MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

AS MESMAS MENTIRAS DE SEMPRE

Qualquer aspirante a ditador sabe que é mais fácil controlar as pessoas quando elas são ignorantes. Para conseguir esse objetivo, praticamente todos os governos se esforçam para controlar duas coisas: a educação e a imprensa. Controlando as duas, fica fácil produzir um povo ignorante, basta acostumá-lo a não pensar e a aceitar sem questionar qualquer coisa que as “autoridades” digam. Entre os vários campos do conhecimento, o mais crucial, aquele que deve ser mantido afastado do entendimento das pessoas, é o conhecimento sobre os princípios básicos da economia.

O JBF publicou no último dia 6 um editorial da Gazeta do Povo (um dos melhores jornais do país atualmente) que mostra bem como a imprensa repete dogmas e trata o governo como algo divino e inquestionável. Entre análises corretas sobre as consequências indesejáveis da inflação, o jornalista declara que ela, a inflação, é “um dos temas mais complexos da ciência econômica”.

Não, caro jornalista. A inflação não é nada complexa. É simples, desde que se use o cérebro para pensar.

Se tentarmos pensar em “inflação” como “todos os preços subindo ao mesmo tempo”, realmente seria algo complexo. O mundo é povoado por milhões de pessoas que interagem entre si, cada uma com seus desejos e gostos, e por milhões de empresas que competem entre si para conquistar a preferência destas pessoas, em um conjunto chamado “mercado”. É impossível achar que o mercado possa ser controlado ou regulamentado por um governo, embora muitos tenham tentado (e falhado). Um fenômeno que afetasse todos os preços dentro dessa enorme rede de informações que é o mercado é mesmo difícil de imaginar.

Mas inflação é muito mais simples que isso. Imagine que você pesou todos os habitantes de uma cidade. Depois de alguns dias, você pesa todos novamente e descobre que todos estão pesando mais. O que é mais provável: que todas as pessoas resolveram engordar ao mesmo tempo ou que a balança tenha se desregulado? Inflação é quando o dinheiro passa a valer menos; como estamos acostumados a usar o dinheiro como medida de valor, achamos que o valor de todas as coisas aumentou quando na verdade foi apenas o valor do dinheiro que diminuiu.

Como e por que o valor do dinheiro diminui? Por causa da mais fundamental lei da economia: oferta e procura. Acontece que o governo concede a si mesmo o poder de fabricar dinheiro, que ele usa para pagar suas contas. Só que quando a quantidade (ou “oferta”) de dinheiro na economia aumenta, o seu valor diminui, como acontece com qualquer bem. Para ser mais exato: se a oferta de dinheiro aumentar no mesmo ritmo do crescimento da economia, não haverá inflação, porque a procura também aumentará, mantendo o equilíbrio. Só que não é isso que os governos constumam fazer: eles gostam de imprimir dinheiro aos montes, e isso causa inflação.

Existe muita gente que afirma que imprimir dinheiro não causa inflação. Todas as explicações, quando existem, só funcionam no modo “aceite sem questionar”; nenhuma resiste a duas ou três perguntas. Existe até gente nas redes sociais que afirma que “não porque não, e pronto”, sem sequer se dar ao trabalho de inventar uma explicação. Enquanto isso, o fato é que na história toda vez que o governo fabricou dinheiro além do que devia houve inflação, e toda vez que houve inflação o governo fabricou dinheiro. É uma relação direta: não se encontram casos de um sem o outro nem do outro sem o um.

Para mostrar melhor como a imprensa do mundo todo fala do assunto, vamos dar uma examinada nas falácias mais comuns, e fazer algumas perguntas “inconvenientes”:

Inflação de demanda: significaria que os preços subiram porque as pessoas passaram a gastar mais, desequilibrando oferta e demanda.

Pergunta: de onde veio o aumento de dinheiro que as pessoas estão gastando? Se elas ganharam mais dinheiro trabalhando, então houve aumento de produção antes do aumento de consumo, o que significa que a oferta começou a crescer antes da demanda, e isso por definição causa redução de preços, não aumento. Aliás, é exatamente assim que funciona uma economia saudável.

A explicação real: o governo imprime dinheiro, esse dinheiro vai para os bancos, os bancos aumentam o crédito, e as pessoas começam a gastar o dinheiro que não têm, fazendo dívidas. A demanda sem dúvida aumenta, mas isso é consequência, não algo que aconteceu do nada. Ou seja, “inflação de demanda” é apenas a consequência daquilo que o governo fez.

A prova: se aumento de consumo baseado em crédito causa “inflação de demanda”, quando o crédito volta a encolher (inevitável), a demanda volta a diminuir e os preços deveriam voltar ao que eram. Mas não é isso que acontece: se o governo reduz a fabricação de dinheiro, o crédito some e costuma haver recessão, mas os preços não diminuem, apenas param de aumentar.

Inflação de custos: significa que a culpa é do tomate, da gasolina ou do remédio, que subiram muito, e fizeram os outros preços subir também.

Pergunta: quando o preço de alguma coisa sobe, o consumo cai, e isso tende a estabilizar o preço. Quando é algo que as pessoas não podem deixar de comprar, como gasolina, a tendência é que o consumo de outras coisas caia, o que faz o preço cair. Assim, se a gasolina sobe, faz sentido dizer que as pessoas vão gastar mais em gasolina e também vão gastar mais em todas as outras coisas, e continuar consumindo na mesma quantidade? Com que dinheiro?

A explicação real: a inflação do tomate ou da gasolina é só uma desculpa do ministro para negar que o responsável pela inflação é ele mesmo. Enquanto o governo está imprimindo dinheiro e fabricando inflação, sempre haverá alguma coisa que pode ser usada para desviar a atenção. Pode ser uma seca ou uma enchente, que causa uma redução na oferta de algum alimento, ou pode ser a própria inflação: o governo faz os preços subirem e depois finge que não sabe porque os preços subiram. É como dizer que o culpado pela febre é o termômetro.

A prova: se fatores externos como chuva ou guerra na Ucrânia fazem todos os preços subirem, porque os preços não voltam a baixar quando estes fatores se normalizam?

Inflação mundial: é a falácia mais recente, diz que a inflação se espalha de um país para o outro, como a covid.

Pergunta: a primeira coisa que sobe quando o governo imprime dinheiro é o câmbio. Isso significa que a moeda dos outros países ficou mais forte e o preço dos produtos para os estrangeiros ficou mais baixo. Como isso pode gerar inflação nos outros países?

Outra pergunta: se a inflação é mundial, porque na Suiça, Singapura e Japão a inflação não subiu? Será mera coincidência que estes países não fabricaram dinheiro, enquanto Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Européia, que imprimiram trilhões de dólares, libras e euros durante a pandemia, estão apavorados com a inflação?

A explicação real: muitos países imprimiram dinheiro como loucos para tentar compensar os prejuízos dos lockdowns, e obviamente só pioraram as coisas. Como a guerra da Ucrânia causou um aumento temporário nos preços do petróleo, os culpados de sempre correram para colocar a culpa no coronavírus e no Putin.

A prova: se o aumento dos preços do petróleo foi a causa da subida de preços no mundo inteiro, porque agora que o petróleo voltou para onde estava antes da guerra os preços não voltaram também?

Quem prestou atenção notou que há muita coisa repetitiva nesta explicação. É assim mesmo, porque toda essa “complexidade” que o jornalista da Gazeta diz existir é apenas lero-lero para esconder uma verdade que é bem simples.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

SOBRE O DINHEIRO DIGITAL, DE NOVO

Eu já falei sobre o dinheiro digital antes. Veja clicando aqui e também aqui. Não imaginei que gente do governo fosse entregar a rapadura tão cedo e admitir o que pretendem fazer.

Estou falando das declarações do coordenador dos trabalhos do real digital no Banco Central, Fábio Araújo, na última quinta-feira. Em um evento sobre o real digital, ele disse as seguintes frases:

“Uma Prefeitura poderá dar um voucher para comprar leite que pode ser digital e estar na carteira digital do cidadão, e ter todas as características de dinheiro, mas, na hora do pagamento, ele só vai se prestar para aquela finalidade.”

“Em um caso extremo, um voucher entregue como dinheiro poderia proibir o consumo de refrigerante com açúcar em meio a uma eventual epidemia de obesidade. “

“Tem um grau de influência na vida das pessoas quando você começa a pensar nesses mecanismos, que vão muito além do que se deveria fazer com essa tecnologia.”

Note o tempo verbal na última frase: “do que se deveria fazer”. É bem diferente de “não será feito”. E é bem diferente justamente porque este é o objetivo principal do projeto: controlar o uso do dinheiro. Ou alguém acha que nossos políticos, ao terem esse poder nas mãos, não vão usá-lo?

A população já está sendo condicionada a aceitar esse controle faz algum tempo. Bloquear bens de “suspeitos” sem julgamento já é trivial. O controle cada vez maior do governo sobre o que as pessoas fazem com seu dinheiro é sempre justificado com expressões vagas como “combater a sonegação”, “combater o crime organizado” ou “combater a lavagem de dinheiro” – é bom lembrar que quem diz o que é “sonegação”, “crime organizado” ou “lavagem de dinheiro” é o governo, e qualquer coisa que ele não goste pode ser encaixada nessas definições.

O PIX vem cumprindo sua função de acostumar as pessoas à presença do governo como intermediário em cada pequena compra do dia-a-dia. Pouca gente parece preocupada em pensar que em um futuro próximo, comprar comida no mercado ou pão na padaria só será possível com a participação (e a anuência) do Banco Central e da Vivo, Claro ou TIM.

No momento em que o dinheiro físico deixar de existir (e isso acontecerá em poucos anos), cada pessoa passará a ser prisioneira do governo de seu país. Só poderá trocar seu dinheiro por outra moeda, ou por ouro, ou por bitcoins, se o governo deixar. Os impostos poderão ser cobrados diretamente da conta, na quantidade que o governo desejar. Os políticos estarão livres para implantar as “políticas públicas” que muita gente pede, já que poderão controlar em que cada pessoa poderá gastar seu próprio dinheiro, como o funcionário do BC exemplificou aí acima. E muita gente irá apoiar e aplaudir, porque está desde criancinha escutando que “o governo só quer o nosso bem”.

Um último e importante aviso: hoje, quando um governo começa a fabricar moeda além do razoável, as pessoas correm para o dólar, o ouro ou o bitcoin. No momento em que as pessoas não puderem mais levar seu dinheiro para fora do sistema, o governo ficará livre para inflacionar a moeda o quanto desejar.

Você está pensando em se mudar para fugir disso? As opções não são muitas: EUA e União Européia estão tão animados quanto o Brasil para implementar o dólar e o euro digitais. No momento, os refúgios que me vêm à mente são Suíça, Cingapura e Nova Zelândia, e não confio muito nessa última.

Segundo o BC, o real digital entrará em fase de teste piloto neste mês de março. A versão final tem previsão de lançamento para 2024.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

ECONOMIA

A economia é uma ciência estranha. Seu campo é analisar o comportamento das pessoas, e o senso comum diz que o comportamento humano é imprevisível. Isso não impede que as faculdades de economia passem anos mostrando aos alunos um amontoado de fórmulas que supostamente permitem prever todos os parâmetros econômicos de uma sociedade.

Esse mito é tão forte que eu me assustei essa semana ao ler, em um site de economia, a seguinte afirmação:

“Um dos maiores consensos no final do ano passado era de que o mundo entraria em uma recessão em 2023. Essa contração da economia começaria pela Europa, e depois se alastraria para os EUA e outros países. [..] O consenso é tão forte que, pela primeira vez na história, os economistas estavam prevendo uma recessão antes de ocorrer. Ora, quem olha os dados passados sabe que, em geral, as projeções de uma recessão acontecem durante, ou até após, o início dela. “

Como é? Um economista, em um site de economia, admitindo que até hoje os economistas nunca conseguiram prever uma recessão? De onde veio esse sincericídio?

A humilde (mas não muito) opinião deste pitaqueiro é que a ciência econômica hoje está em algum lugar entre a teologia e a astrologia. Explico:

Assim como os astrólogos, os economistas fazem cálculos complicados e “mapas astrais” cheios de detalhes, mas baseados em premissas completamente arbitrárias. Pode-se determinar com absoluta precisão que no momento em que uma determinada pessoa nasceu, Mercúrio estava retrógrado em relação à constelação de Capricórnio; isto é matematicamente exato. Tirar daí uma conclusão sobre o futuro da pessoa é algo completamente diferente. Da mesma forma, economistas, especialmente os que trabalham para o governo, passam a vida coletando dados e somando-os em planilhas complicadas, sem chegar à conclusão alguma, exceto talvez prever uma recessão depois que ela já está ocorrendo.

Em comum com a teologia, a economia adota o hábito de tomar como premissas aquilo que deveria ser a conclusão. Ao invés de estudar quais os resultados das intervenções do governo, os economistas proclamam estes resultados como dogmas inquestionáveis e desenvolvem o raciocínio a partir daí. Entre estes dogmas estão “um pouco de inflação é bom”, “é preciso estimular o consumo”, “moeda desvalorizada é bom para a balança comercial”, “gastos do governo enriquecem o país” e por aí afora.

Com o apoio entusiasmado dos jornalistas econômicos (que têm como mantra “o governo sempre acerta”) e com os acadêmicos fornecendo os “argumentos de autoridade”, também conhecidos como “você sabe com quem está falando?”, o resultado da intervenção do governo na economia segue mais ou menos o seguinte padrão:

1 – A economia está indo bem, as pessoas estão trabalhando, não há grandes problemas à vista. Como alguns preços dependem de fatores incontroláveis, como o clima no caso dos alimentos, existem oscilações de preço. O mecanismo do mercado “absorve” estas oscilações, de forma que o impacto geral é pequeno.

2 – Como tudo está bem, o governo resolve se meter para “estimular a economia”, usando seu poder para fabricar dinheiro do nada. O dinheiro vai parar nos bancos. Os bancos usam esse dinheiro que ganharam sem custo para conceder empréstimos e ganhar mais dinheiro.

3 – Com o crédito fácil, a população começa a se endividar para consumir. À medida em que o dinheiro criado se espalha pela economia, a lei da oferta e procura entra em ação e o valor do dinheiro cai, o que significa que os preços sobem. O aumento súbito do consumo também ajuda a empurrar os preços para cima.

4A – Em países onde o governo é irresponsável, o governo reage ao aumento de preços fabricando ainda mais dinheiro. Isso inicia um círculo vicioso que acaba em hiperinflação. Nota: alguns economistas chegam a ter a cara-de-pau de dizer que hiperinflação não é culpa do governo, mas até hoje nenhum deles foi capaz de citar um caso sequer de hiperinflação que não tenha sido precedida por um aumento na fabricação de dinheiro (em economês: expansão monetária).

4B – Se o governo é um pouco mais responsável, ele percebe a burrada e reduz a fabricação de dinheiro, e em muitos casos aumenta a taxa de juros para “esfriar a economia”. O resultado é que as pessoas ficam endividadas e com menos dinheiro; os preços permanecem altos. A economia entra em recessão. As pessoas apertam o cinto para pagar as dívidas contraídas na época da farra, as empresas que investiram para aumentar a produção vêem o investimento não dar retorno, o governo começa a apontar culpados: a chuva, a falta de chuva, o calor, o frio, os especuladores, os produtores, algum país estrangeiro, qualquer um, menos ele mesmo.

5 – Se nesse ponto o governo não fizer mais nada, aos poucos as coisas voltam ao lugar, embora geralmente em uma situação um pouco pior do que antes. Os preços se estabilizam, as pessoas pagam suas dívidas e voltam a consumir, oferta e demanda voltam a se equilibrar. Voltamos ao ítem 1. Se o governo insistir em querer “consertar” a economia, podemos esperar medidas cada vez mais irracionais e um caos cada vez maior. Exemplos clássicos: a depressão de 1921 nos EUA foi do primeiro tipo. Houve um ano ruim, e depois a economia voltou a crescer. Já a depressão de 1929 foi do segundo tipo: o governo se meteu em tudo que podia, e como resultado a crise durou quinze anos.

6 – Sempre existe o perigo dos políticos ficarem com medo do resultado das eleições e passarem direto do estágio 5 para o 2, sem que a economia tenha realmente se recuperado da crise. A tendência então é o país entrar numa espécie de montanha-russa de subidas e descidas, com o governo tomando medidas para um lado e para o outro tentando “estabilizar” a economia, mas conseguindo apenas agravar a situação. É que os políticos, que não entendem nada de economia, tomam decisões se baseando no que dizem os jornalistas, que não apenas não entendem mas acreditam em coisas que são opostas à realidade.

Passando da teoria para a prática, como o mundo está neste momento?

A crise da COVID foi uma das maiores de toda a história econômica do ocidente. Pessoas foram proibidas de trabalhar, empresas foram fechadas à força. Os mesmos governos que fizeram isso fabricaram dinheiro em escala nunca vista, acreditando que uma coisa compensaria a outra. O resultado, naturalmente, foi inflação. Os países desenvolvidos têm muito medo de inflação e ficam apavorados quando ela chega, embora nunca entendam porque ela apareceu. Quando os números começaram a ficar altos, os bancos centrais cortaram a fabricação de dinheiro.

O gráfico abaixo mostra a variação na quantidade de dinheiro na economia dos países membros da OCDE, mas não em valores nominais, como é comum, mas em termos de poder de compra. Ou seja, um número positivo indica que o dinheiro está valendo mais, um número negativo indica que o dinheiro está valendo menos. Vejamos:

O gráfico abrange 42 anos, começando em 1980. Até 2021, o índice variava entre 2 e 6% ao ano, com picos chegando a 12% em 1986 e 8% em 1999, 2001 e 2008. O que aconteceu nos últimos dois anos? Um aumento anual de 18% em 2021 seguido de uma redução de 7% em 2022. Em economia, ver números completamente diferentes do usual geralmente não é uma boa coisa.

O aumento inédito em 2021 é fruto de uma enorme emissão de dinheiro, da ordem de trilhões, feita pelos EUA e UE. Quando os preços começaram a subir, a emissão parou, o que causou o também inédito repique negativo no ano seguinte. Em termos práticos, as pessoas estão com menos dinheiro e este dinheiro está valendo menos. Em termos mais práticos ainda, recessão.

A história econômica mostra que em casos assim, o melhor que um governo pode fazer é não fazer nada, e esperar os preços se estabilizarem. É doloroso, mas funciona. Infelizmente, políticos sempre querem mostrar que estão “fazendo alguma coisa”, e as chances são de que novas bobagens venham a piorar ainda mais a situação, provavelmente caindo na montanha-russa do estágio 6 lá de cima.

Coisas que complicam a situação para a Europa:

– O caríssimo “estado de bem-estar social” exige gastos cada vez maiores, especialmente nos famosos “saúde e educação”, e nenhum político tem coragem de tocar no assunto.

– A guerra na Ucrânia bagunçou o mercado de energia, que já estava precário por conta de políticas eleitoreiras e demagógicas. No ano passado a União Européia gastou quase UM TRILHÃO de euros em subsídios a combustíveis e energia elétrica.
– A produtividade da população vem caindo, com as novas gerações preferindo viver de ajuda do governo ao invés de entrar no mercado de trabalho.

Concluindo, a Europa de hoje é um cenário pronto para fazer parte dos futuros livros-texto das faculdades de economia. Resta saber que rumos os políticos irão tomar neste ano que começa.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

DIREITOS

Um sujeito estava em um táxi, e o motorista dirigia bem rápido. De repente, chegando em um cruzamento, o motorista pisou forte no freio, e o passageiro foi parar com a testa encostada no pára-brisa. Espantado, o passageiro perguntou: “Por que você parou, se a rua que estamos é preferencial?” “Meu senhor”, respondeu o taxista, “preferência não é uma coisa que se têm. É uma coisa que te dão. Se não te derem, você não tem.”

Embora seja apenas uma piada, essa pequena história transmite uma mensagem profunda. A “preferência” de que o taxista fala é um “direito”, e no mundo de hoje cada vez mais pessoas acreditam ter direitos que na verdade não são direitos.

Existem direitos? Sim, existem: o direito de não ser agredido, o direito de pensar o que quiser, o direito de dizer aquilo que pensa, o direito de trabalhar, o direito de usufruir de seu patrimônio, e de forma geral o direito de viver com liberdade, desde que não impeça os outros de desfrutarem destes mesmos direitos.

O que define um direito? Antes de tudo, é preciso acreditar que esse direito seja de todos. Um direito que só algumas pessoas têm não é um direito, é um privilégio. E caso alguém tente usar o velho argumento de que “são casos diferentes”, a resposta é tão velha quanto: quem julga cada caso e resolve quem tem direito e quem não tem? Ou melhor, quem detém o monopólio da moral para definir os parâmetros que dizem quem tem direito e quem não tem?

Existe outro parâmetro mais importante: um direito não é moralmente correto se ele existe às custas da coerção alheia. Em linguagem mais simples, um direito não é um direito se ele cria obrigações para os outros – o nome disso, em última análise, é exploração. Quando alguém diz que tem direito a ganhar coisas de graça, geralmente oculta o fato de que as coisas não são realmente gratuitas, elas apenas estão sendo pagas por outras pessoas, e quase sempre de forma coercitiva.

Essa manipulação em que se mostra a parte boa (o “direito”) mas se esconde a parte ruim (a obrigação) é uma das artimanhas preferidas de qualquer governo. Ele se mostra como bonzinho e caridoso ao falar dos beneficiados, e desconversa quando se fala dos prejudicados. Tudo começa quando, num truque de vocabulário, o governo diz que cria leis. Quem cria leis é a natureza, e das leis da natureza ninguém foge. Os políticos escrevem coisas em um papel e ao chamar isso de leis tentam dar a impressão de que a Lei Paulo Gustavo ou a Lei Maria da Penha são coisas tão eternas e imutáveis quanto a Lei da Gravidade. Não são. Em um segundo truque, os mesmos políticos dizem que as leis “criam” e “garantem” direitos. Na verdade, o que as leis feitas pelos políticos fazem é fornecer os parâmetros de como o dinheiro das pessoas será cobrado pelo governo, que usará a maior parte para si mesmo e deixará uma pequena parte para fornecer algum serviço. Ao não enxergar o truque, as pessoas passam a ver o governo como uma entidade mágica que faz surgir coisas do nada. Como disse Bastiat, “o governo é uma grande ficção através da qual todos acreditam que podem viver às custas dos outros”. A consequência disso também foi prevista por Bastiat: “Quando explorar os outros se torna um modo de vida para um grupo de pessoas, este grupo cria uma lei que autoriza a exploração e uma moral que a glorifica”.

Por exemplo, para acreditar que é possível existir “direito à saúde” ou “direito à educação”, há duas opções: uma é acreditar que médicos e professores devem ser obrigados a trabalhar de graça; outra é acreditar que as pessoas devem ser obrigadas a dar dinheiro aos políticos para que estes paguem os médicos e professores e digam que eles, políticos, estão “garantindo direitos”. Nenhuma das opções é moralmente correta, porque fere um direito fundamental de todo ser humano, que é a liberdade. Esta palavra é odiada pelos políticos, que dedicam sua vida a repetir que liberdade é algo perigoso, e que todos devem abrir mão da sua e entregá-la a um grupo de iluminados que sabe o que é melhor para todos. Esses iluminados, claro, são os próprios políticos.

A tática funciona, e hoje em dia muita gente no mundo teme a liberdade, preferindo viver sob as ordens de um governo que lhes dá “direitos”.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

UMA FÁBULA

O sapo estava na beira do rio, pensando na vida. Um escorpião se aproximou e pediu uma carona para chegar à outra margem. O sapo hesitou, pensando na fama dos escorpiões, mas pensou “ele não vai querer me matar no meio do rio, porque ele morreria junto”. Então ele disse para o escorpião subir em suas costas e começou a atravessar o rio.

“Sabe de uma coisa?”, disse o escorpião, “existe uma fábula que fala justamente daquilo que estamos fazendo.”

“É mesmo?”, respondeu o sapo enquanto nadava.

“É. O escorpião pediu ao sapo para levá-lo ao outro lado do rio. O sapo teve medo, mas pensou que não haveria perigo porque se o escorpião o matasse, morreria também. Quando eles estavam na metade do rio, o escorpião disse ao sapo que não podia fugir à sua natureza e deu-lhe uma ferroada.”

O sapo se atrapalhou um pouco ao nadar e disse com voz trêmula “que interessante…”

O escorpião prosseguiu: “Pois é, todo escorpião conhece esta história. Ela mostra que os sapos são tolos, ingênuos e imprudentes, e que sua irresponsabilidade acarreta prejuízos a eles mesmos e aos outros. Por outro lado, a fábula mostra como nós escorpiões somos sérios, honrados, coerentes, comprometidos com nossa ideologia, e fortes e valentes ao ponto de sacrificar a própria vida para resguardar nossos valores e nossas tradições.”

E então o escorpião deu uma ferroada na cabeça do sapo e ambos foram para o fundo do rio.

***

Moral da história: não importa o tamanho da bobagem que alguém faça, sempre haverá um jeito de contar a história elogiando a si mesmo e colocando a culpa nos outros.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

NINGUÉM DEVERIA MORRER POR UM MAPA

Nunca se mente tanto quanto antes da eleição, durante a guerra e depois da pescaria. Eu conheço essa expressão desde criança, e ela reflete, por baixo do humor, uma verdade. Enquanto pescarias costumam ser bastante inofensivas, eleições e guerras são coisas que afetam profundamente a vida das pessoas, e é péssimo que elas aconteçam envoltas em mentiras.

A guerra existe desde que o homo sapiens existe. Não deveria existir, claro, mas na antiguidade os líderes ao menos tinham a decência de estar na linha de frente, dando o exemplo e correndo risco junto com os outros. Hoje, as guerras são planejadas, iniciadas e conduzidas por burocratas sentados em poltronas macias, rodeados de assessores puxa-sacos e garçonetes bonitas. Quem morre são só os filhos dos outros, que nem sabem porque estão morrendo: simplesmente receberam ordens.

Como tudo no mundo depende da maneira de dizer, os políticos não mandam as pessoas morrerem por eles; usam uma abstração chamada “pátria”. É o tipo de coisa difícil de explicar: todas as constituições se esmeram em dizer que “o poder emana do povo” e “o povo é soberano”, mas ao mesmo tempo criam uma entidade chamada “governo” que pode mandar no povo, prender o povo, obrigar o povo a morrer em uma guerra. Tudo em nome de uma “pátria” que não tem rosto, não tem endereço, não tem voz própria. Na verdade, os supostos interesses da pátria mudam a cada eleição, e espera-se que a vontade do povo mude junto.

Ao mesmo tempo, existe o conceito de nação, que às vezes (e só às vezes) concorda com o conceito de pátria. Uma nação seria, supostamente, um conjunto de pessoas ligadas por laços sócio-culturais comuns. Estas pessoas teriam (sempre “supostamente”) idéias, preferências e desejos similares, e poderiam tomar decisões coletivas baseadas na vontade da maioria. Pode até fazer algum sentido, mas não anula a realidade: pessoas são indivíduos, e têm direito a ter opinião própria. Ninguém deve ser obrigado a pensar da mesma forma que seu vizinho, mesmo se ambos falam a mesma língua, compartilham a mesma etnia ou nasceram dentro de uma mesma demarcação geográfica. E, repito, ninguém deveria ser obrigado a morrer ou a matar para atender aos desejos de poder dos políticos.

Depois das duas guerras chamadas “mundiais”, os países inventaram uma maneira mais sofisticada de fazer guerra e deixar os prejuízos para os outros. O método costuma ser chamado “guerra por procuração”. Os políticos interessados na guerra escolhem um país pequeno (ou uma parte de um país) e colocam lá um líder alinhado com seus objetivos (os métodos são vários). Aí fornecem armas e dinheiro para que o povo desse lugar entre em guerra contra o povo vizinho, que muitas vezes também é liderado por um fantoche de outro país. Enquanto pessoas matam e morrem sem sequer entender por quê, os políticos de fora se vangloriam por estar ajudando o tal povo a “lutar por sua liberdade”, ou coisa parecida. Os dois casos mais famosos aconteceram na Coréia (1950-1953) e no Vietnã (1955-1975). No momento, está acontecendo na Ucrânia, e para entender a situação é preciso, antes de mais nada, entender o contexto.

A Ucrânia que a escola mostra nas aulas de geografia e a imprensa chama de “país soberano” só existe há três décadas. Partes que hoje aparecem no mapa como “Ucrânia” já fizeram parte da Polônia, da Rússia, da Alemanha, do Império Austríaco e até mesmo da Turquia. A região que tem, há tempos, uma identidade ucraniana fica em torno de Kiev, a capital, na margem ocidental do rio Dnieper. Deveríamos chamar essa região de “nação ucraniana”, mas como somos bombardeados desde bebês com a propaganda estatal, essa idéia geralmente assusta: estamos condicionados a acreditar que nação é aquilo que o governo diz que é, não aquilo que o povo sente que é.

Historicamente, é incontestado que a região próxima ao litoral do Mar Negro e a oeste da foz do Dnieper sempre foi pouco “ucraniana” e muito ligada à Rússia. Pouco depois da Primeira Guerra Mundial, a Ucrânia passou a fazer parte da União Soviética e as fronteiras passaram a ser meras formalidades administrativas. Quando a União Soviética se desmanchou, em 1989, os políticos de Kiev transformaram essas fronteiras quase fictícias nos limites oficiais dos “seus” domínios, ignorando que a realidade era diferente.

Eu gosto de defender idéias não apenas com afirmações, mas com fatos, e acho que nenhum argumento pode ser tão eloqüente quanto o mapa abaixo. Ele mostra o resultado da eleição presidencial de 2010. Os candidatos eram Viktor Yanukovych, favorável a uma maior aproximação com a Rússia, e Yulia Tymoshenko, que defendia que o país se afastasse da influência russa e se aproximasse da União Européia. No mapa, as províncias onde Yanukovych venceu estão em azul, e aquelas onde Tymoshenko venceu estão em rosa:

É preciso ser muito cínico para negar que esse é o retrato de um país dividido. Mas como também somos condicionados desde criancinhas a acreditar que a democracia resolve todos os problemas, Viktor foi eleito com 12,5 milhões de votos contra 11,6 milhões de Yulia, e todos fizeram de conta que estava tudo certo.

Não estava. No início de 2014 surgiram protestos contra o governo que rapidamente se transformaram em violência e culminaram na deposição do presidente Yanukovych. O que aconteceu pode ser chamado de “golpe contra um governo democraticamente eleito” ou “o povo heróico salvando seu país”, conforme a simpatia e a torcida de cada um. O fato é que após o governo pró-Rússia de Yanukovych vieram os pró-ocidente Petro Poroshenko e Volodimyr Zelenskyy, a população pró-Rússia do leste da Ucrânia começou a se queixar, e as tensões entre Kiev e Moscou foram aumentando até chegar à guerra que já está quase completando um ano.

O restante da história também pode ser contado de duas maneiras dependendo do lado que se escolhe como certo, mas a realidade permanece: cidades inteiras estão sendo reduzidas a escombros e pessoas estão morrendo. O que mais me entristece: gente que acha que na guerra um dos lados é bonzinho e que uma parte dessas pessoas “merece morrer”. Aliás, algum tempo atrás eu estava acompanhando um debate em um site onde se falava das denúncias sobre milícias ucranianas massacrando civis por serem considerados “pró-Rússia”, e tive o desprazer de ver um indivíduo, brasileiro como eu, dizer “Tá certo, tem que matar mesmo! Traidor da pátria tem que ser eliminado o quanto antes!”

Me entristece pensar que uma pessoa possa passar da condição de “patriota” para “traidor” apenas porque uma eleição trocou um político por outro. Me entristece pensar que um político possa condenar pessoas à morte simplesmente apontando linhas desenhadas em um pedaço de papel desenhado e dizendo “quem manda aqui sou eu”. Ninguém deveria morrer por causa de um mapa.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

IGUALITARISMO

Este texto é um resumo de um artigo de Murray Rothbard, chamado Egalitarianism and the elites. Quem quiser pode ler o original, clique aqui

Uma das grandes glórias da humanidade é que, ao contrário de outras espécies, cada ser humano é único e insubstituível. A diversidade é o atributo mais marcante da humanidade.

A atual veneração da igualdade é uma idéia recente no pensamento humano. Até o século 18, ela só era mencionada como algo ridículo ou indesejável. A natureza anti-humana da igualdade fica clara no mito grego de Procusto: Ele convidava os viajantes a passar a noite em sua casa, e os obrigava a deitar-se em uma cama de ferro. Se o convidado fosse maior que o tamanho exato da cama, Procusto cortava fora as “partes excedentes”. Se fosse menor, ele esticava a vítima até o tamanho desejado.

O que Procusto faz é claramente desumano, e sua única justificativa é um lunático “ideal estético”. Incrivelmente, muitos modernos igualitaristas têm posturas semelhantes. O economista Henry C. Simons escreveu um longo artigo defendendo o imposto de renda progressivo sob o argumento de que a desigualdade de renda é “má e desagradável”. O sociólogo Albert H. Halsey disse ser “incapaz de imaginar outra razão além da maldade” para quem discordasse de suas idéias igualitárias.

Mas vamos examinar o problema com mais atenção: o que exatamente deve ser igualado? A resposta clássica seria “a renda” ou “a riqueza”. Mas qual delas? A renda familiar ou per capita? Como comparar pessoas casadas e solteiras? Casais com mais filhos devem ganhar mais? E o que deve ser igualado é a renda ou a riqueza? Se Pedro gasta tudo que ganha e Paulo poupa e adquire bens, devemos igualar o salário ou o patrimônio deles?

Indo além do aspecto monetário: um morador de Paris que pode tomar café às margens do Sena enquanto olha para a Torre Eiffel deve ser igualado a um morador de Mantamaru no deserto australiano que só enxerga areia para todos os lados? O sujeito que tem uma cobertura em frente à praia de Jatiúca em Maceió deve ser igualado ao dono de uma meia-água na região mais pobre da Baixada Fluminense? E caso a resposta seja sim, como quantificar essas diferenças? Quanto o morador de Paris ou Maceió deve pagar ao morador de Mantamaru ou de Japeri para que haja igualdade?

E quanto à formação de cada pessoa, também deve haver igualdade? Se um casal se esmera em dar cultura e conhecimento a seus filhos enquanto o casal vizinho aconselha os filhos a não estudar e passar o dia empinando pipas, o que fazer? Como sair da situação “injusta” em que uma criança nasce em uma família culta e harmônica e outra nasce em uma família de idiotas irresponsáveis?

Os espíritos estatistas (de todas as vertentes ideológicas) responderão que a criação e a educação das crianças deve ser “nacionalizada”, ou seja, colocada a cargo do estado que se encarregará de uniformizar e desindividualizar os futuros cidadãos igualitários. Mas é inevitável que em alguns colégios existam professores excelentes, do tipo que se destaca da maioria, ou diretores que levem seus colégios como um todo a um nível de qualidade acima da média.

Uma lavagem cerebral adequada (geralmente ministrada nas universidades), a burocratização e o amortecimento do espírito sempre presentes nos estabelecimentos estatais podem ajudar a nivelar por baixo professores e diretores, mas ainda assim o igualitarismo ideal envolveria afastar aqueles que se destacam, para evitar a pavorosa idéia de que alguns jovens possam receber uma educação melhor que a média e assim macular a sagrada “igualdade de oportunidades”.

Quando se olha para o movimento igualitarista, nota-se logo que seus principais defensores não são iguais aos outros: são professores de Harvard ou Oxford, políticos, escritores e outros membros privilegiados da elite social. Para entender essa aparente contradição, basta pensar em Procusto: eles estão menos preocupados com os resultados das políticas de igualdade e mais preocupados em deter o poder de ditar os termos desta igualdade. Sim, porque implantar a igualdade necessariamente exige criar uma elite governante dotada de grande poder de coerção, até mesmo física. Os ideais de Procusto são os mesmos de todos aqueles que fazem parte – ou almejam fazer – do grupo que detém o poder de impor seus padrões ao restante da sociedade. Alguns pensadores políticos admitem isso abertamente. O sociólogo Frank Parkin disse “o igualitarismo exige um sistema político onde o estado seja capaz de controlar aqueles grupos sociais e ocupacionais que, em virtude de suas habilidades, educação ou atributos pessoais, poderiam tentar reivindicar uma parcela desproporcional de recompensas da sociedade. A maneira mais eficaz de controlar estes grupos é negar-lhes o direito de se organizar politicamente ou de minar a igualdade social.”

Como Parkin e sua turma não percebem que essa implantação de “igualdade” necessariamente leva a enormes desigualdades de poder e autoridade, e conseqüentemente de renda e riqueza? Podemos pensar em hipocrisia ou em manipulação deliberada, porque a simples observação da história mostra que em qualquer organização humana (ou pelo menos naquelas que funcionam) é inevitável o surgimento de uma hierarquia e uma desigualdade de tomada de decisões. O consenso, a democracia, a submissão da minoria à vontade da maioria são, quase sempre, sonhos românticos.

O sociólogo alemão Helmut Schoeck apontou que o igualitarismo moderno é basicamente a institucionalização da inveja. Se nas sociedades bem-sucedidas a inveja sempre foi considerada errada e vergonhosa, a sociedade igualitária transfere a culpa para a vítima, acusando-a do crime de provocar a inveja. Qualquer peculiaridade que destaque uma pessoa passa a ser condenada, e a igualdade econômica deixa de ser suficiente; busca-se então a uniformidade obrigatória de inteligência, talento, aparência, comportamento, etc., até chegar ao ponto em que qualquer demonstração de individualidade seja considerada condenável. Schoeck lembra que nos kibutz israelenses até a busca por privacidade era condenada.

O conceito de que o erro não está em invejar, mas em ser motivo de inveja foi implantado na prática através do velho mecanismo da culpa. Ao fazer isso, a busca da igualdade entre indivíduos foi deixada de lado em favor da busca da igualdade entre grupos. Assim, toda pessoa que pertence a um suposto grupo “opressor” é levada a sentir culpa pelo sofrimento dos grupos supostamente “oprimidos”.

A proliferação dos tais grupos oprimidos – também chamados jocosamente de “vítimas credenciadas” – parece não ter fim: mulheres, negros, hispânicos, índios, imigrantes, deficientes, jovens, velhos, altos, baixos, gordos, magros… Praticamente qualquer coisa serve para que alguém se considere oprimido e merecedor de vantagens e privilégios a serem obtidos à custa dos opressores, seja lá quem sejam. Como todo processo mental reflete-se na linguagem, foi dito que o igualitarismo chama de “necessidade” o desejo das pessoas de tomar o que é dos outros, enquanto o desejo de conservar o que é seu passa a ser chamado de “ganância”.

Obviamente, os Procustos modernos enfatizam as vantagens concedidas aos oprimidos para disfarçar as suas próprias vantagens, muito maiores, e fazem de tudo para esconder dos ditos oprimidos o fato de que eles mesmos são os maiores prejudicados pelo processo.

A virtude do igualitarismo de grupo é justamente fornecer um suprimento quase infinito de grupos oprimidos que aderem com entusiasmo ao processo por julgar, inocentemente, que estão se beneficiando. Este comportamento tão tipicamente humano foi descrito por Pareto nestes termos: “Os indivíduos sempre estão empenhados em fugir das desigualdades que não lhes são favoráveis, e criar novas desigualdades que lhes serão vantajosas.”

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

ACABOU

Acabou o mês de dezembro, e com ele acabou o ano. Acabou também a primavera, e o verão já está em seu lugar.

Acabou a copa e acabou a espera de Messi pelo título de campeão mundial. Para Cristiano Ronaldo, acabou (?) o sonho deste mesmo título de campeão. Para o Brasil, a esperança do hexa acabou mas já foi renovada para a próxima copa.

Acabou a pandemia, embora muitos a mantenham guardadinha em uma prateleira de fácil acesso, pronta para ser usada novamente. Mostrou-se muito eficaz para esconder problemas, desculpar erros, justificar todo tipo de arbitrariedade e prepotência. E o público em geral gostou de sentir-se moralmente superior ao gritar para os outros “use máscara” e “fique em casa”.

Acabou, ao menos oficialmente, a eleição, embora já esteja claro que para a maioria dos brasileiros, a tal democracia só é boa quando é o candidato dele quem ganha.

O que não acabou foi a guerra. Entra ano, sai ano, e sempre em algum lugar do mundo há pessoas morrendo e pessoas matando sem saber direito por quê. Muita gente acha isso normal, e até torce para um dos lados matar mais e “ganhar”, como se fosse um jogo da copa.

De qualquer forma, 2022 está acabando e 2023 vai começar. Vamos a ele.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

O PAÍS QUE NÃO TINHA GOVERNO

Aprendemos desde que nascemos que todo mundo precisa obedecer ao governo, e a existência do governo é considerada tão natural e óbvia quanto o sol e a chuva. Até mesmo a palavra grega anarquia, que significa “ausência de governo”, é vista como sinônimo de bagunça, desordem, caos, guerra (irônico, porque quem declara guerras, no sentido estrito, são os governos). Por tudo isso, muita gente se espanta quando descobre que há apenas trinta anos atrás existiu um lugar cheio de gente onde não havia governo: a Somália.

A Somália fica no nordeste da África, uma região também chamada “chifre da África”. Seu litoral norte fica de frente para o Iêmen, na entrada do Mar Vermelho. Por ser um “lugar de passagem”, sempre foi um lugar importante no comércio entre a Ásia e a Europa. Em 1856 um jornal europeu chamou a cidade de Berbera de “o porto mais livre do mundo e o centro comercial mais importante do Oriente Médio”. Além das mercadorias que chegavam de navio, Berbera recebia mais de seis mil camelos por dia carregados com café, especiarias, perfumes, peles de animais e marfim, vindos do interior (onde hoje é a Etiópia).

Após a 1ª Grande Guerra, a Somália foi atacada e dominada pela Itália e no governo de Mussolini era considerada parte do “Império Italiano”, mas na verdade a Itália se preocupou apenas com as grandes cidades e nunca chegou a controlar todo o território do país. Com a derrota italiana na 2ª Guerra, a Somália tornou-se independente.

Em 1969, os militares assassinaram o presidente Shermarke e tomaram o poder. Explicar toda a bagunça que se seguiu levaria um tempão, mas o importante é que em 1991, após vinte anos de golpes e guerra civil, o presidente, general Siad Barre, fugiu do país e ninguém ficou em seu lugar. Havia grupos que declaravam ser “autoridades”, mas ninguém os levava a sério. Na prática, a Somália deixou de ter governo, embora forças da ONU tenham permanecido na capital, Mogadiscio, até 1995, sem conseguir nenhum resultado importante.

É interessante notar como essa década sem governo deixou muita gente confusa no resto do mundo. Os jornalistas parecem ser tão viciados em “versões oficiais” que muitos agem como se o país tivesse deixado de existir durante os anos 90; em muitos textos sobre a Somália, a narrativa simplesmente pula de 1991 para a década seguinte, como se esses anos fossem o intervalo de um jogo de futebol. Mas a realidade é exatamente o oposto disso: após ser destruído pela guerra, esse país sem governo se saiu surpreendentemente bem. Vejam algumas citações que, talvez por distração, foram publicadas na grande imprensa:

“A taxa de homicídios era bem maior que na Europa ou EUA, mas abaixo da maioria dos países da África” (The Guardian, 13/10/2009)

“A Mogadíscio sem estado era um exemplo extremo de desregulação, onde inúmeros empreendedores, incluíndo mulheres, criaram hospitais, escolas, companhias telefônicas, usinas elétricas e portos” (New York Times, 26/11/2006)

“Algumas partes da Somália têm o melhor serviço telefônico da África, com mais de 10 empresas competindo livremente e oferecendo ótimos serviços, incluindo ligações internacionais, por 10 dólares por mês” (New York Times, 27/04/2007)

“A falta de regulamentos estatais sobre comunicações na Somália representam uma viva ilustração de como governos podem ser mais um obstáculo do que uma ajuda” (The Economist, 20/12/2005)

“Desde a queda do governo, dezenas de jornais, estações de rádio e de TV surgiram rapidamente em quase todas as grandes cidades” (ONU, Coordenação de Assuntos Humanitários, 29/09/2007)

“Várias companhias aéreas, como Air Somália, Jubba Airways e Daallo Airlines surgiram no mercado. Mohammed Olad, proprietário da Daallo, comentou:´corrupção não é mais um problema, já que não há governo. Nós construímos e mantemos os aeroportos e só voamos quando temos certeza que é seguro.´” (Banco Mundial, 18/03/2005)

“Bosaso, na região autônoma de Puntland, emergiu como um hub regional e porto. Uma pequena vila de pescadores antes da queda do estado, Bosaso movimentou 15 milhões de dólares por ano em seu porto durante os anos 90. A população cresceu de 5.000 para 150.000 habitantes, atendida por empresas privadas de forma competitiva, com tribunais, escolas e uma universidade fundadas pela comunidade local.” (Alan Bock, antiwar.com, 29/04/2003)

“Na ausência de um estado e suas instituições, o setor privado cresceu de forma expressiva, particularmente nas áreas de comércio, transporte, logística e serviços de infraestrutura, e também na pecuária, agricultura e pesca.” (Relatório do Banco Mundial, 2003)

“Em praticamente todos os indicadores que permitem comparações, os somalis estão melhor sob a anarquia do que estavam sob um governo.” (Peter T. Leeson, 2007)

Eu gostaria de fornecer informações mais abrangentes e mais detalhadas, mas essas informações são escassas. Como já disse, a imprensa simplesmente não sabia o que falar da Somália sem ter um governo dando a versão oficial. Mas posso tentar explicar como funcionavam algumas coisas que, de acordo com o que aprendemos na escola, só podem ser feitas pelo governo:

JUSTIÇA: A Somália têm um sistema legal chamado Xeer, que acredita-se existir há mais de dois mil anos. A estrutura social é baseada em laços familiares e estruturada em clãs, sub-clãs e linhagens. Não há o conceito de impostos, eleições ou de um “poder público”. A justiça criminal considera a propriedade privada inviolável e não visa a “punição”, e sim a restituição ou indenização. Quando um crime é cometido, os chefes do clã determinam que o infrator indenize a vítima de acordo com leis e costumes tradicionais (se o infrator não tiver recursos suficientes, a indenização é cobrada de seus parentes). Casos mais graves são submetidos a um conselho de juízes que sejam reconhecidos como pessoas justas e sábias. Não existe o conceito de prisão na justiça Xeer.

SEGURANÇA: De forma geral, cada clã se responsabilizava pela segurança de seus membros. No mundo dos negócios, havia empresas especializadas, o que aliás não é novidade nenhuma: nos lugares onde há estado, a segurança fornecida por particulares é sempre melhor que a fornecida pelo governo. Aliás, é bom lembrar que nos Estados Unidos, exemplo de lugar com governo, a Suprema Corte já decidiu que a polícia NÃO têm a obrigação de garantir a segurança dos cidadãos, e que sua função é “manter a ordem pública”.

EDUCAÇÃO: Os padrões africanos de educação são péssimos, se comparados ao resto do mundo. Mesmo assim, durante a década de anarquia, o número de escolas na Somália dobrou e o número de universidades aumentou de uma para oito. Infelizmente, como resultado de duas décadas de guerra civil, o analfabetismo entre os adultos era altíssimo na Somália (estimado em 80%).

SAÚDE: Hospitais são bem mais caros que escolas para construir e manter. Mesmo assim, a quantidade de pessoas com acesso a um hospital ou clínica passou de 28% em 1991 para 55% em 2005, segundo um estudo do Banco Mundial.

DINHEIRO: Nos anos anteriores à queda de Barre, a inflação média superava 100% ao ano. Com o fim do governo, a moeda local (Shilling somaliano, ou SoSh) se estabilizou, embora não houvesse nada parecido com um Banco Central ou Ministério da Economia – ou talvez justamente por isso. A desvalorização média do SoSh entre 1991 e 1999 foi de 6% ao ano, o que o fazia ser usado até na vizinha Etiópia. Em 2000, países ocidentais e a ONU criaram em Mogadíscio um “Governo nacional de transição”. Uma das primeiras providências do tal governo foi encomendar dinheiro de uma gráfica no Canadá; como resultado, em menos de um ano a cotação do dólar mais que dobrou. De lá para cá, a moeda da Somália nunca mais foi tão estável quanto foi no período em que não havia governo.

O tal governo de transição passou a se chamar Governo Federal, reconhecido pelos demais países e com cadeira na ONU, tudo bem direitinho de acordo com a cartilha. Na prática, o que o governo fez foi correr para as cidades que se desenvolveram para cobrar impostos e criar empresas estatais. A guerra civil voltou. Os EUA, após o 11 de setembro, passaram a despejar dinheiro em qualquer grupo que diga ser contra o “radicalismo islâmico”, o que inclui várias máfias da Somália. Passados vinte anos desde o reestabelecimento de um governo reconhecido, pode-se dizer que o país melhorou muito pouco. Ainda há partes do país que não reconhecem o governo central, vários grupos buscam apoio de outros países para tomar o poder, e a maior preocupação do governo central parece ser a de criar uma polícia e um exército fortes para garantir seu poder pela força.

Enquanto isso, no resto do mundo, todos respiram aliviados pelo fim do “mau exemplo” do país que mostrou que podia viver sem governo.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

A CONSTITUIÇÃO DO NÃO

Já tivemos oito constituições. Todas prometiam criar o paraíso, mas nunca deu certo. É que todas foram feitas pelos políticos, tendo em vista os interesses deles. A parte das bondades e dos direitos garantidos sempre foi só para disfarçar.

Se algum dia o país decidir tentar mais uma, o mais importante é deixar muito bem explicado aquilo que o governo NÃO pode fazer. E têm que ser muito explícito, senão eles juntam um “princípio” daqui com uma “interpretação” dali e acabam fazendo o que querem, como sempre. Então, só para lançar a idéia, vai aqui uma pequena parte do capítulo mais importante da futura constituição: os NÃOS:

Executivo, Legislativo e Judiciário podem chamar a si mesmos de setores, divisões, departamentos ou coisa parecida. NÃO podem chamar-se de “poderes”, porque o poder pertence à população, não à eles.

Pessoas que façam parte do governo NÃO podem ser chamados de excelentíssimos, meritíssimos, digníssimos ou qualquer outro tratamento especial que não seja o usual “senhor” e “senhora”.

Os funcionários do governo NÃO podem receber qualquer benefício que não esteja disponível para toda a população. Nada de carros oficiais, residências oficiais, planos de saúde privados ou “auxílio-qualquer-coisa”.

O governo NÃO pode aumentar a si mesmo criando novos órgãos, secretarias, departamentos ou qualquer outro nome, nem conceder novos poderes aos que já existem.

Cada órgão do governo deve seguir orçamentos previamente aprovados e NÃO pode, de forma alguma, aumentar suas próprias despesas.

O governo como um todo deve gastar apenas aquilo que arrecada e NÃO pode, não importa o motivo alegado, fazer dívidas a serem pagas pela população.

Órgãos do governo e políticos em geral NÃO podem gastar dinheiro em publicidade, e muito menos para se elogiar ou para parecer bondoso por ter feito aquilo que é sua obrigação.

O governo NÃO pode dar dinheiro público para partidos políticos sob qualquer pretexto, incluindo financiamento de campanhas.

O governo NÃO pode regular, controlar ou tabelar preços de nenhum produto ou serviço, em absolutamente nenhuma hipótese.

O governo NÃO pode fabricar dinheiro do nada. Cada moeda ou cédula fabricada deve corresponder a uma reserva em ouro, prata ou alguma moeda estrangeira de aceitação mundial.

O governo também NÃO pode proibir as pessoas de realizarem negócios usando outras moedas, se quiserem.

Se uma pessoa ou uma empresa preferir gastar seu dinheiro em um produto estrangeiro ao invés de um nacional, o governo NÃO tem nada com isso e NÃO fará nada para impedir ou dificultar essa compra.

Imitando um país mais bem-sucedido que o nosso, o governo NÃO pode limitar ou punir, de forma alguma, a liberdade de expressão, nem criar qualquer forma de censura prévia ou posterior. (para os que têm medo porque acham que palavras “machucam” ou “ofendem”, fica um conselho: cresçam)

O governo NÃO pode obrigar qualquer pessoa ou empresa a fazer parte de associações de classe, conselhos, sindicatos ou coisa parecida, nem impôr qualquer restrição por conta disso.

O governo NÃO pode se intrometer em nenhum negócio ou contrato firmado de forma livre e consciente entre duas partes e que não cause prejuízo a terceiros. Se está bom para ambas as partes, ninguém mais têm que se meter.

O governo NÃO pode dar a ninguém monopólio ou exclusividade de exercer determinada atividade.

Em resumo: o governo NÃO deve e NÃO pode achar que é o dono do país.