CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

TOROCA

Walter Pitombo Laranjeiras, Toroca, figura de destaque no Estado de Alagoas, conhecido nas altas e baixas rodas, peça insubstituível no mundo dos esportes. Jogou bem voleibol, inclusive na seleção alagoana e brasileira. Entretanto, sua vocação foi ser técnico de voleibol feminino. Há mais de 50 anos treina as equipes do CRB. Inúmeras vezes campeão como treinador da seleção, muitas de suas pupilas chegaram a titular da seleção brasileira. Nesses últimos 50 anos, Alagoas esteve no topo do voleibol nacional graças ao treinador Toroca. Severo, considerado durão na condução do time em campo, porém, no voleibol não pode haver relaxamento, as atletas têm que estar sempre em momento de tensão.

Outra paixão de Toroca é o Clube de Regatas Brasil, o CRB. Ele foi presidente várias vezes. No final da década de 1960, eleito presidente do clube, convidou-me a participar de sua diretoria, não me fiz de rogado, tomei posse como Diretor Social. Juntos, fizemos um bonito trabalho, organizando festas e atividades sociais. Contudo, o grande sucesso de nossa gestão foi a boate do CRB aos sábados à noite. A moçada e a coroada dançavam esbaldando-se ao som do afinado conjunto LSD. Os componentes do conjunto afirmavam ser Luz, Som e Dimensão, para não confundir com o ácido lisérgico, droga altamente consumida naquela época. A afinadíssima Leureny Barbosa era vocal, Lino outro componente, na guitarra, um jovem tocava um som moderno e arrasava também cantando, de nome incomum, Djavan.

No intervalo, descanso dos músicos, havia alguma atração. Certa vez, Toroca contratou um mágico. O cara era bom, muito aplaudido com suas fantasias mágicas no escurinho da boate. Estranho apenas, que em vez de tirar coelho da cartola, o mágico tirava um pato branco, bonito e lustroso. Com muito aplauso o “Mandrake” terminou o espetáculo.

Ao iniciar o segundo tempo da boate, fui procurado pelo mágico, estava desesperado, havia sumido seu querido e lustroso pato branco. Fomos em busca, todos procurando, em cada canto da sede do CRB havia um funcionário vasculhando, até cheirando, nenhuma pista do pato. O mágico se aborreceu quando um funcionário, por ignorância ou gozação, perguntou: – O senhor não é mágico? Faça o pato aparecer!

Chegamos à conclusão de que o pato havia fugido, só assim poderia ter sumido. Iniciamos busca pela rua, pela praia; nenhum indício, ninguém viu algum pato passar, que dirá um pato branco.

O mágico, inconformado, aborrecido, tinha compromisso no dia seguinte pela manhã, espetáculo em Caruaru. Recebeu o cachê, despediu-se, agradecendo nossos préstimos. Irado, junto à sua gostosa ajudante, deu arranque no carro, pensando no trabalho de amestrar outro pato, chorava, não sei se de raiva ou saudade do querido pato branco.

A boate continuou animada, namorados dançando lentamente na escuridão da luz vermelha, na leveza da música afinada e sensual do LSD. Ninguém àquela altura imaginaria que estava dançando ao som de um dos músicos mais importantes da história da música brasileira, Djavan.

Ao terminar a boate, cerca de duas horas da manhã, um garçom procurou a mim e ao Toroca, tinha um recado de amigos que estavam à nossa espera no Restaurante Galo de Campina, anexo à sede do CRB, onde se comia o melhor galeto assado da cidade.

Eu e Toroca descemos e entramos no restaurante lotado e logo percebemos em uma animada mesa, felizes, risonhos, tomando cerveja, os amigos Hélio Miranda, Betuca, Clailton, Lelé, Frazão, Quico e Beto Prazeres. Hélio, gentil, reverente, ofereceu cadeira: “Senhores diretores, sentem-se, são nossos convidados”. Agradecemos tomando uma cerveja geladinha comentando o sucesso da boate e do espetáculo do mágico. Pena o pato ensinado, tão branquinho, ter fugido, alguém deve ter achado pela praia de Pajuçara.

Não demorou e para nossa surpresa apareceu o garçom “Pescoço” equilibrando uma vistosa travessa de metal. Acolchoado de farofa, laranjas, maçãs; deitado em decúbito ventral, majestosamente, um suculento, dourado e apetitoso pato assado.

Obs – Essa história contei a algum tempo em minha coluna. No último dia 31 de maio, meu querido Toroca, amigo e parceiro foi embora. Alagoas está de luto, nunca mais aparecerá um esportista igual ao grande Toroca. Se eu fosse prefeito mandava esculpir sua estátua e a colocava no calçadão da praia de Pajuçara, em frente onde foi um dia a sede do CRB.

CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

THEREZA COLLOR

Semana passada tive o prazer em conversar com Thereza Collor, celebrávamos o aniversário do amigo, Cacá Diegues, uma tarde agradável na deslumbrante praia de Ipioca. Eva Amaral, dona do sítio Carababa, sabe organizar uma festa. Deliciosas comidas e uma Banda de Pífano para alegrar os corações dos convidados. Fiquei impressionado como o tempo não conseguiu aplacar a beleza de Thereza, jovial, alegre, bela, e principalmente inteligente; de bem com a vida. Viva Thereza.

Conheci Thereza Collor menina, nessa época eu trabalhava na Construtora Sena e prestava serviços de construções da Usina Laginha de João Lyra em União dos Palmares. Certa vez, junto ao arquiteto, discutíamos sobre o projeto da casa da família perto da Usina com Dona Solange, mãe de Thereza, ela estava presente.

O tempo passou, e como passa depressa esse tal de tempo. Certo dia recebi o convite das famílias Collor e Lyra para o casamento de Pedro e Thereza. Um refinado casório num local paradisíaco, onde corriam bons uísques e alegres conversas.

Até que aconteceu o impeachment do Fernando. A Imprensa e o Brasil ficaram conhecendo e fascinados com beleza morena, bem brasileira, de Thereza. Aconteceu repentinamente sua vertiginosa e indelével celebridade. Muitos pensavam ela ser apenas uma dondoca socialite de brilho fugaz. Porém Thereza já era uma empresária, estilista, designer e tinha o genes da política, gostava de exercer a cidadania, reconhecida por ter sido uma voz feminina firme em favor de causas ambientais.

Certa época ela foi convidada a dirigir o belo e centenário Teatro Deodoro no Centro de Maceió. Aceitou e fez uma revolução, conseguiu verba para restauração, movimentou o Teatro com peças de sucesso e deu chances aos artistas alagoanos.

No final de 1994 houve a tragédia, a fatalidade da morte prematura de seu marido, Pedro Collor aos 42 anos. Alagoas se comoveu com a morte do filho do ex-governador Arnon de Mello, Pedro tinha muitos amigos em todo Estado.

Depois do trabalho à frente da Cultura, Thereza, já viúva, aceitou um convite em ser secretária do Turismo do Estado de Alagoas.

– Eu não pensava em retornar à administração do Estado. Mas os apelos foram muitos para que eu entrasse no mutirão para mudar a imagem de Alagoas perante o país, afirmou Thereza.

Ela exerceu com brilhantismo o trabalho de divulgação de Alagoas. Investiu no fomento da infraestrutura hoteleira, o turismo se profissionalizou no Estado. Alagoas entrou na prosperidade de sua vocação turística. O incrível é que, a Secretária tornou-se atração turística, faziam fila por uma foto com Thereza Collor.

Ao deixar a secretaria Thereza continuou empresária e sempre atenta às Alagoas. Em 2010, lançou o livro “Alagoas. Um Olhar”, 400 páginas, com centenas de fotos sobre o estado, sendo a maioria das fotos dela própria e a apresentação do livro de meu querido amigo Ignácio Loyola Brandão. Ela viajou por todo o estado conhecendo novos povos e seus costumes, pesquisando suas riquezas e mazelas, o que fez com que sua voz fosse muito representativa não só para Alagoas, mas para todo o Nordeste. O livro é dividido em categorias: belezas naturais, artesanato e arquitetura. Resultado de uma pesquisa de seis anos desenvolvido com sua formação em História. Livro belo e de pesquisa à cultura do Nordeste. Livro e mulher bonita fazem bem à alma, aos corações e às mentes.

Atualmente Thereza é casada com Gustavo Halbreich, empresário paulista do ramo da construção civil. Thereza Collor é constantemente relacionada à causa ambiental, aos direitos das mulheres e ao combate à corrupção. Defensora intransigente do Rio São Francisco, participa de debates em várias partes do Brasil.

Tenho maior carinho e admiração à essa mulher ativa, inteligente e culta. Ela ama Alagoas, e Alagoas ama sua maior embaixadora e propagadora. Empreendedora, dinâmica, continua trabalhando, contribuindo com o progresso e modernização das Alagoas.

Obs – Essa crônica fará parte do livro sobre figuras de Maceió, anônimas ou famosas, a ser lançado na Bienal.

CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

MEU AMIGO RÁS GONGUILA

Gonguila será enredo do Carnaval da Escola de Samba Beija Flor de Nilópolis no Carnaval de 2024

Uma cidade não é feita apenas de prédios, ruas, praças, calçadas, parques, praias e jardins. Toda cidade tem uma alma criada por suas figuras humanas, por seus costumes, por suas histórias.

Na charmosa, adorável e alegre Maceió conheci e convivi com figuras notáveis; às vezes anônimos, às vezes famosos, que contribuíram para os genes de minha cidade.

Um ser humano especial, inesquecível era um engraxate com banca na Rua do Comércio; meu amigo Rás Gonguila.

Negrão forte, alto, espadaúdo, tornou-se uma figura popular e importante em sua comunidade, a região lagunar, no bairro da Ponta Grossa. Ele se dizia príncipe africano, descendente de Reis e Rainhas da Etiópia, fazia questão de ser reverenciado pelo título nobiliárquico africano: Rás (príncipe etíope). Sua ancestralidade vem da Etiópia e da República dos Palmares, onde os escravos fujões formaram uma comunidade na Serra da Barriga. Sua família vinda do Quilombo de Santa Luzia do Norte se estabeleceu em Maceió no inicio do século XX quando Gonguila nasceu.

O Negão era bom, os clientes faziam fila, esperando sua vez, para sentar na cadeira na Rua do Comércio. Eram funcionários, poetas, amigos; ficavam na fila, conversando potocas. A cadeira de graxa do Negão tornou-se ponto de encontro.

Gonguila era um ser divertido, gostava do Carnaval e de folguedos natalinos. Criou e comandou o “Bloco Carnavalesco Cavaleiros dos Montes”. Todo ano o bloco começava a desfilar, a ensaiar pelas ruas da cidade antes do Natal com uma orquestra tocando frevos vibrantes. A moçada caía no passo. Naquela época um bloco de carnaval era nivelador da sociedade, pulavam e dançavam juntos: pedreiros, engenheiros, médicas, enfermeiras, desempregados, filhinhos de papai, putas, soldados. A elite e o povão.

O Negão era um líder na Ponta Grossa, respeitado, ouvido e querido. Naquele tempo não havia associação de moradores, eles se reunião em busca da sobrevivência, da melhoria de qualidade de vida e diversão de sua comunidade.

Theobaldo Barbosa, político sagaz, inteligente, coordenava a campanha de Arnon de Mello para governador em 1950. Falou para o chefe, que havia feito excelente contato com um cabo eleitoral, a maior liderança do bairro da Ponta Grossa e Vergel do Lago, um negro forte chamado Gonguila. Marcaram uma reunião numa noite de sexta-feira. O galpão lotou de gente, pescadores, marisqueiros da lagoa Mundaú, havia mais de 400 pessoas.

Arnon e Theobaldo desceram do carro ao lado do mal iluminado galpão, onde a turma estava esperando. Arnon admirou a estatura elegante do líder, Gonguila vestido de branco. No momento Arnon esqueceu o nome do Negrão e perguntou em voz baixa para Theobaldo, que cochichou no ouvido de Arnon: Gonguila!

O Negão aproximou-se e estendeu a mão a Arnon, dando “boa noite”. Arnon ofereceu sua mão respondendo: “Boa Noite, Seu GORILA”. Ao ouvir o nome GORILA, Gonguila ficou puto da vida, retrucou quase gritando: “ARNON, GORILA É O CARALHO! MEU NOME É GONGUILA, RÁS GONGUILA!” Apesar das caras amarradas, alguém soltou uma salvadora gargalhada, que quebrou o gelo. Arnon desculpou-se várias vezes, deu um abraço no Negão, conversou com os catadores de sururu, e catou os votos.

Em Maceió no domingo anterior ao carnaval a Prefeitura organizava O Banho de Mar à Fantasia na Avenida da Paz, com desfile de blocos, escolas de samba, troças. Depois do Cavaleiro dos Montes desfilar perante a Comissão Julgadora, Gonguila rumava para minha casa, onde estava esperando bebida e comida para os músicos. A orquestra tocava 3 ou 4 frevos, a juventude dançava e cantava no amplo terraço de minha casa.

Gonguila arrumava uns trocados como porteiro de festas nos clubes, na Assembleia, em casas de ricos. Tinha um uniforme especial com botões dourados para essas ocasiões.

Assim era o Negão: não tinha papa na língua, nem se intimidava com figurões. Apesar de analfabeto, preto, pobre, impunha respeito por sua liderança e amor à cidade. Os nomes dos figurões daquela época estão nas placas de ruas, colégios, praças. O nome de Rás Gonguila ficou apenas na lembrança e nos corações dos seus amigos.

• OBS – A crônica acima sobre meu amigo Gonguila escrevi em 2006, publicada no livro Viventes de Maceió. Hoje tive a alegria em saber que Goguila será o enredo da Escola de Samba Beija Flor de Nilópolis em 2024.

CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

YELLOW BUTTERFLY

Durante a 2ª Guerra Mundial o Nordeste Brasileiro tornou-se uma região estratégica. Os alemães tinham um plano secreto de invasão aos USA tendo o Nordeste como corredor de assalto. Em 1942/1943 seis navios brasileiros foram torpedeados por submarinos alemães nos mares nordestinos. Os moradores, pescadores do litoral acudiram e conseguiram salvar feridos.

Nessa época os americanos instalaram um Grupo de Dirigíveis, chamado “Blimps” e pequenos aviões de caça em Maceió, com pista aérea no Tabuleiro dos Martins. Esses “Blimps” realizavam observação aérea no Atlântico Sul em busca de submarinos alemães e imediatamente passavam informações para os aviões bombardeá-los. Durante o período de dois anos cerca de 250 americanos moravam em Maceió. Geralmente frequentavam as casas de mulheres no bairro histórico Jaraguá. Os oficiais alugaram o salão térreo do Clube Fênix Alagoana, o clube da aristocracia. Nas festas contratavam a Jazz Band formada por militares do 20º BC, conjuntos musicais e show do folclore alagoano. O salão térreo tornou-se um clube privado dos americanos que penduraram uma placa com o nome de USO (United State Organization). Nos dias de festa dançante somente as moças, as mulheres, eram convidadas. Houve uma reação dos jovens nativos contra os americanos. Numa cidade conservadora, como Maceió, os pais proibiram as filhas frequentarem as festas. Os jovens logo apelidaram as moças mais independentes que frequentavam o Clube USO, de “usadas”. As festas eram pela tarde nos fins de semana, à noite os americanos transformava o clube em salão de jogos, tomavam porres homéricos e a jogatina virava a noite.

Certo dia, perto do natal, Mister Sharpless, um americano gordo que se dizia vice-cônsul dos USA, morava em uma pequena casa na praia de Pajuçara, solteiro, homossexual, tinha um negócio de venda de peças artesanais de casco de tartaruga. Bajulador das tropas americanas convidou um pastoril de um colégio para dançar no USO num sábado à tarde, prometendo às bonitas jovens quinquilharias modernas, principalmente meias de nylon. A apresentação do pastoril, eram mais de 20 jovens bonitas, entre 17 a 20 anos, dançando com suas saias rodadas, divididas nos cordões azuis e encarnados. No final entrou a jovem Babu fantasiada de borboleta amarela, com duas singelas asas cantando: – “Eu sou uma borboleta, pequenina e faceira…”. Foi um sucesso, não só pela música, como também pela beleza de Babu; morena queimada do sol constante da praia da Avenida da Paz, onde morava.

O tenente aviador da Marinha Americana, Pinkenton, 25 anos, alto, forte bonito, bigode a Clark Gable ficou encantado com Babu chamando-a de Yellow Butterfly. Houve uma recíproca atração quando o Tenente Pinkenton segurou-a pela mão arrastando-a à uma mesa vazia. Os dois se entenderam, Babu estudava inglês e o tenente, morava há mais de um mês em Maceió pilotando blimps e aviões de caça. Os jovens conversaram, se entenderam, até o termino da festa; quando um ônibus deixou as jovens em suas casas, felizes por terem cantado e dançado o pastoril e terem ganhado tantos presentes.

Pinketon procurou o “vice-cônsul” Mr. Sharpless em sua casa na deserta praia de Pajuçara. Foi direto ao assunto queria saber quem era a jovem que dançou fantasiada de Borboleta, queria saber tudo sobre ela. O tenente estava fascinado pela Yellow Buterfly, o olhar profundo da jovem sorridente lhe tocou o coração e na mente. Do outro lado, Babu, não tirava de seu pensamento a imagem do tenente gentil, bonito e encantador. Houve um problema, os pais não consentiram o namoro. Os jovens enamorados quando podiam escapavam num jipe da USO para s bandas da praia do Gogó da Ema, por mais de seis meses conseguiram escapar das vistas dos pais e dos moradores da cidade, naquela época Maceió era uma pequena cidade provinciana. Até que um dia Babu engravidou; os pais exigiram o casamento e o Tenente Pinkenton prometeu casar. Foi quando terminou a Guerra. O Tenente teve que embarcar para os USA, retornaria uma semana antes do casamento. Deixou um monte de dólares para compra dos móveis, a noiva escolhesse a casa para alugar. Babu feliz da vida só falava no casamento e no filho que ia nascer. O tempo foi passando, o tenente não mandava notícias, passou o dia do casamento, ela ainda na expectativa, até que o belo menino nasceu. Foi assim que bela Babu tornou-se mãe solteira. Tempos depois Babu casou-se com um comerciante apaixonado, teve mais 2 filhos, mas nunca esqueceu o primeiro amor, Tenente Pinkenton, o desaparecido.

CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

AGUACEIRO EM PALMARES

Quando João Cabral acertou o pagamento da pousada no Recife, Seu Manoel, o proprietário, pediu-lhe um favor: dar uma carona à Daniela, sua filha, até Maceió. Gentil, João disse ser um prazer. Partiram após o almoço. A jovem acomodou-se no banco da frente do Honda, não cumprimentou João, sequer um boa tarde, tinha “walk-man” grudado ao ouvido, parecia estar em outro mundo. Partiram rumo as Alagoas. A jovem calada, como se estivesse fazendo um favor ter sua companhia durante a viagem.

Cabral sentiu desconforto com o comportamento mal-agradecido da adolescente. Daniela, bem crescida, dizia ter 20 anos, entretanto, não completara 17. Corpo de mulher, cintura fina, quadris largos, a pele rosada destacava sob a blusa transparente de malha branca. Bermuda jeans apertada, esfarrapada, pernas bem torneadas. “Uma bela potranca” pensou Cabral enquanto analisava discretamente a companheira acidental.

A viagem transcorreu monótona, sem conversa, Daniela ouvindo rock. Em certo momento ela retirou o fone do ouvido, sem pedir licença, ligou o rádio do carro, procurou um rock pauleira, ficou a ouvir enquanto o carro rodava na estrada. Cabral tentou conversar, mas desistiu diante do mutismo irritante de Daniela.

Após quase duas horas de viagem caiu uma chuva persistente, há uma semana chovia na região. Ele parou num posto de combustível e abasteceu o carro. Foram à lanchonete, pela primeira vez, Daniela falou.

– Minha conta eu pago. Faço questão de não lhe dar despesas.

João Cabral já havia pagado, respondeu brincando:

– Na próxima você paga.

Retornaram à estrada sob intensa chuva, o limpador de para-brisa oscilava veloz limpando o aguaceiro que caia. De repente deparou-se com um engarrafamento, trânsito lento, carros parados. Acontecera um problema na estrada, o aterro da cabeça de uma ponte desmoronou devido à enxurrada da chuva. O D.E.R. tentava liberar a estrada a qualquer momento, entretanto ninguém podia passar, era perigoso enfrentar a estrada àquela hora, escurecia. O policial aconselhou a dormir em Palmares e continuar viagem no dia seguinte.

Cabral perguntou a opinião de Daniela. Simplesmente ela fez um gesto com os ombros e os lábios, como se dissesse tanto faz, ele precavido retornou ao posto. Recomendaram um hotel na cidade.

Na portaria Cabral pediu dois quartos. A chuva continuava mais forte ainda, marcou com Daniela para jantar no próprio hotel às 19: 00h.

Ele desceu na hora combinada, Daniela já havia jantado, subia as escadas para seu quarto, sequer deu um boa-noite. Cabral não entendia a grossura da jovem, jantou, recolheu-se cedo, leu um pouco, custou a dormir.

Durante a noite ouvia-se o forte retumbar dos trovões. Em certo momento João acordou-se com várias batidas na porta do quarto e a voz aflita de Daniela pedindo desesperada: -“Por favor, abra logo.” Cabral deixou a cama num salto, abriu a porta, Daniela entrou enrolada num lençol, deitou-se na cama, confessou com voz trêmula que morria de medo de raio e trovão. Cabral surpreso, fascinado pelo encanto da mulher-menina, sentou-se à cabeceira, buscou confortá-la, alisou a cabeça, mandou-a dormir à vontade, ele iria para o sofá. Surpreendeu-se quando ela puxou-o pelo braço pedindo: -“Vem para junto de mim cara!”

Abriu o lençol, estava apenas de calcinha preta, abraçou-o tomando os lábios. Irresistível, não houve outro jeito, se amaram feitos dois animais.

A noite continuou chuvosa, continuaram mudos nos intervalos de amor. Não conversaram, havia apenas gemidos na hora do prazer. A louca ninfeta sabia tudo do amor, perfeita na hora certa, nada foi aprendido, sábia de nascença, uma Deusa.

No dia seguinte Cabral acordou-se espreguiçando, olhou ao lado, de Daniela apenas o suave perfume de alfazema na cama vazia. O tempo havia melhorado. João Cabral tomou um banho, fez a barba, arrumou a mala e desceu. Durante o café da manhã percebeu Daniela pronta sentada numa poltrona com a mala, esperando a partida.

Entraram no carro e Daniela sentou-se na mesma posição, calada como se nada tivesse acontecido, como se Cabral fosse um estranho. Arrogante, cheia de soberba não sorriu sequer ao companheiro do amor noturno. Nariz empinado, fone no ouvido, não lhe dirigiu a palavra durante o resto da viagem, sequer deu um “obrigado” quando ele a deixou na casa de um tio no bairro do Farol.

CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

A FESTA DE PAFINHA

Ninguém sabia seu nome, que dirá sobrenome. Os amigos a conheciam como Pafinha, apelido carinhoso. Moça bonita, pele aveludada, cabelos escuros escorridos, os olhos vivos harmonizavam com a boca carnuda. Pafinha tinha a beleza da juventude e a graça de quem é feliz.

Estatura mediana, curvas visíveis, cintura fina e seios abundantes faziam dessa jovem uma mulher charmosa e atraente. Deusa calipígia morena, seu balaio bem torneado era desejo e fantasia de muitos homens.

Todos cobiçavam aquela jovem com ar de moleca sapeca. Vivia a vida como se o mundo fosse acabar amanhã. Pafinha trabalhava na Boate Tabariz, era a rapariga predileta do famoso dono da noite de Maceió, o popular Mossoró. Nativa de Pariconha, sertão das Alagoas, sua família passava fome com a seca. Aos 16 anos, só havia conhecido miséria e pobreza. O dono das terras onde ela morava a deflorou. Como ele era casado, prometeu aos pais da jovem, uma amigação com casa montada na capital. Depois de muito discutir, os pais liberaram a filha para morar com o canalha em Maceió. Ele viajou com Pafinha num fim de semana, ao chegar deixou-a nos cabarés de Jaraguá, entrego-a aos cuidados do Mossoró, o dono de casa de mulheres mais famoso da cidade.

Tornar-se prostituta foi uma grande transformação. Cursou a Universidade da Vida. Pafinha era a mais querida do bordel, conhecia e tratava os frequentadores pelo nome. Podia ser senador, deputado, coronel ou capitão. Era o xodó de Jaraguá. Certo dia apaixonou-se por um jovem deputado, rapaz novo, iniciando a carreira política. Quando o deputado aparecia, ela corria para os braços de seu amor, largava quem tivesse ao lado.

Naquela época, em Maceió, havia um bingo nas tardes de domingo, numa área descampada do bairro do Trapiche da Barra, era a fonte de recurso para construção de um grande estádio de futebol (o atual Rei Pelé). Os prêmios convidativos: carros, camionetes e caminhões. Mossoró não perdia um bingo e levava suas meninas, comprava uma cartela para cada uma. Certo domingo, Pafinha teve sorte. Faltava apenas a pedra 27, uma torcida eletrizante entre as jovens alegres. De repente chamaram 27, foi uma explosão de alegria e abraços. Pafinha ganhou um carro IMPALA. Um conhecido senhor negociava prêmios de bingos, comprou o carro na hora. Foi dinheiro que Pafinha jamais pensou possuir.

Na mesma noite ela iniciou uma festa no bairro boêmio de Jaraguá. Todos queriam abraçá-la ou pedir dinheiro emprestado. A festa durou oito dias e oito noites. Pafinha não tinha noção de economia, seu coração solidário e generoso emprestou e deu muito dinheiro. Teve festa até na Zona do Baixo Meretrício, ela aparecia radiante pagando tudo para as companheiras de copo e de cruz na Boate Verde, no Duque de Caxias, no Sovaco do Urubu, frequentadas por estivadores, pescadores, catraieiros, os pobres amigos. Ela pagava tudo.

– O filme dinamarquês a “Festa de Babette”, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro, conta a história de uma famosa cozinheira dos reis na Europa, depois da queda de várias monarquias, ela retornou à sua aldeia na Dinamarca. Triste por não ser mais cozinheiras de reis e rainhas, certo dia ganhou um dinheirão na loteria. Pensou o que lhe daria satisfação à sua alma. Resolveu realizar uma festa, um jantar, convidou reis, rainhas e príncipes que viviam exilados. Mandou buscar as melhores iguarias em diversos locais, preparou o mais requintado e delicioso jantar jamais acontecido na história do mundo. A Festa de Babette deu-lhe satisfação e felicidade, até que a festa acabou-se, os reis retornaram e ela voltou a ser pobre, não sobrou um tostão.

Bem assim foi a Festa de Pafinha, Uma semana de alegria e diversão. Só acabou quando ela percebeu que não havia mais um centavo do dinheiro do bingo. Ficou pobre novamente. Depois das farras homéricas, de repente, Pafinha estava despojada.

– Na praia da Avenida da Paz, no trecho mais perto do cais havia uma birosca frequentada por embarcadiços, pescadores, desocupados, desempregados e putas. As raparigas de Jaraguá ao se acordarem por volta do meio-dia vestiam o maiô e devam um mergulho na praia, se refrescando da noitada anterior.

Pafinha sempre presente ajudava a comer o delicioso tira-gosto de panã ou arabaiana, contava casos da noite no cabaré. Gosta de ouvir as aventuras de Seu Rodolfo, velho pescador, o melhor contador de historias de peixes, da mãe d’água, sereias, afogamentos, de botos salvando vidas empurrando os afogados até a praia.

Pafinha aprendeu a nadar, boiava e mergulhava se purificando ao mar até o pôr-do-sol alaranjar o céu. Depois das seis da tarde era hora de trabalho no Cabaré. A sertaneja dizia que seu destino estava naquele mar azul com matizes esverdeados.

A história da Pafinha ainda hoje é contada nas biroscas e bares de Jaraguá. Tornou-se lenda, dizem alguns que ela numa tarde desapareceu boiando no mar, deixou-se levar pela correnteza. Iemanjá veio buscá-la e a transformou em um boto que vagueia vigilante na enseada da praia da Avenida da Paz, salvando os afogados.

Há muito tempo não acontece afogamento no mar de Jaraguá e Avenida. Um boto nas águas perto do cais mergulha vigilante, empurra até a praia, salvando os banhistas desavisados ou crianças mais afoitas. Depois retorna junto ao cardume, brincando alegre com seus pareias.

À noite, nos bares do mercado e na zona da boemia, marinheiros, pescadores, contam histórias de salvamentos milagrosos. Atribuem esses milagres ao boto presepeiro, alegre e bonito. Para o povo do cais do porto, Pafinha é uma espécie de santa protetora dos boêmios, das raparigas, dos bêbados e afogados de Jaraguá.

CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

A CONFRARIA DO DOUTOR MILTON HÊNIO

Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo do Brasil no século XX, pernambucano de boa cepa, foi também um genial frasista, dentre elas, uma inesquecível: “A Unanimidade é Burra”. Ainda bem que existe a exceção para contrariar a regra. Aqui nas Alagoas temos um Doutor pediatra, um jovem oitentão, que atendeu a cinco ou seis gerações de crianças, Dr. Milton Hênio Gouveia, o homem mais amado da cidade, nossa unanimidade. Ricardo Nogueira, colega da Academia Alagoana de Letras, já o canonizou, promovendo a Santo Milton Hênio, ou seja, a única alma sagrada em vida aqui na Terra.

Há algum tempo, nosso querido Miltinho, promove em uma manhã de sábado, um encontro, um Café da Manhã no Hotel Jatiúca. A Confraria do Dr. Milton reúne-se com muita alegria e camaradagem. Os membros são oitentões, figuras carimbadas da cidade, médicos, advogados, professoras, intelectuais, aposentados, desocupados, que aproveitam para desfrutar a manhã onde reina a camaradagem. Depois do saboroso Café alguns confrades tomam a palavra cerca de quatro a cinco minutos para lembrar alguma história, recitar um poema, ou mesmo colocar em debate algum assunto pertinente.

No sábado passado, Alberto Rostand, presidente da Academia, apresentou a esmerada programação da celebração dos 130 anos do poeta alagoano Jorge de Lima. Outros falaram. Em minha vez, lamentei o reduzido número de áreas verdes, parques e jardins na cidade. Informei que a Organização Mundial da Saúde estabeleceu que toda cidade deve ter no mínimo, 12 m² de área verde por habitante. Curitiba tem 55 m² p/ hab., João Pessoa 60 m² p/ hab., Recife tem 18 m² de área verde por hab. E Maceió não chega a 6 (seis) m² de área verde p/ habitante. Um dos fatores que mais contribuíram para esse cruel número foram doações de praças de uso comum, às entidades privadas. Citei uma relação de áreas do povo doadas, um crime urbano e ambiental. Terminei lamentando a ideia de cortar o Corredor Vera Arruda com quatro ruas, acabando com nosso único parque da cidade. Em seguida o historiador Douglas Apratto pegando o gancho no problema, me apoiou e foi mais adiante repelindo a ideia de trocar nomes de ruas, acabando com a memória da cidade. Recentemente um vereador apresentou um projeto mudando o nome do bairro de Cruz das Almas para “Oceano”, música mais conhecida do compositor alagoano, Djavan, que abriu mão dessa honraria declarando que amava o bairro de Cruz das Almas. Logo depois das sempre brilhantes palavras do professor Douglas, Dr. Álvaro Machado, médico, poeta, membro do Instituto Histórico, contou com seu bom humor essa história de sua terra.

– O irrequieto vereador Pedro Lúcio Rocha de Pão de Açúcar estava em seu terceiro mandato, nos anos 1970, e, apesar de ter apenas o curso primário não se intimidava em falar em públicos suas ideias. Pedro Lúcio integrava a bancada do governo, sendo fiel aliado ao então prefeito Augusto Machado, um hábil político que governava o município pela quarta vez, numa época em que não havia reeleição. Pedro Lúcio teve seu nome citado em vários jornais importantes do país, devido ao fato de ter apresentado um projeto sugerindo a “quem de direito” que fosse realizada uma pequena mudança numa frase do “Hino à Bandeira do Brasil”. Pedro sugeriu que, em vez da frase “Salve, símbolo augusto da paz”, integrante do hino, fosse colocada a frase: “Salve símbolo Augusto Machado”, alegando que esse tal Augusto da Paz não passava de um desconhecido, um homem do qual ninguém ouviu falar nada de importante, ao passo que Augusto Machado tinha sido quatro vezes prefeito de Pão de Açúcar, deputado duas vezes, sendo pessoa bastante querida de muitos brasileiros. Pedro continuou o argumento: Falei com parentes de todo Brasil ninguém sabe quem é Augusto da Paz. Mas todo mundo conhece Augusto Machado que merece essa homenagem dentro do Hino à Bandeira. – O projeto não foi adiante, mas deu muito que falar. Álvaro Machado encerrou a narrativa às gargalhadas.

Assim são as reuniões da Confraria do Dr. Milton Hênio. Um bom café, manhã maravilhosa, carinho de amigos, conversas inteligentes e bem humoradas. Que dure por muitos anos.

CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

1º DE ABRIL DE 1964

Comício do presidente João Goulart em frente ao Ministério da Guerra, dia 13 de março de 1964

Acordei-me com o som cadenciado do toque de alvorada pelo corneteiro do quartel. Eu era tenente do Exército Brasileiro servia na 2ª Companhia de Guardas, tropa de elite do IV Exército sediada no centro da cidade. Soldados altamente treinados contra distúrbios e guerrilha urbana. Uma luminosa manhã acordava a bela histórica cidade do Recife. A Companhia estava de prontidão há mais de uma semana devido aos acontecimentos políticos da época. Um processo de desgaste do Governo Federal se espalhou sobre a Nação. O presidente João Goulart era ambíguo, acendia uma vela a Deus outra ao Diabo (como diria Julião em uma entrevista, tempos depois). O que sustentava Jango era um suposto esquema militar. O General Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército (Nordeste), jurou de que defenderia a legalidade ao lado do Presidente. Quando a conjuntura mudou, ele também mudou. A situação política ficou mais nebulosa depois do grande comício das reformas em frente ao Ministério do Exército, dia 13 de março, com discursos provocativos às Forças Armadas. Jango, foi inábil, estava cutucando a onça com vara curta.

Naquela bela manhã, logo depois da formatura matinal da tropa, o capitão Luís Henrique Maia reuniu os cinco tenentes comandantes de pelotão e informou as notícias já confirmadas. A tropa do general Mourão Filho de Minas Gerais havia se rebelado e estava em marcha ao Rio de Janeiro para unir-se ao I Exército, e depor o presidente João Goulart. O objetivo da rebelião militar era restabelecer a ordem no país e garantir a eleição para presidente em 1965. O capitão mandou preparar o pelotão para um possível enfrentamento, entrar em combate urbano a qualquer momento, tendo necessidade.

Eu era um jovem que amava os Beatles, os Rolling Stones, a Bossa Nova, a Boemia, pensava em mil coisas, retornei ao alojamento do pelotão. Fiquei especulando o que haveria de ser. As notícias do rádio, televisão, de boca a boca e os boatos previam até guerra civil. O presidente João Goulart estava para dar o golpe, não haveria eleição em 1965 e seria implantado um Estado Socialista-Sindicalista, eram os comentários mais fortes.

Eu encontrava-me ainda em devaneios, quando o comandante me chamou, fui ao seu encontro no gabinete. Ele olhou nos meus olhos e deu-me as primeiras ordens:

– Tenente a Revolução foi deflagrada em todo Brasil, chegou a nossa hora. Escolhi seu pelotão para primeira missão, talvez um batismo de fogo. Está havendo uma manifestação em frente ao Sindicado dos Bancários. A missão do Pelotão é dissolver esses militantes, confio no seu bom senso, por isso o escolhi.

Coloquei o pelotão em forma, passei em revista os soldados, o armamento e equipamento, fiz uma preleção sobre a missão, deixei bem esclarecido, tiro só com minha ordem. O Sindicato não era longe, o Pelotão tomou a Rua do Príncipe em marcha. A batida uníssona do coturno no calçamento fazia um barulho assustador. Enquanto aqueles 44 soldados bem armados e equipados avançavam, eu percebia a movimentação nas ruas: mães colocando meninos para dentro das casas, pedestres entravam em seus lares. De cima dos prédios ouvi alguns aplausos, como também algumas vaias, era o povo dividido. O Pelotão avançava, eu continha a emoção, lembrava as informações, os boatos, os rumores que os sindicalistas, os camponeses, os homens que o governador Arraes apoiava, tinham sido treinados em guerrilha em Cuba e possuíam armamentos tchecos modernos.

De repente, mais emoção, avistei ao longe a multidão, em torno de 400 manifestantes. Tive de controlar um velho sargento, auxiliar, que suplicava dar um tiro para o alto, a fim de dispersar a multidão. Mandei o sargento se aquietar, lembrando que comando era exclusivo meu. Evitar uma reação por parte dos manifestantes e provocar numa carnificina de balas dos dois lados. O pelotão se aproximava cada vez mais, já dava para ver as fisionomias dos manifestantes, me preparava para dialogar, se possível. Enquanto o sargento, junto a mim, insistia em atirar, eu esbravejei em sua cara: Não!

Naquele instante dei voz de comando ao Pelotão: – “Acelerado marche!” Os soldados iniciaram a avançar em acelerado (correndo curto). De repente tive o maior alívio e alegria de minha vida ao perceber a multidão se dispersando em todas as direções.

Invadimos o sindicato a “manus militaris”. Ficaram apenas três sindicalistas. Pedi para que eles deixassem o prédio ou teria que levá-los presos, era a ordem. Apenas um sindicalista, barbudo, corajoso, magro, me encarou: -“Só saio morto ou preso”. Dei a ordem “Então têje preso, não vou lhe matar”. Mandei lacrar todos os móveis, deixei cinco soldados guarnecendo o sindicato. Retornei com o resto do pelotão para Avenida Visconde de Suassuna, sede da Cia de Guardas.

Durante o percurso, o pelotão marchava em duas colunas, e o barbudo, preso, caminhando no meio da tropa.

Encostei-me e cochichei no seu ouvido uma mentira assustadora: -“Estão matando tudo que é comunista, quando você chegar ao quartel vai ser fuzilado. Vou lhe dar uma chance, na próxima esquina lhe empurro e você se manda, corra”. Ao chegar mais perto da esquina, o barbudo olhou para trás, encarou-me com olhar suplicante. Aproximei-me, segurei-o pela camisa, puxei-o pelo braço e o empurrei. Ele disparou, escafedeu-se na primeira rua. No quartel fiz um relatório verbal ao Comandante. Ainda no 1º do abril, meu pelotão teve outras missões: Ocupou a sede dos Correios, patrulhou a cidade do Recife. À noite, cansado, dormi pensando no dever cumprido, em ter contribuído para garantir da ordem e a paz, a democracia e as eleições presidenciais de 1965. Ninguém, nenhum cientista político, nenhum profeta, nenhum futurólogo, acreditaria que aquele dia era o primeiro de uma ditadura de 21 anos.

CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

A TRAIÇOEIRA DO BOM PARTO

A modernidade acabou com as cartas pessoais via Correio. Fiquei surpreso ontem ao receber uma carta. Não constava o remetente. Tomei minha poltrona confortável, abri o envelope e li surpreso uma história de amor contada por uma mulher e pedindo para divulgá-la, transcrevo-a abaixo.

* * *

Maceió 13 de março de 2023

Meu querido escritor Carlito.

Sou sua fã número um, todos os sábados impreterivelmente leio e me delicio com as suas histórias bem humoradas. Quisera passar uma tarde com o Mestre, deve ser divertida a conversa. Mas, o motivo dessa carta é contar a minha história para você transformá-la num conto, tem toda permissão. Só não revelarei os nomes dos protagonistas. Invente.

Eu nasci e me criei no bairro do Bom Parto, mas precisamente na Grota do Padre, onde há muitos anos morava um padre. Conta a lenda que o padre era apaixonado por uma mulher casada, e nas “caladas” da noite se encontravam. Toda população sabia, menos o marido. Até que ele descobriu e cortou a cabeça do padre. A partir daí o padre aparece vez em quando à noite debaixo de uma arvore. Muitos moradores já viram o padre de batina e sem cabeça. Mas deixemos a lenda, a minha história é mais interessante. Meu avô ficou com uma casa quando a Fábrica de Tecidos Alexandria faliu em 1966. Minha mãe herdou, e quando se casou, ficaram morando na casa, onde eu nasci no primeiro dia do Século XXI, ou seja, 1º de janeiro de 2000. Fui criada livre perambulando pelos bairros vizinhos, nadando e pescando na lagoa Mundaú. Na adolescência me senti uma moça cheia de hormônios, namorava e ficava com quem aparecia. Minha mãe que se casou nova separou-se de meu pai. Ele saiu de casa ao levar um bruto chifre do vizinho. Mamãe, solteira novamente, caiu na gandaia, nunca vi uma mulher gostar tanto de farra e de homem, foi o exemplo que tive durante minha criação. Ela levava os namorados para casa, chegava embriagada altas horas. Vive de uma pensão que meu pai deposita todo mês. Mas, verdade se diga, ela incentivou meus estudos em escolas públicas, foi exigente.

Um pouco antes da pandemia, mas precisamente no início de 2020, comemorei meu aniversário com amigos em minha casa. Meu pai bancou a festinha no primeiro dia do ano. Nessa época eu namorava o Rodrigo, um cara alto, forte, bonito. Eu gostava daquele homem belo que era ótimo de cama. Quando ele entrou em minha casa, notei que minha mãe teve uma empatia com meu namorado. Passou a noite tentando saber detalhes da vida dele. Foi notório entre minhas amigas, algumas advertiram, cuidado com sua mãe. Eu não liguei para as desconfianças de minhas amigas. A festa terminou com o dia amanhecendo, minha mãe bêbada só queria ficar junto a Rodrigo, até que ela adormeceu, colocamos mamãe na cama.

O tempo passou veio a braba pandemia, todos os cuidados possíveis, máscaras, remédios, eu tomava tudo que aparecia, tinha pavor à doença logo que uma amiga morreu. Nessa época horrível continuei com Rodrigo que almoçava todos os domingos em minha casa, às vezes dormíamos juntos. Minha mãe sempre prestativa. Era, genrinho para cá, genrinho para lá.

Para encurtar a história no final do ano de 2020, numa segunda-feira, minha mãe chegou em casa ao meio-dia, estava taciturna. Depois do almoço ela pediu para ter uma conversa comigo no quarto, sentamos na cama, tivemos esse o diálogo.

– Minha filha. Quero você seja a primeira a saber. Estou grávida. Você vai ganhar um irmão ou irmã.

– Minha mãe que loucura, você me deixou feliz pelo irmão, mas preocupada, você tem 38 anos. Me diga: sabe quem é o pai com certeza?

– Sei

– Quem é esse meu “padrasto” minha mãe?

– O Rodrigo.

Eu me levantei, não sei se de raiva da traição, deu-me uma dor no peito, saí correndo abri a porta e caminhei automaticamente para um botequim à beira da lagoa. Pedi uma cachaça e chorando tomei várias doses enquanto pensava naquela traição. Já era noite quando eu embriagada andei até o centro da cidade, onde dormi num hotel fuleiro. Dia seguinte peguei meus panos e fui morar com uma amiga. Nunca aceitarei aquela traição, meu namorado virou meu padrasto, o menino nasceu. Hoje eles vivem juntos na casa da Grota do Padre. Sei que meu irmão não tem culpa, é lindo, já o vi várias vezes. Mas não consigo sequer me aproximar. Consegui me formar em enfermagem, sou excelente cuidadora de idosos. Solteira, vou levando minha vida, gosto da boemia, fim de semana nos barezinhos sem dar satisfação. Mas, levo ódio no coração, não consigo perdoar minha mãe. Não é interessante minha história? Digna de um de seus contos. Quem sabe se, algum dia, nos encontraremos num bar dessa linda cidade?
Um abraço e um beijo de sua fã número um. X.

CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

SONHO DE CONSUMO

Comemorando seu aniversário de 20 anos na Barraca Pedra Virada, Antônia conheceu Tonhão. Deu-lhe um frio na barriga, uma química inesperada nos hormônios, uma vontade louca de abraçar-lhe, beijar-lhe. Foi o melhor presente aparecer aquele homem bonito, moreno, alto, forte que se tornou a grande paixão. A recíproca foi verdadeira, Tonhão empolgou-se no primeiro instante com a linda e sorridente morena. Numa coincidência dos Deuses, ele também fazia aniversário, 24 anos, no dia dos namorados, 12 de junho, véspera de Santo Antônio. Nenhum amigo percebeu aquela atração repentina. Os dois ficaram conversando e bebendo até o término da festa. Na mesma noite foram a um motel iniciando o maior amor do mundo. Os dois passaram a se ver todos os dias, viviam grudados que tem tapioca, bela pareia de jovens, comentavam. Não deu um ano de namoro resolveram casar-se. Tiveram dois filhos, Tonhão formou-se advogado, trabalhando muito em tradicional escritório, tornou-se conhecido. Nesses anos todos, no dia dos namorados, os dois cumpriam a liturgia de uma festa íntima pra lá de erótica. Durante mais de 20 anos celebraram essa noite tórrida de amor num motel.

Certo dia, Tonhão foi defender um preso em um complicado júri em Palmeira dos Índios. Seu cliente havia assassinado a esposa e o amante, crime hediondo, com requinte de crueldade. O assassino antes de matar o sedutor, cortou seus colhões com uma facada. Joana, a irmã do preso, em nome da família, contratou Tonhão por uma boa quantia. A moça além de desenvolta, bem articulada, simpática, era um belo espécime feminino. Morena de olhos escuros, olhar profundo, sensual. Tonhão ficou cativo do olhar faceiro de Joana. O assassino pegou 17 anos de cadeia. O advogado perdeu no júri, entretanto, ganhou o coração e todos os outros órgãos de Joana, a bela. Embora mais velho, se deram bem na cama, na mesa, nas conversas, coincidiram as afinidades, os valores de vida, semelhantes sonhos de consumo. Ela ama joias, viagens, conforto e carinho. Ele também ama as coisas caras do mundo moderno, um carrão bonito, roupas de grifes, relógios e sapatos. Não puderam esconder por muito tempo essa comunhão carnal. Tanto fizeram que houve a separação. Muito choro e depressão, foi difícil para Antônia aceitar o divórcio.

Algum tempo depois de separados, no dia dos namorados, véspera de Santo Antônio, dia das comemorações alucinantes, Tonhão marcou um encontro com a ex-esposa, precisava discutir alguns detalhes sobre os filhos. Ele levou-a a um discreto restaurante na praia de Ipioca. Conversaram bastante sobre os filhos. O amor paterno de Tonhão sempre encantou Antônia. Retornando ao centro da cidade, ao passar no corredor de motéis, Tonhão puxou o carro de lado, entraram num belo motel. Fizeram amor a tarde toda como nos velhos tempos. Antônia aceitou a situação por dois motivos: vingança contra a sirigaita e ainda gostava de ser amada por Tonhão. Mantiveram a tradição, por mais de cinco anos, todos os dias dos namorados eles se encontravam.

Antônia, solteira, não ficou sozinha, de vez em quando saía com alguém sem compromissos, alguma aventura amorosa, guardava no íntimo a esperança da volta de seu primeiro amor, aquele que nunca se esquece.

No ano passado no dia dos namorados, Tonhão telefonou para Antônia, marcou o almoço e tarde de amor. Dessa vez ela estava fria, arredia, pediu para acabar com aqueles encontros anuais, não era correto. Tonhão insistiu em pegá-la de qualquer maneira, ansioso para mostrar seu novo carro. Depois do almoço quando se dirigia aos motéis da praia de Jacarecica, Antônia segurou a mão de Tonhão, e implorou: – “Por favor, leve-me para casa, a situação mudou, tenho outra pessoa, estou namorando firme, não fica bem. Amo o Pedro, agora é diferente, sou uma mulher honesta. Ele me ama, é carinhoso, faz café e me traz na cama, mais moço pouca coisa que eu, entretanto, é um homem maduro, ajuda em meus problemas. Além de tudo, ótimo professor na cama, me ensinou coisas que não pensei existir. Um verdadeiro sonho de consumo de qualquer mulher de 47 anos. Não fica bem, por favor Tonhão, me atenda!”

Tonhão deu a volta no carro, rumou para o Centro, sem dizer uma palavra, Antônia percebeu que lhe caiu uma lágrima, ele chorava contido, não sabia se de raiva ou de saudade por ter perdido para sempre aquele amor que foi o maior amor de sua vida.