MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

NINGUÉM VAI ME OUVIR

As coisas tão ficando complicadas na minha cabeça.
E tudo que aprendi eu já começo a desaprender.
E o pouco que ainda lembro tenho medo que eu agora esqueça.
E aquilo que eu fazia, a cada dia deixo de fazer.

Até o meu violão
Eu quase não toco mais
Por causa do tempo que passo em redes sociais.

Se quero saber das notícias,
Eu já não procuro jornais.
Verdades, versões e mentiras estão quase iguais.

Escrevo canções mas sempre acho que ninguém me entende.
Pois até lá em casa já não tão me entendendo também.
Parece que as coisas que eu falo ninguém compreende,
Mas tá tudo certo, eu também não entendo ninguém.

Eu ligo o computador
Pensando em me distrair.
Como quem procura um bar, um lugar para ir.

Escrevo umas frases e clico
Num certo botão de enviar
Mas sinto que o que eu disser ninguém vai escutar.

MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

A DANÇA DA VERDADE(*)

Outro dia estava eu a refletir sobre a quantidade de mentiras que se espalham pelo mundo. Fazia isso sentado em uma cadeira de balanço, na varanda de minha casa, quando Shayeubad apareceu no portão.

Convidei-o a entrar e nos pusemos a conversar sobre o assunto.

Até que, a certa altura da conversa, ele me fez um convite inusitado:

– Se você deixar seu corpo dormindo aí, posso lhe levar para ver a dança das versões. É uma performance bem interessante sobre essas suas reflexões.

Mesmo sem entender direito o que ele quis dizer com “deixar meu corpo dormindo”, minha sempre aguçada curiosidade levou-me a concordar imediatamente.

Shayeubad pediu que eu fechasse os olhos. Fechei e o ouvi contar regressivamente de três a um.

No instante seguinte estávamos em um grande salão, onde um tablado oval, de uns 100 metros quadrados, era contornado por cadeiras confortáveis. A maioria delas estava ocupada por pessoas que, aparentemente, esperavam o início de uma apresentação.

Shayeubad me orientou a ocupar um dos lugares disponíveis e esperar também.

Minutos depois, começou a tocar uma música instrumental, um tanto épica.

Em seguida, surgiu no meio do tablado uma espécie de luz, em formato feminino. Mais precisamente, a imagem de uma bela mulher, feita de luz violeta.

Mas aquela figura luminosa esteve diante dos nossos olhos apenas por alguns instantes.

Um ou dois segundos depois surgiram magicamente, em volta dela, de quatro a seis mulheres. Eram em tudo semelhantes ao ser de luz: na cor, na forma e nos movimentos. Mas, aparentemente, eram feitas de matéria consistente, como a de nossos corpos humanos.

Dançavam de modo a seduzir os olhares dos presentes, enquanto o ser de luz desaparecia por trás de seus corpos.

No momento seguinte brotaram do chão outras dançarinas.

Estavam em maior quantidade e não eram tão parecidas com o ser de luz, como o eram as primeiras, apesar de algumas serem também muito belas. Outras, nem tanto.

Percebi então que havia entre todas aquelas dançarinas uma espécie de disputa pela atenção do público. À medida que desenvolviam suas performances, se alguma se destacava, as pessoas aplaudiam seus movimentos. Enquanto isso, aquelas que obtinham menos destaque aos poucos esmaeciam e sumiam diante dos nossos olhos.

Depois de alguns minutos, restou no salão apenas uma das dançarinas do primeiro grupo – uma daquelas quatro ou seis que haviam surgido em torno da figura luminosa.

O público a aplaudiu calorosamente. Ela agradeceu e deixou o tablado.

Era possível ouvir o rumor das pessoas comentando o desempenho das dançarinas. Alguns dos presentes pareciam não concordar com o resultado final. Esperavam que outra dentre elas houvesse chegado ao final.

Passados alguns minutos, novo espetáculo começou, semelhante ao primeiro.

Dessa vez, a figura feminina que surgiu no meio do tablado era feita de uma luz amarela, brilhante como ouro.

Rapidamente, sua luminosidade projetou-se para fora do corpo, dando forma a quatro dançarinas vestidas de amarelo, parecidíssimas com ela. Sua pele aparentava estar coberta por tinta dourada.

Dançavam freneticamente em torno do ser de luz, enquanto ele desaparecia.

Não tardou a brotarem do chão as outras dançarinas. Estavam em número bem maior que na apresentação anterior. Em sua disputa por atenção, às vezes duas ou três juntavam seus corpos e punham-se à frente de alguma das artistas performáticas que haviam surgido primeiro, impedindo que o público as visse.

Aos poucos, porém, cada uma das moças foi desaparecendo – como da primeira vez – restando somente uma dançarina de amarelo.

Novos aplausos do público. Dessa vez, de pé.

Não sei quanto tempo ficamos ali, mas foi o suficiente para assistirmos a várias daquelas apresentações, que se sucediam após breves intervalos.

Ao sairmos do salão, agradeci a Shayeubad por me levar a ver tão belo espetáculo. Mas, percebendo que ele esperava de mim algum comentário mais detalhado, acrescentei:

– Notei que na maioria das vezes a dançarina que ficava por último era uma das primeiras a surgir no tablado. Apesar do esforço das moças que brotavam do chão, poucas delas conseguiram se manter até o final.

– É assim mesmo – respondeu Shayeubad sorrindo. – Lembra de quando lhe falei que o espetáculo se chama “Dança das Versões”?

– Lembro.

– É isso. O ser de luz que surge no início de cada ato é a verdade. O brilho da verdade dá origem a algumas figuras semelhantes a ela: as versões. Mas logo surgem as mentiras, chamando para si a atenção. O resto você já entendeu.

– Sim, entendi. E embora me conforte saber que na maioria das vezes as mentiras se dissolvam, lamento que a verdade em sua forma original, seja uma luz que brilha apenas por poucos instantes. Depois, o que resta são versões. Mesmo que versões verdadeiras, versões.

– Não lamente. Para o público, uma boa versão da verdade é suficiente. Nem sei se estamos prontos para um mundo onde a verdadeira verdade prevaleça. Você está pronto? Eu estou?

– Não sei.

– Então feche os olhos e conte até três. Vamos voltar.

Obedeci e, ao abrir os olhos novamente, estava na varanda da minha casa, em minha cadeira de balanço.

Shayeubad havia sumido.

(*) Publiquei esse texto há alguns anos, aqui mesmo no JBF. Retirei a publicação quando o incluí em meu livro “Histórias para refletir, repensar e repassar”. Mas, diante do quanto o assunto “fakenews” tem estado presente na mídia e nas redes sociais, resolvi postá-lo novamente.

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MADRUGANDO NO AEROPORTO

São quatro e meia da madrugada e escrevo com o notebook apoiado em uma das mesas de um café, no aeroporto de Brasília.

Tive que acordar cedo para estar aqui a essa hora. Mas, fazer o quê? Sou um sujeito um tanto neurótico com essa história de perder voo. Prefiro uma hora de ociosidade na área de embarque a sair por aí correndo enquanto arrasto a bagagem de mão. Lembro, como se fosse ontem, das vezes mais assustadoras em que isso aconteceu, a primeira, no aeroporto de Lisboa, a segunda, no de Amsterdã. Talvez o risco de não conseguir voltar para o Brasil tenha me traumatizado.

Mas, duas semanas atrás, aconteceu de novo, desta feita em Brasília mesmo. A caminho do aeroporto, deparei-me com o pior engarrafamento que já vi na via L4 Sul. Quem conhece Brasília sabe que o limite de velocidade ali é de 80 Km/h, mas sabe também que entre seis e oito da noite o trânsito pode ficar complicado.

O certo é que, quando passei minha bagagem de mão pelo raio X, faltavam dois minutos para o início do embarque. Foi nessa hora que a funcionária disse, com toda a simpatia possível:

– O senhor foi sorteado para ter a bagagem submetida a uma inspeção visual.

Um palavrão quase escapou da minha boca, mas controlei a reação. Cheguei a argumentar que faltavam dois minutos para o início do embarque, mas ela disse gentilmente:

– Dá tempo. É rapidinho.

E só me restou esperar e engolir o choro. No final, acabou dando tudo certo.

Esse problema não terei hoje. Como disse na primeira linha desta crônica, às quatro e meia da madrugada eu já havia passado pelo raio X da bagagem de mão. Com o início do embarque previsto para 8:25 da manhã, estou tranquilo.

Escrevi o parágrafo anterior e pensei: o leitor que chegou até aqui deve estar achando que me atrapalhei com os horários; ou que enlouqueci de vez. Como assim, a pessoa chegar ao aeroporto às 4:30 da madrugada, para um voo que promete decolar às nove da manhã?

Admito, é estranho mesmo. Mas, é preciso considerar que escrevo no dia 30 de março de 2023.

Ontem à noite, enquanto arrumava a mala, vi a notícia que Jair Bolsonaro desembarcaria em Brasília hoje, às sete da manhã, depois de três meses fora do Brasil. E senti um frio na barriga.

Pensei nos bolsonaristas com saudade do seu líder, desejosos por mostrar a ele sua lealdade; pensei no próprio ex-presidente, sorrindo e acenando para a multidão; pensei na preocupação das autoridades responsáveis pela segurança do Distrito Federal, querendo evitar serem tachadas de omissas.

Vieram-me à mente imagens de barreiras policiais, mochilas sendo revistadas antes de entrar no saguão do aeroporto e um monte de gente em todos os espaços do aeroporto, gritando: “Mito! Mito! Mito!”.

Em meio a todo esse movimento, eu não conseguia chegar a tempo de pegar meu voo.

Estimulado por esses pensamentos, eu poderia ter feito várias reflexões sobre política, democracia, direito de manifestação e tantas coisas.

Mas fui dominado por uma preocupação, digamos, mais imediata, talvez trivial, quem sabe até egoista:

– Dessa vez não! – disse eu, em voz alta a mim mesmo. – Saio de casa de madrugada, mas, quando essa multidão se formar, já estarei dentro do aeroporto!

Separei a roupa para viajar, programei o despertador do celular para as três da madrugada e tentei dormir.

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CRÔNICA DE SEGUNDA-FEIRA: A SEGUNDA NA TERÇA E A MENTIRA DA LINGUAGEM NEUTRA

Nos últimos dias do ano de 2022, tracei minhas metas para 2023. Normal. Milhões de pessoas fazem isso no mundo inteiro. Mas desta vez me impus uma meta que soou como um desafio: escrever pelo uma vez por semana para minha coluna no Jornal da Besta Fubana.

Talvez isso não pareça muita coisa para grandes jornalistas, daqueles que têm colunas diárias, ou mesmo semanais, em grandes jornais, mas para mim, que não tenho a atividade de colunista do JBF como atividade principal, é.

Deu-se, porém, que o primeiro dia de 2023 caiu em um domingo. E, talvez pela educação religiosa que recebi, talvez por tradição, talvez pela preguiça que o domingo me inspira, escrever em um domingo não seria fácil. E teve a festa de réveillon, que havia durado até às sete da manhã daquele dia 1/1/2023 (na verdade, esse foi o verdadeiro motivo de eu não querer nem olhar para a tela do computador naquele dia).

Foi na noite daquele domingo que me veio a ideia da “Crônica de Segunda-Feira”. Recostei-me para dormir, no domingo à noite, sem a menor ideia do que escreveria no dia seguinte, mas com uma certeza: antes da meia-noite da segunda-feira teria um texto escrito para o JBF.

E assim fiz. Quem leu deve ter observado que o assunto da crônica foi minha caminhada matinal pelas ruas de Copacabana, onde havia passado a virada do ano. É óbvio. Por um lado, já acordei pensando na crônica; por outro, não faltavam fontes de inspiração naquele lugar incrível.

Repeti a fórmula nas duas segundas-feiras seguintes e – bingo! – texto concluído e enviado ao nosso patrão Luiz Berto com sucesso! Noutras palavras, a ideia da crônica de segunda-feira parece ter dado certo.

Acontece que Berto, observador como é, não poderia deixar passar um detalhe. E perguntou, via WhatsApp: “Por que danado você tá enviando crônicas de segunda-feira na terça?”.

Agora, vocês sabem o que o Berto já sabia: envio a crônica na terça porque escrevo na segunda. Como eu tenho mania de deixar o texto descansando algumas horas, antes de revisar, faço a revisão na terça-feira, bem cedinho, e só então envio para publicação.

E ficou assim: a crônica de segunda-feira sempre sai na terça-feira.

Hoje, por exemplo, eu aproveitei que não tinha acontecido nada de extraordinário durante o dia para passar essas explicações para vocês.

Aliás, não tinha nada quase até o final do dia, porque quando eu dava aquela última olhada no celular antes de me preparar para dormir, deparei-me com a seguinte manchete, em um site do governo brasileiro: PARLAMENTARES ELEITES REÚNEM-SE PELA PRIMEIRA VEZ EM BRASÍLIA.

É isso mesmo que vocês leram: ELEITES!

Eu já tinha visto uns vídeos que mostravam a posse de membros do governo que se instalou no Brasil neste ano, e neles a pessoa que ia discursar cumprimentava a “TODAS, TODOS E TODES”. Alguns invertiam, certamente para dar mais ênfase, pondo o TODES antes do TODOS.

Mas achei que era iniciativa da pessoa que discursava. Uma vontade de chamar a atenção, parecer inclusivo ou, como se diz nas redes sociais, simplesmente “lacrar”. Não imaginei que a comunicação oficial um dia viesse a maltratar a língua portuguesa dessa forma.

Diante da tal “vontade de lacrar”, imaginei se não seria o caso de ignorar o fato. Fazer de conta que não vi.

Mas não foi possível. A palavra TODOS já tem para mim um significado, e sempre foi suficientemente inclusivo. Bastava se dirigir a TODOS para ficar claro que todas as pessoas presentes eram destinatárias da nossa voz.

Antes de me tornar uma pessoa “de humanas”, a coisa funcionava para mim como um corolário da teoria dos conjuntos. TODOS significava a totalidade dos elementos de um conjunto. Assim, TODOS eram todos os seres humanos, todas as pessoas, todas as laranjas de um cesto, todos os planetas do universo.

Agora vem essa gente preconceituosa separar todo mundo (ou talvez eles prefiram “tode munde”).

Quer saber? Ainda que a intenção de vocês fosse se expressar de forma mais inclusiva, vocês estariam atentando contra a nossa língua portuguesa, e, consequentemente, contra a nossa cultura, contra a nossa história.

Acontece que vocês não estão sendo inclusivos. Vocês fingem que estão incluindo, mas estão, na verdade, dividindo as pessoas, como se, no fim das contas, não fosse todo mundo gente.

Fico triste ao ver o governo brasileiro apoiar esse tipo de coisa.

Enquanto não me ameaçarem de prisão por respeitar a língua portuguesa, esta crônica está disponível à leitura de TODOS.

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CRÔNICA DE SEGUNDA-FEIRA: QUEM NÃO DEVE, NÃO TEME?

Nesses tempos em que governos de muitos países anunciam a criação de instrumentos legais para (supostamente) combater as tais “fake news”, velhas mentiras continuam ocupando o imaginário popular como se verdades fossem.

Digo isso a propósito de uma frase que ouvi diversas vezes esta semana, tanto nas redes sociais como de viva voz: “Quem não deve, não teme”.

Como é possível que uma frase tão sem sentido venha sendo repetida ao longo dos anos, como se fosse um axioma, geralmente em tom de desafio ou provocação?

Se quem deve teme, mais motivos para temer tem aquele que não deve. Afinal, se um pode ser obrigado a pagar o que deve, o outro pode acabar sendo obrigado a pagar o que não deve. Terrível possibilidade!

Apesar disso, ainda ontem, vi alguém usar esse argumento, ao questionar o direito de um investigado ficar em silêncio:

– Se quis ficar em silêncio já é um sinal que tem alguma coisa a esconder. Quem não deve, não teme!

É fácil pensar assim, quando não se está sendo interrogado, sabendo que cada tentativa de explicar os fatos pode ser interpretada como uma autoincriminação. Nos tempos atuais, ainda há o risco (alto!) de que cada frase pronunciada esteja, no mesmo dia, sendo escrutinada por milhares de pessoas em redes sociais. Com a costumeira má vontade da maioria dos internautas.

Por coincidência, iniciei, neste fim de semana, a leitura do livro “Nos Campos de Concentração Soviéticos”, de Vladimir Tchernavim. Após narrar a prisão dos seus colegas de trabalho pelo GPU (polícia secreta da URSS), o autor desabafa:

Não tenho palavras para descrever o que senti depois da prisão dos meus colegas de trabalho. Eu sabia que estava em um beco sem saída e que não havia nada que eu pudesse fazer. Era por puro acaso que eu ainda continuava livre, e a única explicação para isso era a ineficiência por parte do GPU, que não tinha o meu nome em suas listas apenas porque eu havia acabado de chegar a Moscou vindo das províncias.

Vladimir Tchernavim acabou sendo preso dias depois, apesar da sua inocência.

Esse é um exemplo extremo. Porém real. De todo modo, é preciso reconhecer que mesmo o mais justo dos juízes corre o risco de condenar um inocente. Pode ser induzido a erro por argumentos falaciosos, por um processo mal instruído ou simplesmente pelo enviesamento ideológico da sua própria formação moral, cultural ou intelectual.

Quando se fala em “devido processo legal”, “ampla defesa” e coisas assim, a ideia é exatamente a de evitar que alguém seja condenado ou preso injustamente. Porque, como costumam dizer os juristas, é preferível absolver um culpado que condenar um inocente.

É por isso que existe a expressão latina “in dubio pro reo”, a nos lembrar que, na dúvida, o juiz deve decidir em favor do réu.

O certo é que, seja pelo risco da condenação injusta, seja pela possibilidade de, ainda que absolvido, ficar mal visto socialmente, quem deve tem motivos de sobra para temer.

Aliás, acredito que não seja por coincidência que, nos últimos dias, cada vez que ouvi a frase “quem não deve, não teme”, ela foi pronunciada por alguém que demonstrava interesse em condenações.

Considerado tom de voz e a expressão corporal, o sentimento manifestado era de vingança, e não de Justiça.

Tudo isso me leva à mesma conclusão: quem não deve é quem mais teme; ou deveria temer.

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UM LOUCO NO PODER

Um homem que enlouqueceu
É um homem perigoso.
Mas o perigo é maior
Se for também poderoso.
Faz coisas muito absurdas,
E as pessoas seguem surdas,
Fingindo não perceber
Os abusos perpetrados
E os prejuízos causados
Por um louco no poder.

MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

CRÔNICA DE SEGUNDA-FEIRA: VOLTA A BRASÍLIA EM UM DIA ESTRANHO

Estamos de volta a Brasília. Chegamos à Capital Federal na chuvosa manhã do dia nove de janeiro de 2023, a segunda segunda-feira do ano. Impossível escrever isso sem registrar que é o dia seguinte ao da invasão aos prédios do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal.

Parentes e amigos chegaram a me telefonar – ainda no domingo – perguntando sobre os acontecimentos em curso na Praça dos Três Poderes. Alguns ficaram preocupados, porque eu não atendia o celular nem lia mensagens.

Mas meu sumiço não tinha qualquer relação com os fatos em Brasília. Estava eu em outra aventura, com o celular em modo “não perturbe”, dirigindo meu carro ao longo da BR-040, entre os Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Assim, só fiquei sabendo das invasões quando chegamos ao hotel em Paracatu, onde pernoitaríamos, para seguir em direção a Brasília na manhã seguinte.

Demoramos um pouco para entender o que havia ocorrido. Víamos os comentários e imagens recuperadas exibidos no único canal de notícias disponível da TV do hotel, mas era difícil crer no que estava sendo apresentado. Recorremos a canais do YouTube, redes sociais, mensagens de parentes e amigos, e fomos tomando pé da situação. Uma lástima!

Com as ideias já mais organizadas, lembrei de um parágrafo que havia escrito na crônica da semana anterior:

(…) as amplitudes brasilienses parecem não ser mais suficientes para proteger os detentores do poder estatal da pressão popular. Bem o demonstram as grades de ferro que há aproximadamente dez anos enfeiam a Praça dos Três Poderes.

Pensava eu, então, na pressão popular que seria natural haver neste ano e nos próximos, em face do governo atual, considerando o apertado resultado da eleição presidencial de 2022. Considerava também a possibilidade de protestos contra autoridades dos Poderes Legislativo e Judiciário, haja vista as notícias que nos chegam de insatisfações populares contra membros desses poderes.

Mas pensava sempre em protestos pacíficos, como outros que já haviam ocorrido. A invasão de prédios e a destruição do patrimônio público foi algo que me surpreendeu. E que me entristeceu e preocupou também.

Entristeceu, porque, vejo meu país enfrentando uma séria instabilidade política, que vem se arrastando há anos, causando sofrimento ao nosso povo. Preocupou, porque essa instabilidade política não parece arrefecer, mas, ao contrário, dá sinais de que pode se agravar mais ainda. Difícil, pra não dizer impossível, prever até onde iremos nesse processo.

Abstenho-me de fazer julgamentos – sejam morais ou jurídicos – das pessoas envolvidas nesses atos, bem como das autoridades responsáveis por prevê-los, evitá-los e combatê-los.

Escrevo aqui apenas como escritor. Não me compete julgar ninguém nesse caso. E, tendo já julgado e condenado muitas pessoas, em razão do meu ofício como magistrado, evito julgar casos que não me competem. Ao contrário disso, tento entender a atitude de cada um, para compreender o que ocorre à minha volta.

Encerro, assim, citando um tuíte que publiquei no dia 30 de outubro de 2022, pela manhã, ou seja, no dia do segundo turno da eleição para presidente, mas antes de saber o resultado.

Continuo pensando que o caminho seja esse. Cada indivíduo, cada líder, cada autoridade, cada membro de Poder reavaliar a própria conduta, no intuito de adequá-la a uma busca do equilíbrio, hoje tão necessário ao nosso país e ao nosso povo.

Penso, mas não creio que aconteça. Nesses dias difíceis, meu otimismo não é suficiente para tanto.

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CRÔNICA DE SEGUNDA-FEIRA: ENTRE COPACABANA E A PRAÇA DOS TRÊS PODERES

Na primeira segunda-feira de 2023, fiz o que muita gente faz: tentei pôr em prática coisas que estive planejando nos últimos dias do ano anterior.

Por isso, acordei relativamente cedo, fiz minha prática respiratória, pus uma roupa leve, calcei os tênis e fui caminhar na rua. Não ainda na distância ou no ritmo pretendido, mas apenas uma caminhada leve, de uns 20 minutos. Incluído na caminhada o recomendado banho de sol, que adquiriu um upgrade de importância nos tempos mais severos da pandemia do corona vírus.

E assim fui iniciar o ano cuidando da saúde! Ciente de que a atividade física pretendida não era lá grandes coisas, mas capaz de cumprir o mais importante: quebrar a inércia dos últimos meses, recheados de sedentarismo.

Missão dada, missão cumprida! Disse eu para mim, ao final do percurso, repetindo a frase que saiu das telas do cinema para a boca do povo, graças à popularidade do Capitão Nascimento. E que voltou a ter atenção no último mês de 2022, dita por uma autoridade da vida real.

O certo é que, como atividade física, a caminhada não foi mesmo grande coisa – como previsto – mas foi ótima como atividade intelectual. A favor disso, o fato de não ter sido feita dentro de um condomínio fechado, em Brasília, mas nas ruas do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, graças aos dias de recesso forense.

Foi bom andar em meio àquele mundo de gente, por aquelas calçadas irregulares, ouvindo buzinas de carros e motocicletas que disputavam espaço na rua. Ver gente com “roupa de trabalhar” saindo da estação do metrô ao lado de gente com “roupa de praia”. Gente andando de bicicleta, levando o cachorro para passear, juntando o cocô do cachorro da calçada, tomando café em boteco de esquina… gente.

Em meio ao movimento da rua, pensei no quanto Brasília é um lugar distante daquela realidade. As avenidas largas da capital federal, muitas vezes sem calçada, parece que foram mesmo feitas apenas para a circulação de carros. Entre eles, carros pretos, com o vidro das janelas escuro e fechado.

Agora, enquanto escrevo, lembro que um professor de história me disse, certa vez, que as grandes catedrais foram construídas com a intenção de ressaltar a pequenez do homem diante do poder de Deus.

Nunca procurei saber se o que aquele professor disse tinha fundamento científico, mas faz algum sentido. O suficiente para dar certo respaldo aos que dizem que a arquitetura de Brasília foi pensada para fazer o cidadão se sentir pequeno diante do poder do Estado.

As catedrais nos diminuindo no plano espiritual. Os grandes espaços de Brasília nos fazendo pequenos no plano político. A César o que é de César; a Deus o que é de Deus. Não necessariamente nessa ordem.

Mas, assim como a Igreja com tempo perdeu força, notadamente para o Estado, as amplitudes brasilienses parecem não ser mais suficientes para proteger os detentores do poder estatal da pressão popular. Bem o demonstram as grades de ferro que há aproximadamente dez anos enfeiam a Praça dos Três Poderes.

Não há erro de digitação aí. Escrevi “enfeiam” mesmo. Apesar da insistência do corretor ortográfico para substituir a palavra por “enfeitam”, o que me levaria ao perigoso caminho das ironias.

Independentemente do que aconteça nos espaços físicos, boa parte da atenção tem se deslocado atualmente para os espaços virtuais da internet, especialmente das redes sociais. Mas isso é assunto para outra crônica.

De volta à caminhada pelas ruas de Copacabana, acabei chegando à Avenida Atlântica. Do calçadão, olhando o mar, lembrei de uma canção do Lulu Santos:

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas, como o mar,
Num indo e vindo infinito.

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UM MOMENTO DE LUZ

Foi um momento de luz,
De muita iluminação,
O que aconteceu comigo
Numa certa ocasião,
Quando o dia terminava
E eu sozinho viajava
Pela estrada no sertão.

Estacionei na estrada
Para trocar um pneu
Que furou quando o meu carro
Em um buraco bateu,
Mas, logo que estacionei,
E as ferramentas peguei,
Algo estranho aconteceu.

Eu olhei à minha volta,
Para ver se via alguém.
Mas, naquele lugar ermo,
Não apareceu ninguém.
Só algumas avoantes
Sobrevoaram, rasantes,
E pousaram mais além.

Mas na hora em que olhei
Para onde o bando pousou
Algo na minha visão
De repente se alterou,
Pois vi cada passarinho
Tão de perto, tão pertinho,
Que isso até me assustou.

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EVANGELHO EM CEARÊS: O NASCIMENTO DE JESUS (Lucas 2:1-20)

Naquele tempo, o manda chuva dos romanos era um tal de César Augusto, e ele mandou fazer um apurado de todo filho de Deus que fizesse sombra nas terras do império.

Como José era aparentado com o Rei Davi, tinha que fazer a ficha em Belém, que era a terra da família dele. Por conta disso, José e Maria, que moravam em Nazaré, tiveram que juntar os mulambo e se mandar pra Belém.

Só que Maria já tava com o bucho pelas goela, por isso perigava do menino nascer no meio da viagem. E foi só o que deu: quando foram chegando em Belém, Maria já tava se vendo de dor.

Aí foi que deu o maior bode, porque a cidade tava lotada desse povo que foi fazer a ficha que o imperador tinha mandado. Porque naquele tempo era assim, quando o imperador mandava, não queria nem saber quem foi que envernizou barata. Era a língua ou o beiço. Ou o cabra cumpria a ordem ou a chibata comia.

José foi em tudo quanto era hotel, pousada e casa de família, pedindo um canto pra se ajeitar com Maria, mas foi o mesmo que dar um tiro n’água. O povo dizia que não tinha lugar nem pra um cibite fastioso.

Naquele aperreio, com Maria em tempo de parir no meio da rua, o jeito foi passarem a noite numa palhoça onde dormiam uns bichos de criação. Vaca, jumento, Carneiro, essas coisas.

E foi ali mesmo que o menino Jesus nasceu. Aí Maria pegou o bichim e deitou ele na gamela que botavam comida pros bichos.

Nisso, uns pastores que tavam numa capoeira ali perto levaram um susto lascado, porque apareceu lá um anjo dando o serviço do nascimento de Jesus:

– Ei, magote de macho mole, deixe de froxura! Vocês tão vendo é um anjo, não é uma moto com dois vagabundo em cima não! Vim aqui só passar o bizu pra vocês que em Belém, nasceu agorinha o cabra mais pedra noventa que esse mundo já viu ou vai ver. O menino é liso! É o Salvador! É o Cristo! Tá lá numa palhoça, deitadinho numa gamela de dar ração pros bicho, todo enroladinho nuns mulambo.

O anjo tava nessa conversa, quando outros anjos chegaram botando moral:

– Bora, macho! Termina esse leriado aí. Tu conversa muito!

E os anjos pegaram o beco. Depois, os pastores tomaram cada um uma garapa de açúcar, pra passar o nervoso, e meteram o pé no rumo de Belém.

Os pastores ficaram abismados quando viram o menino Jesus dormindo na gamela do boi. Mas acreditaram no que os anjos tinham dito e ficaram ali rezando.

Depois teve a visita dos reis magos. Uns cabra que vieram lá da baixa da égua com uns agrado pro menino Jesus. Mas aí já é outra parte da história.