Luciano Trigo
Citado outro dia, em uma live, por Rodrigo Constantino, o livrinho “Homo Sovieticus”, lançado em 1982 pelo escritor e sociólogo dissidente Aleksandr Zinoviev (1922-2006), é uma leitura impressionante. O autor investiga como viver em uma ditadura afeta as atitudes, os valores e o comportamento do cidadão comum, por meio de um processo gradual (e, até certo ponto, inconsciente) de adaptação psicológica à ideologia, à burocracia e à estrutura política dominantes.
O que mais impressiona é a atualidade do livro. Com pequenas adaptações, todas as características que descrevem o Homo Sovieticus, no decadente império comunista de 1982, se aplicam ao Homo Brasiliensis, na pujante democracia relativa de 2024. Um e outro desenvolveram mecanismos de defesa para sobreviver em contextos de repressão e controle, internalizando a lógica do regime para enfrentar os desafios do cotidiano.
Zinoviev descreve como a ditadura soviética condicionou os indivíduos a serem obedientes e conformistas. Sob vigilância constante e com medo de represálias, consolidou-se uma mentalidade passiva, bem como a relutância em desafiar o status quo, o que era fundamental para a manutenção do regime.
Mas também se consolidou uma atitude velada de cinismo e desconfiança em relação às promessas do governo e à propaganda estatal. Essa atitude, contudo, não levava à rebeldia; ao contrário, reforçava a resignação, a descrença em qualquer possibilidade de mudança real da sociedade.
Como o Homo Sovieticus, o Homo Brasiliensis é cético em relação ao governo, à política e às instituições. Após décadas de escândalos de corrupção e ineficiência, ele concluiu que o sistema raramente funciona em benefício da população. Isso gerou cinismo e descrença – por exemplo, em relação ao sistema judicial, percebido como politicamente parcial e complacente com os ricos e poderosos.
As pessoas também se tornam descrentes porque percebem que a realidade contradiz o discurso oficial. Esse cinismo não gera uma rebelião direta, mas cria uma atitude de desconfiança e alienação em relação a qualquer narrativa oficial ou promessa de mudança. O sistema é algo que as pessoas aceitam publicamente, mas rejeitam internamente.
Na ditadura soviética, as pessoas aprenderam a manter uma “dupla consciência” – a diferença entre o que expressavam publicamente e o que realmente pensavam e sentiam em privado. Essa dissociação alimentava sentimentos de insatisfação e frustração que só podiam ser compartilhados com pessoas da maior confiança. No Brasil de hoje não é muito diferente.
Em um país onde escrever uma frase com batom pode render 17 anos de prisão, muitas pessoas também preferem adotar uma postura de autopreservação. No trabalho, no transporte público, nas redes sociais e até mesmo dentro de casa, há uma cautela em expressar opiniões divergentes, especialmente sobre política, para evitar conflito ou retaliação.
A expressão genuína de opiniões e sentimentos se tornou perigosa. Qualquer desvio das normas impostas pode resultar em punição e ostracismo social. Com o tempo, isso leva à supressão do pensamento crítico e da individualidade.
Zinoviev argumenta que a própria identidade do indivíduo acaba mudando, adaptando-se à realidade de uma vida sob opressão: o Homo Sovieticus não é apenas uma vítima, mas também um produto do sistema. Alguém que, para sobreviver, introjeta as normas e os valores do regime, alimentando um ciclo contínuo de repressão e aceitação.
Tal como o Homo Sovieticus de Zinoviev, o Homo Brasiliensis é um indivíduo adaptado, que desenvolve uma complexa relação com o sistema que o vigia e controla. Um e outro se acostumaram a lidar com naturalidade com crises políticas e econômicas frequentes, desastres naturais, violência urbana e desigualdade social endêmicas.
A indiferença é uma forma de suportar o estado permanente de incerteza e precariedade em que se vive, sem cair no desespero. Sob a pressão de um sistema que parece imutável, adota-se uma atitude fatalista, acreditando que a situação jamais irá mudar. Esse fatalismo cria uma apatia generalizada, onde as pessoas se resignam às dificuldades e injustiças. A aceitação passiva reflete o sentimento de falta de controle sobre suas próprias vidas.
A vigilância social, externa ou autoimposta, se torna comum em ambos os contextos. No caso do Homo Sovieticus, o Estado conduzia uma vigilância oficial; no caso do Homo Brasiliensis, há uma vigilância implícita, para garantir que ações e opiniões estejam alinhadas com o consenso, sempre em defesa da democracia.
Outra característica comum entre as duas espécies é a indiferença pelos resultados de seu próprio trabalho, o que resulta em baixa produtividade. Na União Soviética se costumava dizer: “Eles (burocratas e políticos) fingem que nos pagam e nós fingimos que trabalhamos.” Isso decorre de um ambiente que desestimula a iniciativa, a meritocracia e a responsabilidade individual.
O Homo Sovieticus era um indivíduo acomodado, escravizado, incapacitado, privado de iniciativa, incapaz de pensar criticamente, que esperava e exigia que tudo fosse fornecido pelo Estado, porque ele não queria nem podia tomar nas mãos as rédeas do seu próprio destino. O Homo Brasiliensis, em muitos casos, também é assim.
No sistema soviético, destacar-se podia trazer problemas, levando as pessoas a adotar uma postura de mediocridade calculada. No Brasil, a meritocracia virou um palavrão. Os jovens não são estimulados a competir, nem a acreditar que seus esforços serão um dia recompensados, ao contrário: são ensinados desde cedo a se enxergar como vítimas de uma sociedade injusta, que lhes deve uma reparação.
A ênfase é na coletividade, e o indivíduo que não se enquadra é percebido com uma ameaça. O sistema desincentiva qualquer forma de diferenciação que perturbe o equilíbrio coletivo. A mediocridade é incentivada como uma forma de proteção, e qualquer ambição individual é reprimida, levando ao nivelamento por baixo. Por exemplo, se a evasão de alunos nas universidades é alta, a solução apresentada é baixar o nível dos currículos.
O Homo Brasiliensis desenvolveu o “jeitinho” – o hábito de contornar regras e improvisar soluções alternativas para driblar o sistema. Zinoviev demonstra que o Homo Sovieticus também fazia isso. O “jeitinho” soviético era uma forma de resistência silenciosa, mas acabava contribuindo para perpetuar uma sociedade disfuncional.
No Brasil é a mesma coisa: o “jeitinho”, muitas vezes percebido como uma característica positiva, ou como um sinal da nossa criatividade inata, reforça uma cultura de flexibilidade moral que relativiza o certo e o errado, e incentiva a impunidade e a transgressão: “Eu sei que está errado, mas todo mundo faz, então eu também tenho o direito de me dar bem”. Para sobreviver, o indivíduo desenvolve um senso de “moralidade paralela”, mas acaba legitimando a amoralidade daqueles que o governam.