a se dar também por formas diferenciadas. Seguem três exemplos, em conversas de que participei com outros amigos, todos especiais na minha vida. E, com cada um deles, aprendi muito. Sobretudo vendo a vida por outros olhos, mais serenos e tranquilos, compreendendo a beleza que se pode ver na natureza, nas obras dos homens, nos gestos. Grandes personagens.

O primeiro foi Noberto Bobbio, de Turim (Itália), para Luigi Ferrajoli (L’itinenario di NB: della teoria generale del diritto alla teoria dela democrazia) “maior filósofo teórico do Direito e maior filósofo da política”. Fui seu primeiro tradutor, no Brasil (texto inicial, Diritto e Forza). Nossas conversas ocorreram sempre via cartas; hoje, diria Pessoa, em “tintas remotas e desbotadas” (Álvaro de Campos, O esplendor dos mapas). Até cheguei a convidá-lo para vir ao Recife. Respondeu de maneira curiosa, dizendo não, preferia ficar em casa, “que já começo a sentir as primeiras mordidas da velhice”. Apesar disso viveu bem e só nos deixou em 2004, com 94 anos.

O segundo foi Carlos Drummond de Andrade, a partir de 1985, dois anos antes do seu fim. A relação começou quando, na Capitania dos Portos, registrei o nome de um pequeno barco a vela, que tinha, usando verso de seu Poema das sete faces (aquele do “Mundo, mundo, vasto mundo/ Se eu me chamasse Raimundo/ Seria uma rima, não uma solução”), que era “Mais vasto é o meu coração”. E mandei foto dele ao mar, navegando. Respondeu com bilhete, que até hoje guardo, “Meu verso num barco ‒ haverá maior prêmio para um poeta?” A partir daí, conversávamos com frequência às noites. Por telefone. Andava já longe dos tempos em que se divertia falsificando a assinatura do ministro da Educação, seu chefe Gustavo Caponema, em bilhetes que enviava para os amigos. Estava, desde a morte da filha única Julieta (câncer), já desencantado com a vida. Por vezes repetia frase que antes escrevera, “do meu passado só restam mortos” (Claro Enigma). Não durou muito depois de se sentir sozinho e nos disse adeus em 1987.

O terceiro foi o uruguaio Eduardo Galeano. Nossas conversas se deram sempre a partir de e-mails em que se assinava HUGALE ‒ uma espécie de heterônimo a partir do nome, eduardo HUGhes GALEano. Das definições que costumava lembrar me encantou uma que citava sempre, do amigo Fernando Birri, sobre a utopia: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos e se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais o alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Estávamos acertando uma vinda sua à praia da Lagoa Azul, para provar do mar de Pernambuco, quando começou a sofrer com um câncer injusto. Ao encerrar conhecido poema (O direito de sonhar), escreveu que “Neste mundo…/ Seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro/ E cada noite como se fosse a última”. E assim se deu, pena, sua última noite ocorreu em 2015.

Só que, hoje, tudo vai sendo substituído pela internet. Que ela é quase Deus; por ter, como ele, os dons da Ubiquidade, da Onisciência e da Onipotência. Sem contar que, depois da inteligência artificial, as coisas vão ficando ainda pior. E já pressinto aquele dia inevitável em que vai aparecer, na telinha do computador, um cidadão que tenha como endereço eletrônico OTODOPODEROSO@CÉU.COM, em mensagem dizendo

‒ Bons dias, amigo José Paulo, estou à sua espera para jantar.

Se assim for, e quando for, estou preparado para responder

‒ Não posso, escusas, que vou encontrar com um neto.

Para, espero, ele responder

‒ Lamento não ter tido um, fiquei só com o Filho, pena para mim. Considerando suas palavras, então, vamos deixar nosso encontro para o próximo ano. Graças. Adeus.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

A DEUSA CORRUPÇÃO

Vyshareth era deusa da corrupção, da crueldade, da decadência e da morte. Descrita, nos livros de mitologia, como “astuta, cruel, maliciosa, misteriosa, odiosa, rancorosa”. Mas não é dela que se falará, por aqui.

O título da coluna se inspira no ministro do STJ (que por muitos anos fez parte de nosso TRF da 5ª Região, onde foi Presidente), Marcelo Navarro Ribeiro Dantas. Vi foto de uma placa, em praia do Rio Grande do Norte, e perguntei se seria aquela na qual está sua casa. Dizia

‒ BAR CÚ DO MUNDO.

Ele reagiu como um poeta

‒ Se fosse na minha praia (Pirangi), deveria ser BARCO DO MUNDO.

Usando o sistema do ministro, para definir este pequeno artigo, teríamos então como título certo aquele pelo qual os cidadãos de bem deste país tanto anseiam, ainda,

‒ ADEUS À CORRUPÇÃO.

Durante algum tempo até pareceu que andávamos no caminho certo, com a Lavajato. Questão central, mais que problemas formais como foro mais (ou menos) adequado, é que sobretudo incomodava muitíssima gente. O Poder Econômico, com as maiores empreiteiras e grandes grupos empresariais do país. A Classe Política, com parlamentares em risco, muitos deles presos. Dirigentes partidários, quase todos já condenados. Até ministros do Supremo que recebiam propina, como “O amigo do amigo de meu pai” ‒ todos sabem quem é. Seria necessário acabar com essa tentativa de moralização, e logo, quem essa Força-Tarefa pensa que é? O Brasil precisava, na visão utilitária desses, voltar a ser o que sempre foi, um paraíso da corrupção. E dos corruptos. E assim se deu, ao fim. Pena.

A prisão de Collor agora ocorrida, nesse contexto, é quase uma ironia. Vemos (quase) todos os condenados, processados ou envolvidos naquelas práticas eticamente deploráveis, em cargos públicos. No centro do poder. Um deles, mesmo condenado a 400 anos, passeia em Copacabana, faz selfies, dá entrevistas às televisões e já diz que será candidato no próximo ano (2006). Com a convicção íntima de que jamais voltará às cadeias. Só Collor (e Renato Duque, dois num mundo), em cana. É injusto. Ou todos os corruptos na cadeia, ou todos na farra, diria se vivo estivesse o amigo Millôr.

Um sistema como o nosso, onde o mau exemplo vem de cima, tem consequências deploráveis. Essa roubalheira do INSS por exemplo, hoje nas páginas de todos os jornais, aconteceu somente porque os beneficiários acreditavam permanecer impunes. A começar pelo próprio ministro. Em divertida charge de J. Caesar, um cidadão pergunta “‒ Roubaram os aposentados no INSS, como os ladrões chegaram lá?”. E outro responde “‒ Foram nomeados”. É isso. Com os precedentes espraiando suas consequências. Dizem os jornais que até um irmão do presidente da República é chefe de uma das instituições beneficiadas. E não acontece nada com ele?, cabe perguntar. O sangue vale como proteção? Só vão para cadeia os peixes pequenos?

Nesse passo, bom lembrar o Sermão do Bom Ladrão proferido, em 1655, pelo padre António Vieira. Na Igreja da Misericórdia (Conceição Velha, Lisboa), perante D. João IV e sua corte. Palavras suas: “O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Uns furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam”.

Até coisas simples parecem não incomodar os poderosos. Um ministro do Supremo vai num avião da FAB ver, em São Paulo, um jogo do Corinthians. Depois volta, naquele avião enorme com um só passageiro, em viagem não republicana. Tudo custeado pelo povo brasileiro. E não vê nisso nada demais? Todos sabem que está errado, só ele não. Ele e seus colegas do Supremo. Quem pode, pode, no íntimo diz (dizem). Já se preparando para viajar, de novo, no próximo jogo. E tudo protegido por sigilo de 5 anos decretado pelo Presidente da República, sem razão decente para determinar tal sigilo.

É constrangedor ver corruptos de outros países, como o Peru, sendo condenados e presos por conta da mesma roubalheira da Odebrecht que aqui já não incomoda os poderosos. E a reação do governo é risível. Concede asilo a uma condenada de lá e a traz para sua nova casa em avião da FAB, tudo pago com recursos do povo brasileiro. Por solidariedade humana?, como dizem. Ou porque ameaçou abrir o bico e contar quem ajudou na operação, em nosso país?, segundo alguns jornais. Eis a questão. Nunca se saberá, com certeza.

Em resumo, ainda sonho com o dia em que o Brasil vai virar um país mais limpo, mais correto, mais honesto que o de hoje? Será pedir demais?, amigo leitor. E já que de Vieira falei, nesse texto, encerro com ele no mesmo Sermão: “Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis”. Ao menos isso.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

FRANCISCO, JÔ, VILAÇA

Uma procissão de mortos. Vida injusta, amigo leitor, que os três eram mesmo especiais. Deus do céu, nesse mundo de hoje, quando tantos outros fariam menos falta… Mas segue a vida. E aqui vão, sobre cada um deles, umas poucas palavras desimportantes.

1. PAPA FRANCISCO. Numa cantoria, os amigos João Paraibano e Sebastião Dias (saudades deles) encerraram um dos baiões de abertura (em sextilhas, sempre sobre um tema específico), dizendo

– O Papa da Argentina
Deixa a gente muito grata
Em vez de um anel de ouro
Preferiu anel de prata
Parece que ele não gosta
De usar broche nem gravata.

Esses cantadores… Papa usando broche? Ou gravata? Como é que pode? O próprio Francisco responde (numa entrevista sobre Tomás de Aquino): “Pedimos ao Senhor a capacidade de sorrir, a vida tem sempre algo para se sorrir. O senso de humor é um certificado de sanidade. O senso de humor humaniza. Humaniza tanto…”.

2. JÔ SOARES. Numa conversa, Jô disse

– Maior sonho que tenho é o de ser Papa. Mas isso não posso, e é pena.

A ele expliquei que o Vaticano era uma Monarquia. Há dois tipos delas. Uma sanguínea, como a Inglaterra, onde só podem ser escolhidos aqueles de sangue nobre. “Azul”, assim se diz (embora seja tão vermelho como o nosso). Se chamam Reis (ou Rainhas). Enquanto a outra Monarquia é por votos (um só país, o Vaticano), dirigida por Papas.

Para ser um deles, precisa somente ser batizado. E recordei, a Jô, o Cânon 332 do Código de Direito Canônico: “Se o eleito não tiver caráter episcopal, será imediatamente ordenado Bispo”. Fosse ele e seria, então, Bispo Jô. E, em seguida, Papa (com o nome que escolhesse).

Sobre quem pode eleger, nisso teria que tomar providências. Expliquei que o Canon 33 do mesmo Código de Direito Canônico restringe, o colégio eleitoral, aos “Cardeais da Santa Igreja Romana com exceção daqueles que, antes do dia da morte do Sumo Pontífice ou do dia no qual a Sé Apostólica ficar vacante, tenham completado 80 anos”.

Naquele tempo, não lembro mais quantos eram. Hoje são 136, dos quais 108 nomeados por Francisco. Dito isso sugeri ao Gordo que bastava ele conseguir, em Roma, apoio para que os cardeais votassem nele.

– Quero não.

– E por que?, homem.

– Vai dar muito trabalho.

E preferiu abdicar do sonho para continuar vivendo a vidinha boa que levava no seu belo duplex de Higienópolis (bairro nobre de São Paulo). Viva Jô.

Este colunista sendo entrevistado no Programa Jô Soares

3. MARCOS VILAÇA. Nas sessões da Saudade do querido Vilaça, na Academia Brasileira de Letras e também na Academia Pernambucana de Letras, comecei dizendo

‒ Vilaça e eu não tínhamos nada em comum; e, portanto, tínhamos tudo em comum.

Explico melhor. Referi o momento em que nos conhecemos, em 1969, quando nosso Brasil vivia os mais duros anos da sombria Ditadura de 1964. Vilaça ocupou cargos importantes, em nosso estado e no país. Entre eles o de ser uma espécie de ministro da Cultura, quando foi Presidente da Fundação Pró-memória; diretor dos Centros Sociais Urbanos; ou diretor da Caixa Econômica Federal. Depois, ainda foi Ministro do TCU (e seu Presidente).

Enquanto eu apenas queria mais Democracia. O que me levou a ser proibido de estudar, no Brasil; e, depois, também proibido de ensinar. Sem contar ameaças do CCC e outros incômodos. Sobre esse tempo dr. José Paulo pai, me vendo calado (jamais esquecerei), disse

‒ Meu filho, se incomode não que um dia você ainda vai por tudo isto no seu currículo.

Mas essas diferenças jamais interferiram em nossa relação. Por fora da pompa e circunstâncias, prevaleceram sempre as relações pessoais. O que nos levou a ser compadres pelos dois lados. Maria do Carmo e ele, padrinhos de nosso casamento e dos filhos; Maria Lectícia e eu, padrinhos nos casamentos dos filhos dele.

Conto apenas um episódio, ocorrido naquele tempo, para dar exemplo de nossa relação. Era eu presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Católica. E, certa vez, chegou por lá um militar da PM sem farda, em roupas civis, que disse

‒ O comandante da PM quer falar com o senhor semana próxima, no escritório dele.

Talvez por conta de processo que respondia por lá (depois cancelado, por envolver militar que frequentava um Hospital psiquiátrico, qualquer dia conto isso melhor). Respondi

‒ E onde está a intimação?

‒ O convite é de boca.

‒ Já que de boca é diga ao comandante, de boca também, que não vou.

Desapareceu do lugar e voltou 20 minutos depois, com (agora) uma intimação. Era para ir no dia seguinte, às 6:00hs da manhã, ao quartel da Polícia Militar.

‒ Agora sim, diga ao comandante que amanhã estarei na sua sala, com muito prazer.

Não sei se ele percebeu a ironia na resposta. E a hora foi uma espécie de vingança. Tanto que fiquei esperando, sentado, desde aquela hora bem cedo, até o meio da manhã, quando o comandante afinal chegou. Minha preocupação era só o fato de ser comum, naquele tempo, que opositores do governo desaparecessem como por encanto. E fiquei preocupado que algo assim também pudesse acontecer comigo. Então passei na casa de Vilaça, entreguei a ele a tal intimação, e disse

‒ Amigo, fique com esse papel. Se amanhã não aparecer em casa até a noite, você sabe onde estou. E, por favor, diga isso aos velhos.

Assim eram nossas relações que, com o passar do tempo, ficaram mais e mais sólidas. E por que digo isso?, agora. Para indicar que, mesmo em tempos duros, as pessoas podiam conviver bem. Havia mais compreensão. As relações pessoais eram prevalentes.

Passam os anos e chegamos ao Brasil de hoje, amigo leitor. Radicalizado. Irritado. Desalentado. Onde as pessoas têm dificuldades para conviver. Até dentro das famílias. Com sangue nos olhos. O passado era melhor que o presente. Pobre de nós. Pobres país. Saudades de um Brasil que não existe mais.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

CONVERSAS DE ½ MINUTO (40) ‒ PROFESSORES

Mais conversas, hoje só com professores e afins, em livro que estou escrevendo (título da coluna).

ANATÓLIO JULIÃO, cientista social. Fundação Joaquim Nabuco. Conferência de Per-Erik Nilsson, principal Ombudsman da Suécia (Justitieombudsman, escolhido pelo Congresso). Como só falava sueco, junto dele estava um tradutor. Na hora das perguntas levantou Anatólio, filho do grande Francisco Julião (das Ligas Camponesas), e dirigiu-se à mesa dos trabalhos

– Como fazemos?, Presidente, eu falo e o tradutor traduz?

– Se preferir, primeiro o tradutor traduz; e, depois, o senhor fala.

Tumulto na sala, com todos gozando Anatólio. Cinco minutos depois, tentou falar mas não conseguiu, pois um gaiato gritou

– Cale a boca, idiota, que o tradutor ainda não traduziu nada.

Outros cinco minutos de algazarra. O que surpreendia todos era a tranquilidade de Anatólio. Como se aquilo tudo não fosse com ele. Novamente em paz, o recinto, afinal começou

– Dr. Per-Erik Nilsson.

E desembestou a falar em sueco. Era o único no recinto, afora o Ombudsman e seu tradutor, a falar essa língua. Aprendeu quando era porteiro de inferninho, em Estocolmo, acompanhando o pai exilado. E falava como se estivesse por cima da carne seca. Tinha mesmo razão, então se viu, naquela pergunta de antes. Primeiro ele falou; e depois o tradutor traduziu, aquilo que foi por ele dito, para a plateia de ignorantes ali presentes. Ao encerrar olhou para mim e disse, baixinho,

– Ri melhor quem ri por último.

CELINA PINA, mulher do dr. Sizenando Carneiro Leão. Antônio, seu filho querido, iria ser doutor pela Sorbonne. A realização de um sonho. Dia da viagem e o Aeroporto dos Guararapes estava cheio com família, empregados, periquito, amigos, cachorro, vizinhos, o mundo inteiro para dar adeus a Toinho. Na hora do embarque, a velha o chamou para conversar

‒ Queria lhe dar três conselhos, filho. Um, estude muito para ser o primeiro lugar da classe. Dois, de noite, não saia para beber nem raparigar. Três, e sobretudo, nunca diga a ninguém que nasceu em Pernambuco.

‒ Minha mãe, os dois primeiros conselhos até entendo, mas esse terceiro?

‒ É por ser muita falta de educação contar vantagem.

CRISTOVAM BUARQUE, ministro da Educação. E candidato (com meu voto), dia 30, à Academia Brasileira de Letras. Num táxi em Dakar (Senegal), considerando que a poligamia naquela terra é autorizada por Maomé (ele próprio me contou essa história), perguntou ao motorista

– Quantas esposas o senhor tem?

– Uma só. E pode me dar muitos filhos, ainda.

– Quando ficar velha, troca por outra mais nova?

– Não, doutor. Posso até casar de novo mas ela é muito boa, para mim, mantenho as duas.

– E você não acha errado ter várias mulheres?

– Não. Errados são vocês, no Brasil; que, quando a mulher fica velha, mandam embora e casam com outra mais nova.

– E quem foi que lhe disse isso?

– Eu que vi.

– Onde?

– Nas novelas da Globo.

FLAVIO BIERRENBACH, ministro do STM. No antigo Ginásio Mackenzie. O professor de português Nestor Costa, vulgo Expressinho, disse qual seria a prova. Uma redação sobre o que cada um gostaria de ver publicado no dia seguinte ao da sua morte. Flávio tirou 10 com texto de só três linhas

– Morreu ontem em São Paulo com 99 anos, baleado na porta da Catedral da Sé, o ex-presidente da República Flavio Bierrenbach. Socorrido na escadaria, o extinto ainda teve tempo de balbuciar três palavras: FOI O CORNO.

JOAQUIM SÍLVIO CALDAS, colega de classe na Faculdade de Direito da Católica e juiz do Trabalho. Certo dia chegou seu pai, o Professor Caldas. Comprou um Renault caindo aos pedaços e veio pedir, ao padre Cassiano, para benzer. Assim foi feito. Ocorre que ao sair de lá, na esquina da Dom Bosco com a Rua dos Médicis, bateu num poste com perda total. Indignado com a ineficiência da tal benção, poucos minutos antes, voltou à Faculdade para reclamar

– Bati com o carro, padre.

– Lamento.

– Mas o senhor acabou de benzer ele.

– Era para benzer? Então desculpe, entendi errado. O que dei, a seu pobre veículo, foi uma Extrema Unção.

MÁRIO HENRIQUE SIMONSEN, economista. Numa conferência, em São Paulo, estudante dirigiu pergunta à nossa mesa

– Professor Mário Henrique Simonsen…

Mário interrompeu

– Meu filho, considerando o salário miserável dos professores, o que é que você tem contra mim?

PESSOA DE MORAES, professor. Armando Monteiro Filho, secretário de Viações e Obras Públicas de Pernambuco (que contou essa história), estudou com ele no Salesiano. E, condoído pela penúria financeira do antigo colega, o nomeou para cargo na secretaria. Com a missão de preparar editais de Concursos Públicos. São enormes, até hoje. Primeiro deles, para vigia de escola, Pessoa redigiu em uma única linha

– Precisa-se de vigia. Requisitos, insônia e boa pontaria.

Mais nada. Constrangido, dr. Armando transferiu o velho amigo para cargo em que causasse menos danos.

* * *

Na Televisão Universitária encheu o peito e, com aquela modéstia bem sua, encerrou programa que tinha por lá, Supremum Organorum, olhando para a câmera

– O Brasil precisa de Pessoa de Moraes!!!

Dia seguinte mandei telegrama (naquele tempo, não havia zap)

– Perdão, Mestre, mas discordo. O que o Brasil precisa, mesmo, é de pessoas de moral.

Dona RACHEL CORREIA DE CRASTO (registrada só como Rachel, depois de adulta entrou com ação para completar seu nome), educadora. Cursei todo o primário com ela, na primeira turma do Instituto Capibaribe (uma experiência pensada por ela e Paulo Freire). Quis sempre ser freira. E viveu toda vida como uma, verdade seja dita. Aposentada, e já com mais de 70 anos, chamou para conversar em seu modesto apartamento na Rua das Graças

– Meu filho, queria lhe pedir um favor.

– Diga, dona Rachel.

– Casamento é coisa séria. As pessoas se lançam em aventuras, você sabe como é.

– Sei.

– É o seguinte, só agora sinto que estou preparada para casar.

– Sim?

– E queria que você me arranjasse um noivo.

UNIVERSIDADE DE HARVARD. Na placa de avisos, um chamava atenção. Convocando, quem quisesse ir, para reunião do Partido Comunista. Dentro do próprio campus, Democracia é isso. Fui, por curiosidade. E vi quando um militante pediu a palavra

– Sugiro eliminar o prefeito de Cambridge (cidadezinha, onde fica a Universidade, separada de Boston pelo Charles River). Essa morte iria chamar atenção para nossa causa.

– Sou contra, ele é amigo, melhor encontrar outra forma de protestar.

E seguiu, sem conclusões, esse debate inacreditável. Como o número de espectadores (que não participavam da reunião) no anfiteatro era grande perguntei, a um colega próximo, se alguém ali era da polícia. Ele

– Quase todos.

Fosse aprovada, tal proposta, e provavelmente iriam ser presos. Na hora.

* * *

Uma das tarefas que assumi, coordenando projeto da Unesco, foi dar curso em Harvard. Aproveitei para visitar a Winthrop House, um dos edifícios em que alunos se hospedavam; e onde residi, por algum tempo, quando estudava lá. Estava quase igual. Diferente só as árvores em volta, agora bem maiores, tendo então portaria. Como não havia ninguém lá tentei chegar ao primeiro andar, onde ficava o apartamento que ocupei. Foi quando, já no meio da escada, veio um porteiro ‒ com mais de dois metros e cara de poucos amigos

– Está procurando alguém?

– Sim.

– Quem?

– Eu.

Ele, primeiro, pareceu não entender. Mas logo riu e disse, com simpatia,

– Espero que encontre.

VENUSA SÁ LEITÃO, professora de português. Fim do biriba que semanalmente jogava com minha mãe e outras amigas, no Prado, e constatou que seu carro havia sido levado por um amigo do alheio. O filho foi buscar, para prestar queixa na delegacia e levá-la de volta. Passando pelo Shopping Center Recife, decidiu entrar

– Vamos embora, mãe.

– Depois. Agora, vamos passear pelo estacionamento.

– Por quê?

– Tem muito carro, por aqui.

Inútil argumentar com mãe obstinada. Ficaram percorrendo as filas, bem devagar, com janelas abertas e ela tocando na chave. Até que ouviu um bip.

– Pode parar.

Procurou, encontrou, e foi embora guiando seu querido carrinho. Só não se sabe o que aconteceu com aquele pobre ladrão ao descobrir que o carro foi roubado por algum colega desalmado.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

OPINIÕES, PALAVRAS E VOTOS

Recife. Já de volta. Lisboa, que para o amigo Fernando Pessoa era só “uma eterna verdade vazia e perfeita” (Lisbon Revisited), agora é passado. Ir é bom, mas voltar é melhor. Muito melhor. E começo essa primeira coluna no retorno lembrando, por sua importância institucional, a cassação da Deputada Federal Carla Zambelli pelo TRE de São Paulo. Na mesma linha dura do Supremo. Alinhados, os dois. Algo preocupante pela carga ideológica que traz.

Fundamento dessa medida, segundo a Folha de São Paulo, foi não apenas o uso de uma arma (para o qual, aliás, tinha licença); mas, especialmente, o “abuso na liberdade de expressão”. Não, amigo leitor, você não está lendo errado. Falar, nos tempos atuais, passou a ser algo perigoso. Arriscado. De quem não tem juízo. Sobretudo se for contra o sistema. Sigamos no exame do caso.

Fundamental, numa Democracia, é o direito que todos temos (ou deveríamos ter) de dizer o que quisermos. Afinal, de que adianta uma consciência livre se não podemos falar?, eis a questão. Obedecendo aos limites fixados na lei, claro. Respondendo, sempre, nos casos de Calúnia, Injúria e Difamação ‒ arts. 138, 139 e 140 do Código Penal.

Com relação a parlamentares, esse direito foi sempre amplíssimo. Em regra que formalmente, no essencial, não vem mudando. Basta ver nossa Constituição de 1967, que dizia: Art. 34. “Os Deputados e Senadores são invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos”.

Também a seguinte, de 1969: Art. 32. “Os Deputados e Senadores são invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos, salvo no caso de crime contra a honra”. Ambas, nos sombrios anos do autoritarismo de 1964.

Chegando a nossa atual Constituição de 1988, já na Redemocratização, que define o tema com quase as mesmas palavras: Art. 53. “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

Conformando esse espectro das Imunidades Parlamentares, os estudantes de Direito Constitucional aprendem que elas, usando palavras de Georges Burdeau (Traité de science politique), são “privilégios que garantem o livre exercício do mandato”. E correspondem a uma proteção contra atos praticados no cumprimento específico de suas funções (“irresponsabilidade”) ou mesmo estranhos às atividades parlamentares, como crimes comuns (“inviolabilidade”).

Aprendem também que essas imunidades não são muito diferentes, de um país a outro ‒ em alguns poucos exemplos Itália (art. 68 da Constituição), França (art. 26), Espanha (art. 71), Japão (art. 51). Na Inglaterra, o mesmo direito que tem o parlamentar de dizer o que quiser sem ser processado, tem também qualquer cidadão, desde que em espaços públicos e com os pés fora do chão (como se estivesse num púlpito) ‒ devendo por isso falar sobre bancos de praça, caixotes ou mesmo prosaicos lenços. Já vi no Hyde Park, em Londres, um cidadão pulando enquanto, no ar, falava (muito) mal da rainha. Num de seus cantos, por lá, funciona um Speakers Corner (esquina dos oradores) onde, todos os domingos pela manhã, pessoas comuns (e alguns excêntricos) se reúnem para falar de assuntos diversos, sobretudo religiosos e políticos. Com total liberdade.

Aprendem mais os estudantes que essa regra tem variações, por vezes melhor definindo responsabilidades; como na Alemanha (art. 46, único país que admite limitação no direito de falar), onde os parlamentares respondem sempre que ocorra “injúria infamante”; ou acentuando o corporativismo, como no caso do Brasil (art. 53), onde o parlamentar pode ser preso apenas em flagrante de crime inafiançável ou em processo instaurado com autorização do poder legislativo (uma regra pouco usada, nos outros países). Em todos os casos sendo reconhecida doutrinariamente, essa imunidade, como uma garantia da própria representação política.

Sabemos hoje que a proteção amplíssima dos parlamentares, na versão que agora dá à Constituição o Supremo, passa a ter limites. Não tem limites, pela Constituição. Mas tem, segundo o Supremo. O de não se poder fazer “críticas que ameacem a Democracia”. Mas quem define quais seriam essas críticas ou de que ameaças se trata?, esse o problema.

Já vivemos isso, antes. Na Ditadura Militar de 1964 as garantias formais para o Parlamento, como vimos, eram as mesmas de agora. Só que nada se podia dizer que ameaçasse a “Segurança Nacional”. Nem falar de censura ou torturas. Muito menos de mortos e desaparecidos políticos. E quem definia isso?, meus senhores. Os próprios militares, claro. O sistema. O direito era absoluto, na Constituição; e seletivo, nas mãos do tal sistema.

A história se repete mesmo, volto a dizer. E não só como farsa. Provando que mais razão tinha o florentino (Maquiavel, O príncipe) que o prussiano (Marx, 18 Brumário). Antes, a liberdade para falar era só um mito, hoje também. Antes era a “Segurança Nacional”, hoje a “Democracia”. Antes, o que os militares quisessem, hoje o que os ministros do Supremo querem (ou concedem).

A Deputada Carla Zambeli sustentou que nosso sistema de votação não é seguro. Esse o seu excesso, segundo o TRE. E a ironia é que não mentiu. Porque, em todas as Democracias importantes do primeiro mundo, urnas são auditáveis. A partir de 1990 foram sendo introduzidos, em todos os países, com um mesmo padrão ‒ o DRE (Direct Recording Eletronic); sendo admitidas, no Brasil, só em 1996. Mas, a partir de 2015, quase todos os países do planeta passaram a ter urnas auditáveis. Enquanto nós, não.

O próprio Congresso determinou isso, em 2015, com a Lei 13.165 ‒ estabelecendo a auditagem das urnas. Só para ver o Supremo dizer que a Lei não valia, para ele. Pela razão, quase inacreditável, de que “permitiria a identificação do votante”. Um sistema que não permite isso em nenhum lugar do planeta, mas que poderia se dar no Brasil. Como?, senhores.

Sem contar que, nas Democracias que se prezam, quem faz leis é o Poder Legislativo; enquanto, no Brasil, valem só as leis reconhecidas ou criadas pelo Supremo. Conformando um novo Poder Legislativo, por fora da Constituição.

Carla Zambelli (946.244 votos) é (ou era) deputada. E não lhe valeu a imunidade conferida pela Constituição. Pior é não ser a única sofrendo punição. No caso dela, é o TRE. Na mesma linha, agora pelo próprio Supremo, o Deputado Federal Daniel Silveira está preso por fazer críticas aos ministros da Casa. E o Deputado Federal Marcel van Hattem sendo processado por dizer que um agente da Polícia Federal mentiu. Tudo funcionando como uma ameaça do tipo “cuidado, senhores; é mais prudente, para sua saúde, ficar calado”. Perdão, amigo leitor, mas isso não é Democracia.

Clemenceau dizia “A Democracia? Vocês sabem o que é? O poder dos piolhos de comerem os leões”. (Pequena filosofia de bolso). Só que, no mundo real, ganham sempre os mais fortes. Os poderosos do sistema. Vamos ter que dizer, nesse estranho tempo em que vivemos, apenas o que os leões da Justiça Eleitoral e do Supremo permitirem. Sem críticas, claro. Em resumo, é isso.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

NOTÍCIAS DE PORTUGAL

Lisboa. Algumas notícias colhidas por aqui.

1. Salário mínimo da função pública em Portugal é, hoje, de 875 euros. Mais de 6 mil reais. Os brasileiros, ao saber disso, vão chorar.

2. Desde 01 deste mês os tuk-tuks dos turistas estão banidos das 337 ruas que compõem o Centro Turístico de Lisboa. Confusão grande.

3. Nas Assembleias Municipais (nossas Câmaras de Vereadores), mulheres são apenas 31,2%, sem se conseguir aumentar esse número. No Brasil não é muito diferente.

4. A empresa Pinker, que opera uma espécie de Uber próprio, definiu que só terá motoristas e passageiros mulheres. Ocorre que o Instituto de Mobilidade dos Transportes (IMT) recusou licença, necessária para começar a operar, por considerar que o privilégio fere a regra constitucional da igualdade dos sexos. E agora?

5. Manchete do Diário de Notícias precisa ser explicada: “Carteiristas duplicam no Porto e em Lisboa”. É que ditos “carteiristas” são nossos bem conhecidos assaltantes de celulares e batedores de carteiras, nas ruas.

6. O Hospital D. Estefânia foi condenado pelo Tribunal Administrativo de Lisboa a pagar 1,4 milhões de euros (10 milhões de reais) por negligência em parto, pela qual a criança acabou com “paralisia cerebral profunda”. Movida essa ação em 2011, só agora teve sentença. Também na terrinha o Judiciário é lento.

7. Dois terços das vagas para médicos de família não foram preenchidos, no último concurso. E 4 enfermeiros pedem, por dia, licença para emigrar. Um mercado de trabalho aberto, para brasileiros.

8. Cada trabalhador do Serviço Nacional de Saúde – SNS, em Portugal, tem em média 30 dias de falta, por ano.

9. Fátima Fernandes (52 anos) doou seu rim à filha, Carla Fernandes, no hospital Curry Cabral (em Lisboa). Ficou famosa declaração da filha, ao jornal Público, “Foi a segunda vez que minha mãe me deu a Vida”.

10. Nos Boletins de Saúde Infantil, sai o amarelo, uma novidade faz pouco introduzida para atender movimentos que são contra a discriminação de sexo; voltando, como regra, as cores tradicionais ‒ azul e rosa.
.
11. Novidade aqui é o “Trisraw”, bicicleta com 3 rodas e um sofá na frente. Ciclistas voluntários põem nele doentes, físicos e mentais, e saem a passear pela cidade nos fins de semana. Velhos também. Importante por ser, Portugal, o país da comunidade europeia com maior número de idosos, dois deles para um jovem. As fotos, com alegria visível no rosto dos conduzidos, são comoventes.

12. Experiência que faz muito sucesso, na França, acaba de ser implantada com força em Portugal. Velhos agora podem vender suas casas e continuar a morar nelas. Com o instituto do usufruto. O valor de venda é menor que o real, mas em troca o cidadão tem grana à disposição. Para usar, ou doar a um filho. E viver bem, onde sempre viveu, sem ter que mudar. Se morrer logo, é lucro para o investidor. Ao contrário, se sobreviver muito, grande vantagem para ele.

13. O partido Chega propôs reduzir o número de Deputados (Portugal não tem Senado), na Assembleia da República, para o mínimo constitucional de 100. Curioso é que, apesar desse número, a Assembleia tem hoje 230 deputados. Como pode? Apesar de perguntar a muitos professores e jornalistas, aqui, ninguém até agora conseguiu explicar a razão.

14. Empresas de cigarro estão lançando maços sem tabaco, à base de ervas. Com a vantagem de poder ter aromas; o que é vedado, nos cigarros normais, pela Comunidade Europeia.

15. Carreiras universitárias que, em Portugal, oferecem maiores remunerações, são saúde, informática (era mesmo de prever) e, surpreendentemente, matemática.

16. Em Portugal 26% das classes, nas escolas, tem menos de 10 alunos. E, 40%, menos de 15. Algo tem que mudar, claro. Mas não há coragem para fazer isso.

17. Clamor em Portugal. O Tribunal de Relação de Lisboa, por maioria, “causou espanto” ao libertar Luis Vallejo (60 anos), condenado por abusar de duas clientes na freguesia de Algueirão. Sem sequer considerar que uma delas gravou diálogo que teve, com esse médico, na ocasião do abuso.

18. O Tribunal de Lisboa invalidou prova na apreensão de 251 quilos de cocaína por emigrante da República Dominicana. Fundamento foi terem sido tiradas fotos, dos emigrantes, sem suas autorizações ou de autoridade judicial. O Jornal Publico não informa se a cocaína foi devolvida aos traficantes.

19. Na reação aos imigrantes, cada vez maior em toda a Europa, o constitucionalista Jorge Miranda defende que Portugal só deixe entrar imigrantes que falem português.

20. Empresários portugueses, ante as repetidas ameaças de Trump, reagem adaptando conhecido provérbio “Esperamos que sejam mais vozes que nozes”. OBS: Uma breve explicação, em complemento. O provérbio português certo é “São mais as vozes que as nozes”. Lembrando que, como se diz na terrinha, “com varas batem-se as nogueiras, faz-se grande estardalhaço e às vezes as nozes que caem são poucas”.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

VIVA MARCOS VILAÇA!!!

Como reverenciar um homem como Marcos Vilaça?, eis a questão. Talvez não com arrogância, por exemplo indicando ter sido professor em muitos centros, com destaque para a Faculdade de Direito do Recife.

• Nem ter feito conferências em numerosas universidades, no mundo inteiro, de Moçambique a Helsinki.

• Nem ter sido Ministro do Tribunal de Contas da União, em que foi presidente.

• Nem referindo suas 182 condecorações e medalhas, incluindo todas as mais expressivas no Brasil, além de uma dezena de honrarias estrangeiros.

• Nem, por fim, indicado seus 76 livros publicados. Entre os quais cito Em Torno da Sociologia do Caminhão – quando, pela primeira vez, se estabeleceram as implicações sociológicas das migrações no Brasil. Coronel, Coronéis, quando traçou perfil dos interiores de nosso país; num tempo em que a política, tão diferente de hoje, ainda se fazia com engenho e arte. E Itinerário da Corte, pela honra de ter escrito seu prefácio. Sem esquecer os 15 livros publicados no estrangeiro – em português (de Portugal), alemão, espanhol, francês, inglês e italiano.

• Com tantos inacreditáveis títulos, e em palavras de Manuel de Barros (O Livro sobre Nada), “Há histórias tão verdadeiras que às vezes parecem que são inventadas”.

Dizendo isso, e quando nos deixa, prefiro começar pelo começo.

• Marcos Vilaça nasceu em Limoeiro e em Nazaré da Mata, ao mesmo tempo, isso não se discute. Prova de que já pode ser considerado uma espécie de Deus, por ter o dom da ubiquidade. O de estar em dois lugares, ou mais, ao mesmo tempo. Faltando só descobrir a palavra para dizer o que ele é. Talvez Nazareiro. Ou Limomata. Ou coisa parecida.

• Consta que Vilaça falou das duas cidades, e de sua companheira de antes e depois da eternidade, a Ledo Ivo. Dizendo assim: “Amar cidades, várias./ Amar mulheres, só uma”. Maria do Carmo, claro. Mas Ledo se atrapalhou e escreveu (em Recife): “Amar mulheres, várias./ Amar cidades, só uma, Recife”. Acontece.

• Marcos era filho de dona Evalda. Uma dama letrada e ilustre que gostava de usar, quando podia (e era quase sempre), a palavra pletórico. Sem restrições. E muito corretamente. Que de dona Evalda se pode dizer, sem medo de errar, ser mesmo pletórica em tudo.

• E filho do professor Antônio Vilaça. Conta-se que ele, então seminarista, acabou vizinho de dona Evalda em Limoeiro. “O pecado mora ao lado”, como na peça de George Axelrod. Ela jovem, bela, e muito interessada no conversar dele. Dando-se que o professor desistiu ligeiro das vocações religiosas. Trocando a contemplação celeste por uma vida terrena plena. De virtudes e pecados. Muitas e poucos. Entre estes, o de falsificar whisky. Trocando os líquidos (vi com os próprios olhos, como fazia). O que lhe permitia saborear malte escocês transladado para garrafas de Drurys; enquanto seus convidados, coitados, aceitavam as ofertas de Johnnie Walker, em garrafas antes vazias, e agora cheias do líquido nacional. As aparências enganam.

• Já no batismo, seus pais fizeram questão de afirmar o caráter do filho. Marcos Vinicius Rodrigues, como se vê no próprio nome, é um homem plural. E Vilaça, também se vê no nome, é singular. Plural e singular, pois. Múltiplo.

• Vilaça teve, nessa vida, uma trajetória improvável. Que começou nos interiores de nosso Brasil, popular e profundo, para findar em louros acadêmicos. Na Academia Pernambucana de Letras. Na Academia Brasileira de Letras, também. A do fardão majestático. Conta-se até que um taxista, conduzindo Aurélio Buarque de Holanda todo paramentado, não se conteve e perguntou: “Sois Rei?”. Sem esquecer a Academia Portuguesa de Letras. Somos confrades em todas elas; o que, para mim, é um (grande) prêmio.

• Lembro de bilhete que lhe mandei num aniversário do passado:

‒ Vilaça amigo
Ouve o que digo
Tô com saudade
Da mocidade
Da vida rude
Da juventude
Da vida boa
De andar à toa
E da maçada
De fazer nada
Com a indolência
A impertinência
A competência
E a experiência
Dos desenganos
Dos verdes anos.

• Agora findaram seus anos, todos; aqueles do passado, verdes; e os mais recentes, maduros, também. O coração dói, na memória do amigo querido. Saudades dele. Viva Vilaça!!!. E boa maneira de fazer isso é lembrar versos de Mia Couto (em Incertidão de Óbito),

“A vida
É um prematuro sonho.

Só morre
Quem nunca viveu”.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

O AMIGO XANHA

Lisboa. Mais um se foi, Alberto Vinicius Melo do Nascimento (Xanha), em 11 de dezembro do ano passado. O enorme poeta Marcelo Mário Melo recomenda (em Manifesto da esquerda vicejante) que “devemos lembrar nossos mortos, não pelas chagas de seus martírios, mas por seus jeitos de rir”. Assim seja. E conto agora uma história que fala nesse que partiu. Tem sua graça e vai estar no meu próximo livro (Conversas de ½ Minuto). Vamos a ela.

Na Ditadura 18 estudantes, que a combatiam, estavam presos e em greve de fome. Já 11 dias haviam se passado. Por cautela foram trazidos para o quartel da PM, no Derby, onde havia um hospital militar. Médicos informaram que, até 12 dias, não haveria problemas para a saúde. Entre 12 e 18, provavelmente. A partir daí, com certeza. Era preciso encerrar a greve, na proteção dos próprios presos.

Fomos negociar com eles. Airton Soares, velho amigo e líder do PT na Câmara dos Deputados (pouco depois, ele e Beth Mendes seriam expulsos do partido por terem votado em Tancredo), que veio de São Paulo só para isso. E eu, companheiro de tantos na universidade (e amigo próximo de alguns), representando a OAB.

Nosso argumento era que o protesto já tinha produzido seus resultados políticos, tanto que os jornais vinham dando a notícia com destaque. Seguir, ante os riscos para a saúde, não fazia sentido. Às dez da noite, alvíssaras, tudo certo. Fomos falar com o comandante da PM, ainda em seu gabinete e rezando para que tivéssemos sucesso. Ocorre que, encerrada essa greve, todos queriam jantar

– Comandante, por favor providencie.

– Claro.

Pediu para chamar o cozinheiro e um ajudante

– Doutor, o homem já foi pra casa.

– Veja o que tem na despensa.

– Está fechada, com cadeado, e quem tem a chave é ele. Só amanhã de manhã.

– Onde mora?

– Ninguém sabe.

Sugeri

– Comandante, por favor, vamos comprar ao menos um cacho de bananas.

– Nem pensar. Comida de fora? E se tiverem uma intoxicação?

– O senhor manda um ajudante conosco, providenciamos o dinheiro, ele mesmo escolhe e compra as bananas.

Nesse momento, um médico do quartel o chamou para conversar. E o comandante

– Perdão, senhores. Mas, antes de se alimentar, eles vão ter que fazer exames médicos e ser avaliados. Até para decidir o que podem ingerir.

– É desumano, comandante.

– Também acho. Mas, infelizmente, vai ter que ser.

E assim ocorreu. Voltaram a se alimentar só no outro dia, pela manhã. Chico de Assis (grande poeta) me confessou, mais tarde,

– Passar 11 dias, dentro de uma greve de fome, não teve nenhum problema. Só que do fim da noite e até a manhã seguinte, querendo comer, foi um verdadeiro suplício.

E Alberto Vinícius (Xanha), que estava do seu lado, confirmou

– A vontade que tive foi me suicidar.

No fim, como ensina o pai de Fernando Sabino, “tudo acabou bem”. E seguiu a vida, até agora, quando foi encontrar os seus. Saudades do amigo Xanha.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

CONVERSAS DE ½ MINUTO (39) ‒ MÉDICOS

Lisboa. Mais conversas, hoje só com médicos e afins, em livro que estou escrevendo (título da coluna).

ANA VASCONCELOS, advogada. O médico olhou para ela com olhos de pena

‒ Você tem câncer, Ana.

‒ Qual o tratamento?

‒ Nenhum, infelizmente.

Decidiu ir a São Paulo e foi confirmado, esse diagnóstico, por junta com mais quatro médicos. Melhor voltar e morrer no Recife. Só que não conseguia suportar essa espera e decidiu abreviar sua história. Melhor o fim do espanto que um espanto sem fim. Como não tinha coragem para se jogar de um edifício, ou dar tiro na cabeça, escolheu fazer isso dentro de seu carro. Entre segunda e terça, madrugada (sem ninguém na rua para ser atropelado), em reta que começava na Ponte Giratória e findava em muro de concreto grosso, da Marinha, no Porto do Recife. Lugar perfeito para um acidente automobilístico. Deu uma última olhada para o “Capibaribe, meu rio,/ Espelho de meu sonhar” de Austro Costa, fez o sinal de cruz e acelerou seu velho Gol até chegar na velocidade máxima. Os braços, ao segurar o volante que tremia, estavam já dormentes (foi quando teve a sensação de que morreria sem dores). E viu aquele muro se aproximar. Faltava pouco. Só que um pneu voou e o carro começou a dar voltas. Sem capotar, sorte dela. Até que parou. Saiu, era inacreditável, estava de frente para o tal muro, a menos de um palmo. Então pensou

‒ É coisa de Deus. Ele não quer que eu morra e me trouxe aqui para dizer qual missão reservou para mim.

Olhou em volta e viu que, ali, havia só marinheiros e mulheres tentando sobreviver. Seu público não seriam aqueles homens, com certeza. Decidiu criar uma instituição memorável, a Casa de Passagem – dedicada a abrigar, proteger e ensinar ofícios dignos a prostitutas que eram depois colocadas no mercado de trabalho. E Ana bem, sem mais notícias do tal câncer, enquanto começaram a morrer os médicos que deram aquele diagnóstico. Na última vez que a vi disse, brincando,

‒ Ainda não morreu?, amiga.

‒ Que nada, Zé Paulo, e já decidi, só morro depois de enterrar os cinco médicos que me condenaram.

‒ Até agora…

‒ Quatro já foram, só falta um.

Ana morreu só bem mais tarde (em 2009), aos 64 anos, vítima de um infarto fulminante. Descanse em paz.

ANTÔNIO MOTA BARBOSA, professor de patologia geral (genética). Na Faculdade de Medicina UFPE (Recife), dava aula no necrotério. E dirigiu-se aos alunos

‒ Esse é um teste para ver se vocês têm compromisso real com a medicina.

Foi dizer e enfiar o dedo indicador no pulmão aberto do cadáver, após o que pôs na própria boca, assim como estava, cheio de sangue

‒ Agora quero ver quantos serão capazes de fazer isso.

Metade da classe foi embora, na hora, enquanto a outra metade repetiu seu gesto. E ele

‒ Estou vendo que o compromisso com a medicina de vocês, que ficaram, é mesmo real. Porque o dedo que enfiei no cadáver, e veio sujo com sangue, era o indicador; e o que pus na boca foi outro, o dedo médio.

CARLOS ROBERTO MORAES, cirurgião cardíaco. Perguntou

– Quantos charutos você fuma?, por dia.

– Só um. Mas todo charuteiro mente muito.

JOSÉ CUNHA FILHO (Rato), construtor. Sua santa mulher, Ana Lúcia (Iuca), pede que vá ver o médico. Depois de muita insistência, ele afinal consente. E, ao entrar na sala, Rato

– Doutor, o senhor tem direito a uma pergunta.

Espantado com frase tão insólita, e vendo a desgraça dos exames na sua frente, o médico

Dr. Rato, o senhor já comprou seu jazigo?

JOSÉ SARNEY, presidente da República. Estávamos na ABL. Como esbanjava saúde, Flora Gil não resistiu

‒ Presidente, que cara boa!

‒ Minha filha, quem vê cara não vê radiografia.

MOACYR GUIMARÃES, funcionário público, pai do médico André Valença. Quando fazia visitas, em dado momento, dizia sempre ao dono da casa

‒ Já comi
Já bebi
Nada mais
Me prende aqui.

E ia embora.

ODACÍRIO DA TELHA, empresário. Caruaru, na época da Segunda Guerra. Marcou viagem ao Recife, de trem, para o dia seguinte. Seu Teixeira (história contada pelo filho Marcelo) pediu

– Pode levar encomenda?

– Claro, compadre.

– Entrego na hora do embarque.

Manhã cedo e lá estava seu Teixeira, na estação, com a encomenda. Era um doido. Que, depois de férias com a família, tinha que ser devolvido à Tamarineira – único hospício então funcionando em Pernambuco. No bolso de sua camisa, pôs dinheiro para qualquer necessidade. Perto do meio-dia, o trem chegou em Vitória de Santo Antão. Todos saltaram para almoçar. Problema é que o doido dormia pesado, foi bomba demais que tomou, algum antecedente do Rivotril. E Odacírio teve que ficar no vagão, com calor e fome; para evitar que ele, acaso acordasse, pudesse fugir. Fim da tarde, chegam à Estação Central do Recife. Junto da penitenciária (hoje, Casa da Cultura). Foi quando soube que a Tamarineira ficava longe. Teve que gastar dinheiro, o que era contra seus princípios, com carro de praça. Chegou irado. Com o doido acordado, sem mais efeitos dos remédios que tomou. Entraram. Odacírio entregou o doido. Pretendeu entregar, melhor dizendo. E o Diretor

– Qual o nome do paciente?

– Sei não (seu Teixeira esqueceu de dizer).

– O que ele tem?

– Não tenho a menor ideia.

Problema é que o doido olhava para o Diretor, pelas costas de Odacírio, fazendo gestos com o dedo rodando na orelha, e apontando, como que dizendo ser ele o maluco. Afora outros gestos, agora com as duas mãos, sugerindo levar o homem para dentro. O Diretor veio falar com ele

– Seu nome é?

– Odacírio da Telha, a seu serviço, trabalho em Caruaru no ramo de tijolos e telhas.

– O nome do paciente?

Deu seu próprio nome. E completou

– Ele já tem ficha, é só o senhor conferir.

O Diretor fez isso. Voltou com ela na mão. E, para confirmar, perguntou a doença

– Transtorno de Bukovsky, um tipo especial de esquizofrenia delirante.

Era fácil, para ele, que (quase) todo maluco sabe o mal que tem. Ele, pelo menos, sabia. O Diretor mandou levar Odacírio para sua cela (a que era do doido). E este, indignado, resistiu bravamente. Foi necessário recorrer a uma camisa de força. O diretor

– Seu Odacírio, pode ficar tranquilo que o paciente será muito bem tratado.

– Obrigado. E até a próxima.

O azar de Odacírio é que o doido tinha um sonho, ou mania, ou delírio, de ir ao cinema Coliseu que ficava bem pertinho dali. Agora, estava solto e com dinheiro para isso, aquele posto no bolso da camisa. Foi, pagou a entrada, com o troco ainda comprou pipoca e assistiu, satisfeito, ao filme do dia. No fim, um problema, onde iria dormir? Então voltou à Tamarineira, explicou o ocorrido e pediu sua cela de volta. Foi a sorte de Odacírio.

OSCAR COUTINHO, clínico geral. Comentei matéria segundo a qual “fazer exercício traz riscos para a saúde”. Respondeu, brincando,

‒ Verdade. Muitos enfartam ao andar no Parque da Jaqueira (Recife), mas nunca vi ninguém morrendo em mesa de bar.

PLANOS DE SAÚDE. Liga para mim alguém, não sei quem seria, e pergunta

‒ Aqui é o gerente do plano de Saúde… qual é o nome do senhor?

‒ Esqueci.

E desliguei

REINALDO OLIVEIRA, cirurgião (e artista consagrado no Teatro de Amadores de Pernambuco). Tinha que dar um depoimento, sobre ele, para a televisão. E fiz isso, na hora

‒ Reinaldo é nosso rei
Ele nos dá seu perdão
Manda em nosso coração
E faz o que não farei
Pensa o que nunca pensei
Ele diz o que não digo
Ele canta eu não consigo
Ele solto é um perigo
Só faltou o Oliveira
Essa fé tão brasileira
E o abraço mais amigo.

SILVIA LAURENTINO, PHD em Neurociência. Fim de conferência na Academia Pernambucana de Letras, sobre a Memória, e levanta-se o engenheiro Salmen Giske

‒ Tenho uma pergunta importante para a senhora.

‒ Pois não.

E ele, depois de algum tempo em silêncio,

‒ Esqueci.