MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

GRAVE, MUITO GRAVE

Todo dia, quando vejo as notícias, há sempre um político, um jornalista ou um burocrata preocupado com coisas graves. “Isso é muito grave!”, dizem eles, fazendo cara de sérios, preocupados, às vezes indignados.

Acabo me desconcentrando e esquecendo o que eles acabaram de dizer. Porque lembro que se for grave demais, a gente nem escuta. Mas se for agudo demais também não dá pra ouvir.

Dizem que é assim que funcionam os apitos de cachorro — aqueles que emitem sons numa frequência que o ouvido humano não capta. Aliás, “apito de cachorro” é uma expressão que vem ganhando espaço na política, especialmente na parte que se desenvolve pela via das redes sociais. No sentido de discurso aparentemente inofensivo, mas que sinaliza, para certo grupo, determinada ação combinada.

Mas isso é assunto para outra crônica. Até porque a incapacidade humana para ouvir apitos de cachorro, no sentido literal, está exatamente no fato de eles emitirem sons muito agudos. Quem emite sons graves demais para os ouvidos humanos captarem são os elefantes, mas, se for falar disso, vou perder definitivamente o fio da meada.

E o fato é que acabo tendo certo incômodo com a preocupação causada pelos atos ou fatos graves, porque, na verdade, gosto dos graves. Não é à toa que, nos tempos em que tive banda de rock, escolhi tocar contrabaixo. A corda Mi pode emitir o som mais grave do baixo. E, nos de cinco cordas, há também a corda Si, mais grave ainda — profunda, densa, quase subterrânea.

O grave é o que dá corpo à música, é o chão onde o som pisa. Sem ele, as canções flutuam como discursos vazios.

Mas “grave” é palavra versátil. Em “o fato é grave” tem sentido muito diferente do que se vê em “um paciente em estado grave”.

No latim, “gravis” é o que pesa, o que tem densidade, o que puxa pra baixo. Daí vem também o sentido de “gravidade”. A mesma força que mantém os corpos na Terra parece, de algum modo, agir sobre a linguagem e sobre as pessoas. Há os que vivem sob a lei da gravidade dos fatos, e há os que acreditam poder flutuar acima dela. Uns respeitam o peso das consequências; outros acham que a realidade é opcional.

(Incrível coincidência – enquanto revisava este texto, mantive ligado um canal de notícias no YouTube. Ao chegar exatamente a este ponto da leitura, ouvi a voz de um jornalista no vídeo: – Olha a gravidade do que esse cara disse!)

Nessa relação entre grave e gravidade, quando alguém diz “a situação é grave”, quase sempre significa que tudo está caindo — às vezes o governo, às vezes a credibilidade, às vezes o bom senso (raramente os preços).

É a gravidade social em ação, puxando tudo para baixo (menos os preços).

Há ainda quem confunda ser “grave” com parecer sério, como se bastasse franzir a testa para equilibrar o mundo. E falta gente que saiba distinguir peso de importância. Porque há coisas pesadas que não valem nada, e há coisas leves que sustentam o espírito. Há quem carregue sua própria gravidade como um fardo — e há quem a use como centro de gravitação, atraindo em torno de si ideias, pessoas e causas.

Quanto a mim, reconheço que a humanidade passa por um período de grande gravidade, e que a qualquer momento poderemos enfrentar crises mais agudas.

Para tocar a vida sem agravar a situação, talvez seja o caso de equilibrar graves e agudos. Não para unificá-los em um tom médio, mas para buscar a harmonia em meio à diversidade de frequências.

Concluída essa divagação, inspirada na gravidade das coisas, talvez eu a publique apenas como texto. Ou talvez eu grave um vídeo sobre o assunto.

É… talvez eu grave.

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HEDIONDO, MAS COM MODERAÇÃO

Na quinta-feira (2/out), a Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência, um projeto de lei que torna crime hediondo a falsificação de bebidas. A proposta surge após casos recentes de internações e mortes causadas por ingestão de produtos adulterados com metanol.

A aprovação nos lembra que, no Brasil, certas tragédias são sempre o motor mais eficiente da máquina legislativa.

Historicamente, o legislador brasileiro costuma legislar a reboque dos fatos. Cada desastre gera sua lei, cada escândalo produz uma nova tipificação ou agrava a pena já existente. É o casuísmo de sempre: reage-se ao episódio, em vez de pensar em política pública consistente. E assim se constrói uma colcha de retalhos penal, onde cada novo pedaço é costurado às pressas, para que a sociedade sinta que algo foi feito.

O curioso, nesse caso, é a necessidade de, além de aumentar a pena do crime, carimbá-lo com a chancela de “hediondo”. Ou seja, se não fosse crime, passaria a ser; como já é crime, é preciso qualificá-lo como hediondo. Hediondo, aqui, é uma espécie de adjetivo de reforço, um grifo legislativo. É como se “crime” já não fosse suficiente para exprimir a repulsa social. Surge, então, esse degrau semântico: crime, crime grave, crime hediondo.

Algo semelhante àquela expressão tão familiar dos processos legislativos: “urgente urgentíssimo”. Dá até para imaginar uma fila de projetos urgentes, quando alguém chegou com algo que precisava passar na frente de tudo o que havia ali.

— Carimbe como “urgente urgentíssimo”! — alguém deve ter dado a sugestão, sem imaginar que ela seria urgentemente acatada.

Na prática, o efeito simbólico pode ser maior que o efeito concreto. Não é a mudança de categoria que impedirá a circulação clandestina do metanol, que seria melhor combatida com fiscalização efetiva, estrutura de vigilância sanitária e controle de fronteiras.

De todo modo, há um valor político no gesto: o de dizer à população que o Estado não tolera que a vida seja posta em risco dentro de uma garrafa de preço duvidoso.

No fim, espera-se pelo menos que não vire tudo mera retórica de mídia. Que não seja só decreto pomposo para manchete de jornal.

Enquanto isso, brindemos — com moderação e responsabilidade, claro — à esperança de que o metanol logo saia dos noticiários, e, principalmente, deixe de entrar nas garrafas de bebidas dos brasileiros.

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QUANDO EU ESTIVER FICANDO SÓ

Faz alguns anos que comecei a trabalhar na versão em português de “Cuando Ya Mi Empiece a Quedar Solo”, de Charly García.

Mas eu queria uma boa base de piano para por a voz.

Finalmente achei, no canal Hispana Partituras, do Guilo Villar.

O resto eu conto na introdução do próprio vídeo.

Assistam, curtam, compartilhem.

Se alguém tiver curiosidade de ouvir a cancan com a letra original, tem uma interpretação ótima do Fito Paez.

Clique aqui para ver.

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JUSTIÇA, VINGANÇA E IMPARCIALIDADE – O QUE APRENDEMOS COM OS OITO ODIADOS

Recentemente publiquei em uma revista jurídica um artigo desenvolvido a partir do filme “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino (2015). Embora a película não pareça, pelo menos à primeira vista, inspiradora de reflexões jurídicas, identifiquei nela um cenário denso, fechado e filosófico, que me levou a pensar o papel do Estado na mediação entre vingança e justiça.

Em uma das cenas mais provocativas do filme, Oswaldo Mobray, que se apresenta como carrasco da cidade de Red Rock, afirma que “a falta de paixão é a própria essência da justiça”. Para ele, o que diferencia a justiça da vingança não é o castigo em si, mas quem o aplica e como o faz. O carrasco, diz ele, não sente prazer nem ódio ao executar alguém — ele apenas cumpre um papel, sem envolvimento emocional. Por isso, seria ele o verdadeiro símbolo da justiça.

A fala é envolvente e convincente — mas deve ser examinada com cuidado. Primeiro, Mobray não é realmente um carrasco. Ele interpreta esse papel para fins próprios, e isso já põe sua reflexão sob suspeita. Segundo, talvez o carrasco até possa atuar dessa forma desapaixonada, mecânica até, mas ele apenas executa o que já foi decidido por um órgão julgador, ou seja, um juiz ou tribunal.

Isso nos põe diante da seguinte questão: será que esse ideal de justiça fria, desapaixonada, serve como modelo para quem julga?

O juiz não é um carrasco. O juiz não apenas cumpre — ele decide. E, ao decidir, toca dimensões humanas profundas: liberdade, honra, futuro.

A imparcialidade é, sim, uma exigência fundamental — mas ela não pode ser confundida com frieza. Um juiz não pode ser tomado pela paixão, mas tampouco pode se esvaziar de sentimento. Julgar é, também, compreender.

Hoje, em um mundo polarizado, o ideal de imparcialidade estatal continua essencial — mas também frágil. O risco de que estruturas institucionais se transformem em instrumentos de afirmação ideológica é real. A suposta neutralidade pode esconder escolhas seletivas, que passam por isentas mas estão carregadas de direção.

O que Tarantino nos lembra, ainda que à sua maneira, é que a justiça exige mais que uma alavanca puxada sem emoção. Se, por um lado, ela não deve ser dominada pela paixão, por outro, ela exige consciência e sensibilidade.

🔗 Para quem quiser ler a versão completa, basta clicar aqui e descer até a página 207.

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DISCURSOS, VERSOS E ALIANÇAS

Recebi pelo WhatsApp o vídeo de um político fazendo um inflamado discurso, com duras críticas a um ex-colega de palanque.

É impressionante como esse comportamento é comum na política brasileira: gente que esteve lado a lado em uma eleição, vira inimigo na eleição seguinte. E vice-versa!

“Versa” me lembra “versos”. Então, como não tenho – nem quero e nem posso ter – alinhamento partidário algum, deixo que fale meu coração de poeta, de maneira bem genérica e impessoal.

Vêm, em breve, as eleições.
Vêm junto os indignados,
Com denúncias de delitos
E discursos inflamados.
Depois, quando estão eleitos,
Deixam pra trás os malfeitos,
Voltam a ser aliados!

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UMA JOVEM CANÇÃO ITALIANA DOS ANOS 80

Escrevi uma versão em português para a canção Ogni Volta, de Vasco Rossi. Não é uma tradução literal, até porque é praticamente impossível fazer uma conversão para outra língua, mantendo a métrica e o sistema de rimas razoavelmente preservados. Mas busquei capturar, no nosso idioma, os sentimentos que atravessam a obra original: autossabotagem, postergação e contradições cotidianas.

A letra original, em italiano, fala de uma sucessão de pequenos contratempos pessoais, que costumam fazer parte da vida de qualquer pessoa, mas podem formar um todo bem assustador, e até paralisante, especialmente para alguém que tenha tendências depressivas.

Apesar de a canção ter sido lançada por Vasco Rossi em 1982, penso que esse é um quadro bem presente nos dias de hoje. Talvez esse tenha sido o principal estímulo para querer deixá-la mais acessível aos falantes da língua portuguesa. E concluí que não era hora de ficar aqui parado,

“Com a cabeça entre as minhas mãos
Adiando tudo pra amanhã.”

No lugar de “ogni volta”, pus “cada vez”. Mantive o ritmo e a cadência. Adaptei imagens. O vídeo de Cada Vez está logo a seguir (aliás, acho que o clipe ficou bem legal):

Espero que toque você — como me tocou.

Para quem tiver curiosidade de conhecer a versão original, temos aqui uma apresentação de Vasco Rossi, em San Siro. Apesar de a música ser de 1982, é impressionante a reação do público em 2003, ou seja, 20 anos depois:

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JUNHO CHEGOU, É TEMPO DE FORRÓ!

Aproveitamos a chegada de junho para usar a inteligência artificial na composição de um forró:

QUEM TEM TEM MEDO

Você chega todo cheio
Diz que é destemido
Mas na hora da verdade
ficou escondido
Diz que enfrenta tudo
Não teme um perigo
Mas, se escuta um estouro
Já procura um abrigo

Você diz que é corajoso
Mas eu sei o seu segredo
Fala que não tem nada
Mas quem tem tem medo
Você diz que é corajoso
Mas eu sei o seu segredo
Fala que não tem nada
Mas quem tem tem medo

No passo do xote
Você tenta impressionar
Mas a perna treme
antes mesmo de dançar
A pose é de bravo
Mas eu sei o que é verdade
No fundo do peito mora a fragilidade

Não precisa fingir
Pode relaxar
A coragem vem mesmo é de se aceitar
Todo mundo tem medo
Até o mais durão
Mas admitir é que é o ato de um campeão

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A VERSATILIDADE DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E AS PANELAS NO FOGO

Não é novidade para ninguém que as inteligências artificiais estão se espalhando por todas as atividades humanas. Na minha área profissional, advogados e membros do Ministério Público a utilizam para pesquisas jurídicas e elaboração de petições, com ótimos resultados. Nós, do Poder Judiciário, também a utilizamos, e não apenas para pesquisas e elaborações de sentenças, mas para nos ajudar na análise das próprias peças processuais produzidas por advogados e membros do Ministério Público.

Evidentemente que precisamos ter cuidado com o material produzido pelas IA, submetendo tudo ao nosso crivo pessoal. Afinal, quem assina um texto se responsabiliza pelo seu conteúdo, e não dá para confiar cegamente no que foi criado por outra inteligência, seja ela natural ou artificial.

No caso das IA, ainda convivemos com o risco das alucinações, que podem inutilizar completamente o trabalho realizado. Para quem ainda não sabe o que significa “alucinação”, aqui vai a resposta da IA do Google:

Em IA, “alucinação” (também conhecida como “factos inventados”) refere-se a um modelo de IA que gera resultados incorretos ou enganosos, muitas vezes apresentados como verdadeiros. Essas “alucinações” podem ser causadas por diversos fatores, como dados de treino insuficientes, suposições incorretas do modelo ou vieses nos dados.

Ou talvez você prefira a explicação da Grok, a IA do X:

A alucinação da IA ocorre quando um modelo de inteligência artificial, como eu, gera informações ou respostas que parecem plausíveis, mas são incorretas, imprecisas ou completamente inventadas. Isso pode acontecer porque os modelos de IA são treinados em grandes quantidades de dados e tentam prever respostas com base em padrões, sem realmente “entender” o contexto ou verificar fatos em tempo real.

Como nem só de trabalho vive o homem, tenho utilizado o Chat GPT também para a produção de textos não jurídicos, como contos e crônicas. Já existe até livro sobre isso, como o e-book “Ficção com Chat GPT: escreva histórias fabulosas com IA”, de Eudes Saulo.

Mas o que tenho achado divertido mesmo é criar músicas com IA. Já criei samba, frevo, reggae e até uma balada country em inglês. Passo os parâmetros da canção pretendida para a IA Suno, e ela me devolve duas opções da música já pronta, para que eu escolha a que mais me agrada. É divertido!

Uma das que mais gostei recebeu o título de “Panelas no Fogo”. A letra surgiu de uma conversa com amigos, quando um dos presentes contou a história de uma jovem que estava noiva, mas se encontrava às escondidas com outro rapaz. Ele insistia para que ela terminasse o noivado e, assim, pudessem ficar juntos. Mas a moça sempre tinha uma desculpa para adiar a decisão. Até que ele descobriu que havia um terceiro concorrente, e ela estava em dúvida sobre com quem ficaria se terminasse o noivado. Acabou ficando sem nenhum deles.

Ao ouvir tal história, alguém alertou, em meio a risos: “Com essas três panelas no fogo, alguma coisa ia acabar queimando mesmo!”. Mais risos aconteceram em seguida.

Gostei da expressão “panelas no fogo”, e, utilizando meu celular, acionei o aplicativo Suno para criar a canção. Foi um sucesso imediato! Para não restringir o alcance da canção aos amigos ali presentes, dias depois criei um videoclipe e postei no meu canal do YouTube.

Agora, compartilho o vídeo com meus leitores. Não esqueçam de deixar o “gostei”  no Youtube!

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RESGATE NA NEVE: DE VOLTA À CENA DO ACIDENTE

Em março de 2011 escrevi uma crônica, baseada em fatos, que ilustra um pouco as diferenças e semelhanças culturais entre brasileiros e norte-americanos. Este ano, tendo a oportunidade de viajar novamente aos Estados Unidos da América, encontrei lá o personagem principal da história, que fez a gentileza de me mostrar o local onde tudo aconteceu.

Foi divertido relembrar o fato, o qual não presenciei, mas, segundo ele, narrei com uma riqueza de detalhes como nem ele próprio seria capaz de fazer.

Busquei então a crônica no Google, mas não encontrei mais o texto. Assim, republico-o a seguir, sem nada acrescentar ou omitir.

* * *

Nesses dias que antecedem a chegada do presidente Barack Obama ao Brasil – escrevo no dia 16 de março de 2011 – lembrei-me de uma história que ilustra um pouco as diferenças e semelhanças entre o estilo de vida americano e o brasileiro.

Devo advertir, porém, que esta não é uma obra de ficção. Um ou outro detalhe até pode acabar sendo suprimido ou acrescentado, mas essas pequenas alterações serão decorrentes apenas das limitações da memória deste escriba ou da necessidade de dar um pouco mais de carga emocional a algum ponto da narração, fazendo dela uma “verdade melhorada”, expressão que aprendi com Jessier Quirino em outra ocasião.

No mais, os fatos aqui narrados pretendem ser reais ou, pelo menos, fiéis à versão que me foi transmitida pelo seu principal personagem, o americano Paulo Rodrigues, que, apesar do nome familiar aos nossos ouvidos brasileiros, nasceu naquele país do norte e mora em uma pequena cidade do Condado de New Haven, no Estado de Connecticut. Nossa amizade decorre do fato de ele ser casado com a brasileira Roberta, que é irmã de minha esposa.

Pois se deu que, em uma fria tarde de inverno, meu amigo Paulo estava voltando para casa quando precisou parar e fazer algumas compras. Como estava nevando, pensava em demorar o mínimo possível na loja e seguir imediatamente para casa, mas ficou ali o suficiente para, ao sair, encontrar o carro coberto de neve.

Até aí, tudo bem. Um pouco de neve não seria um grande incômodo. Os problemas de Paulo começaram quando ele, antes de entrar no carro, passou a mão no pára-brisa, tentando limpar a parte por onde pretendia enxergar. Nesse movimento, a aliança de casamento, que estava um pouco folgada, escorregou do dedo, quicou sobre o capô do veículo e foi mergulhar na camada de neve que cobria o chão do estacionamento.

É claro que a pequena auréola de ouro afundou imediatamente no solo branco e frio. É claro também que, seja no Brasil ou em Connecticut, perder a aliança de casamento é algo bem mais complicado que perder uma caneta ou um anel de formatura.

No caso, Paulo sabia que Roberta dificilmente acreditaria em histórias absurdas, de anéis que fogem dos dedos e se escondem na neve. Então, sem pensar duas vezes, ajoelhou-se no local onde presumivelmente a aliança havia caído, e pôs-se a revirar a neve em busca do valioso objeto.

Passados alguns minutos de busca infrutífera, tudo o que Paulo conseguiu foi chamar a atenção de um policial, que passava pelo local em sua viatura e achou a atitude suspeita.

Hey, guy! O que você está fazendo com a cara enfiada na neve desse jeito? – interrogou o policial.

Paulo explicou com cuidado. Temia que o guarda não o levasse a sério ou achasse que ele estava escondendo algo. Para sua surpresa, ao terminar de ouvir sua história, o policial pôs as duas mãos atrás da cabeça e exclamou:

Oh, my God! Se sua mulher for ciumenta como a minha, you’re fucked!

Paulo nada respondeu. Apenas acenou positivamente com a cabeça. Enquanto isso, o policial pegou o walk-talk que carregava preso ao uniforme e pediu reforços. Logo toda a área, em um raio de cinco metros em torno do carro, estava isolada por fitas amarelas, daquelas que se vê nos filmes de Hollywood.

Um policial revolvia a neve com uma espécie de ancinho – ou rastelo, ou ainda ciscador, como preferimos chamar no Ceará – e outro chegou munido de um detector de metais. Por causa do frio, poucas pessoas tentavam se aproximar do teatro de operações, mas as que o faziam eram imediatamente orientadas a manter distância.

Ao cabo de vinte e dois minutos de busca, a aliança era encontrada e posta novamente no dedo do seu proprietário, motivando gritos de comemoração, abraços e aplausos. Como a comemoração de um gol, ou, para ser mais conforme o país onde se deram os acontecimentos, um touchdown!

O certo é que a expressão de alívio de Paulo, e a grande comemoração dos policiais, era a demonstração de que, apesar de haver grandes diferenças entre lá e cá, como o clima e o trabalho da polícia, há uma grande semelhança em relação ao ciúme das esposas e o medo que os homens têm de despertar sua fúria.

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A CERTIDÃO

Nesses tempos de inteligências artificiais fazendo minutas de petições, pareceres e sentenças (claro que sempre sob a supervisão de um ser humano!), usei parte do domingo para manusear um material que o mundo virtual promete eliminar, mas que insiste em se multiplicar em nossas gavetas: o papel.

Por mais que utilizemos meios eletrônicos para fazer pagamentos, enviar correspondência e declarar o imposto de renda, a cada ano acumulam-se nas gavetas (pelo menos nas minhas) boletos, faturas de cartão de crédito, resultados de exames médicos e tantos documentos que hesitamos ao pensar em jogar no lixo.

De tempos em tempos, torna-se inevitável o descarte.

Mas, no último fim de semana, fui além de simples gavetas. Resolvi abrir pastas velhas, que jaziam na prateleira de uma estante há anos, sem merecer um mínimo de minha atenção.

Admito que, ao fazê-lo, lembrei da advertência de Guy de Maupassant, em seu conto “Suicídios”: “Oh, se você preza a vida, nunca perturbe o local de sepultamento de cartas antigas!”. Não respeitei o alerta e fui adiante. Afinal, até onde minha memória permitia retroceder, não havia cartas ali. No máximo, velhos contratos e petições dos meus tempos de advocacia.

De fato, eram apenas documentos de outros tempos de minha vida profissional. Isto não impediu, porém, que entre eles estivesse escondida verdadeira pérola do folclore jurídico pátrio, que há muito eu imaginava perdida para sempre!

Trata-se de uma certidão, da lavra de um conhecido oficial de justiça cearense, famoso pelas tiradas pitorescas nos documentos que elaborava no cumprimento de seu mister. Daquela vez, não foi diferente.

Antes de compartilhar com os leitores o teor do documento, uma breve contextualização histórica: no já longínquo ano de 1993, em novembro, o então Juiz de Direito da 2ª Vara de Execuções Fiscais da Comarca de Fortaleza-CE mandou expedir mandado para que fossem penhorados bens pertencentes ao senhor Antônio de Tal, para garantir o pagamento de um débito junto à Prefeitura de Fortaleza, aparentemente, decorrente do não pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano, o IPTU.

Para cumprimento do mandado, foi designado o oficial de justiça Benício de Abreu Tranca, que, no verso do mandado, lavrou a seguinte certidão:

Certifico que o seu Antônio (…), de fato, mora no endereço apontado, com a sua mulher. Um casal em fim de carreira. As chuteiras do seu Antônio estão penduradas na salinha ao lado. Hoje o seu Antônio vive duma aposentadoria, em razão dum derrame cerebral, já na casa dos oitenta.

Mas na sua mocidade seu Antônio foi como um navegador português, do século XVI. Um aventureiro. Fez algum patrimônio com as suas aventuras. Mas sua vida foi como um pau de sebo: ora ele estava na ponta, ora no pé. Por enquanto ele está embaixo. Mora às custas dum genro. De terra mesmo, ele só tem as das unhas.

Numa certa manhã, o seu Antônio descobriu um tesouro escondido. Uma faixa de terra, no fim, bem no finzinho do Papicu, na subida do morro, zona valorizada, olhando para a Aldeota, o mar bem pertinho, os arranhas-céus se encostando e o rolo compressor do “progresso” lhe convidando a mais uma aventura. Sabe o que foi que o seu Antônio fez, MM? Consultou um jurista do ramo, contratou um engenheiro, fez uma planta do dito terreno – diga-se, de passagem, uma planta muito bem feita – foi na Prefeitura e lá o seu Antônio cadastrou esse terreno no seu nome. Gastou os cabelos da cabeça, com as “aves de rapina”. O sonho do seu Antônio era usucapir a área de terra. Um terreno que nem ele mesmo sabe a quem pertence. Terras devolutas, ainda em mata virgem.

O seu Antônio chegou a se considerar um descobridor das “Índias”. Um Vasco da Gama. Pedro Álvares Cabral em miniatura. Só faltou o Dom Manuel, o Venturoso. Ele diz que o terreno tem mais de seis hectares. Não sabe se o é de marinha, se da Prefeitura, mas sabe que “laranja madura, na beira da estrada, Zé, ou está bichada ou tem marimbondo no pé”. Chegou a botar lá, um camião de madeira. Queria cercá-lo. Fazer dentro, uma casinha e botar um morador. Dar à coisa uma ideia de posse.

A ideia não deu certo. Botaram fogo na madeira. A polícia foi lá, balançaram o coreto e o Seu Antônio correu. Nunca mais foi lá. Quando passa por perto, olha só com o rabo do olho. Ficou escaldado. Até o Ibama foi lá. O velho saiu de lá azedo. Pensou que tudo estava acabado e foi dormir, de melé solto.

Quando pensava que não, chegou em sua casa, o carnê. O carnêzinho da prefeitura. Seu Antônio tinha agora de pagar os impostos do danado do terreno por ele cadastrado, sem ele, seu Antônio, comer, nem beber.

E agora, José? Desde o dia em que eu fui lá, que a família do seu Antônio nunca mais dormiu direito. Tá todo mundo pagando os pecados do seu Antônio. O preço da aventura do Executado é tão grande que eu não sei calcular. Foge à minha aritmética. Daqui para a frente quem aventurará é a Prefeitura por seus procuradores, que virão em encarnações futuras, porque, desta vez, não dá. O velho é um coitado, e por cima de tudo, bilé da cuca. Uma criança.

A Exequente não deve perder tempo com isso. Um processo desse não deve nem sequer ser arquivado para não ocupar espaço. Deve ser queimado. Com ele, os outros do mesmo naipe. Que se faça adubo. Que se adube a Terra.

Em tempo: o valor da execução fiscal, em novembro de 1993, era de CR$ 1.099.608.545,65 (cruzeiros reais); atualizado para dezembro de 2024, pela Calculadora do Cidadão, do Banco Central do Brasil, a quantia seria de R$ 81.391.506,05.