MAGNOVALDO SANTOS - EXCRESCÊNCIAS

O SR. BRAGA E D. ANGELINA

Entre 1960 e 1962 estudei no Colégio Agrícola Nilo Peçanha (hoje Instituto Federal do Rio de Janeiro), em Pinheiral, RJ, completando o então chamado Curso Colegial.

Naqueles tempos, Pinheiral era apenas um distrito de Piraí. Fica a 12 quilômetros de Volta Redonda, ao lado da então Estrada de Ferro Central do Brasil. Pinheiral foi elevada à categoria de cidade em 13 de junho de 1995 e hoje tem cerca de 25 mil habitantes.

Tive, naquela época, três dos mais felizes anos de minha mocidade.

Conheci o Sr. Braga e D. Angelina, através de um de seus filhos, colega meu do Colégio, quando tomei conhecimento da história de amor que os envolveu. Na verdade, nunca soube o nome completo do Sr. Braga – mas isso não tem a menor importância.

O Sr. Braga formou-se em Direito no Rio de Janeiro em 1895, seis anos depois da proclamação da República. Estava noivo e buscava um lugar tranquilo para iniciar sua família, já que considerava o Rio de Janeiro uma cidade muito agitada para tal – imagino o que pensaria do Rio nos dias de hoje, onde os bandidos e traficantes trabalham à luz do dia protegidos pelos seus capachos, os ministros de nossos tribunais superiores. Como seu pai era próximo dos militares republicanos, conseguiu que fosse nomeado para o Cartório recém criado em uma cidadezinha próxima a Pinheiral no longínquo ano de 1900.

Chegando ao local, após uma cansativa viagem, tratou de tirar uma soneca para se recompor, mas uma forte dor de cabeça insistia em não deixar o jovem advogado relaxar. Foi então buscar algum analgésico na única farmácia da região, que pertencia ao pai de Angelina, uma jovenzinha de 17 anos, que estava noiva, de casamento marcado para dali a um mes, com convites distribuidos e festa contratada.

Na hora em que o jovem Braga chegou, o pai de Angelina havia saído da farmácia por alguma razão, e deixou a filha atendendo ao balcão.

Nosso Romeu ficou olhando para a sua Julieta e não conseguiu dizer nada. Angelina ficou olhando para o seu jovem Romeu e também não falou nada. Seus olhares se encontraram e, em um instante, caminharam juntos até um longínquo tempo, quem sabe, de uma vida passada. E assim, mudos, ficaram se olhando por um tempo que pareceu eterno, mas que não durou mais que alguns minutos.
A dor de cabeça desapareceu. Braga não se lembrou mais do que veio comprar, balbuciou alguma coisa sem nexo e foi embora, errante por um caminho em que seus passos e seus pensamentos apenas caminhavam.

O casamento de Angelina foi cancelado na semana seguinte. O noivado de Braga foi posto nas calendas gregas para alguma das encarnações futuras.

Imagine vossuncê o escândalo que varreu o lugar e o que eles tiveram que enfrentar nas suas famílias.

Os dois se casaram dois meses depois.

Ao casamento os pais e irmãos, dele e dela, não compareceram. As únicas pessoas que participaram da cerimônia, além do padre e do juiz de paz, foram dois casais de amigos do Rio de Janeiro, que serviram como testemunhas.

Quando conheci o Sr. Braga e a D. Angelina em 1961 eles moravam em um grande e antigo casarão no meio de uma quadra. Todos os dias os dois, já idosos, davam uma volta em torno do quarteirão. Era visível o carinho de um pelo outro. A idade avançada já mostrava seus estragos. Andavam sempre devagarinho, de mãos dadas, o Sr. Braga apoiado em uma bengala e D. Angelina apoiada nele.

Eram então extremamente queridos e respeitados na cidadezinha, depois de muitos anos de isolamento. Tiveram 5 filhos, o último dos quais o meu colega.
Nunca se teve conhecimento de que os dois algum dia tiveram uma leve discussão sequer. O amor e a consideração de um pelo outro eram patentes nos olhares carinhosos e nos gestos dos dois velhos. A casa deles, sempre com flores, era um refúgio de paz.

Um sábado de madrugada, no ano de 1962, meu último ano naquela região, o Sr. Braga encantou-se enquanto dormia. Não deve ter sentido nenhuma dor quando deixou este mundo.

A partir desse dia D. Angelina não mais saiu de casa para andar em volta do quarteirão.

Exatamente no sábado seguinte, na mesma hora da madrugada, o Sr. Braga lá estava esperando por ela, e D. Angelina nem aguardou o acordar de seu sono para encontrar-se com ele.

MAGNOVALDO SANTOS - EXCRESCÊNCIAS

26 DE MAIO

O ano de 1969 foi marcado por três fatos de repercussão mundial.

Primeiro, em abril mudei-me para Vitória, Espírito Santo, contratado por uma pequena empresa de consultoria especializada em análise e cálculo de cargas de navios no porto de Tubarão – afinal, sou formado em Engenharia Naval, e isso juntava meu diploma com o trabalho.

Segundo, em 26 de maio, uma segunda-feira, um evento histórico eletrizou o planeta de norte a sul e que viria a impactar o futuro do Brasil – ou, pelo menos, o meu: nasceu minha primeira filha Cristina.

Quase dois meses depois, em 20 de julho, houve um terceiro acontecimento, este de importância secundária quando comparado com os anteriores: Neil Armstrong foi o primeiro homem a pisar na Lua. Esse fato foi divulgado em primeira mão pela Rádio Boa Esperança de São João dos Patos, no Maranhão (ZYH-900, 1450 kHz), e a partir daí ficou então conhecido no mundo inteiro.

O nascimento do primeiro filho, em si mesmo, já é algo inesquecível. Como as coisas terminaram bem, no meu caso, há que se reconhecer que a sacudida ajuda de um anônimo e desmantelado bêbado foi extremamente útil.

Explico.

Nunca havia estado em Vitória. Com pouco tempo de casado, vivíamos em São Paulo, e o inesperado e atraente convite para trabalhar em Vitória decidiu o rumo que minha vida iria tomar. Para lá fomos, primeiro eu sozinho, para assumir a nova função e procurar onde morar. Um mês depois, casa encontrada e alugada, fui buscar minha mulher, que estava em adiantado estado de gravidez e combinamos que, quando chegasse perto da hora, dali a pouco mais de um mês, ela iria para São Paulo, onde toda a família estavae as coisas já estavam arranjadas. A viagem de São Paulo a Vitória foi feita um Fusca, carregado de badulaques recebidos por ocasião do casamento e de mais alguns parangolangos para o início da nova vida. A viagem durou mais de quinze horas. A BR-101, estrada que leva a Vitória, não estava totalmente asfaltada no trecho capixaba.

Acontece que, tomando posse da enorme casa, já mobiliada pelo proprietário, houve um excesso de esforços em empurrar móveis para cima e para baixo, fazendo com que a hora fatal se adiantasse. E, em plena madrugada da segunda-feira, 26 de maio, o trabalho de parto começou, bem antes do combinado com a Natureza.

E agora, como se faz para ter um filho em uma cidade totalmente desconhecida, e sem saber de nenhum médico ou maternidade?

Bem, a Mãe Natureza não vê o tempo pela folhinha da Pirelli e nem pelo meu relógio, que marcava então 5 horas da manhã.

E minha mulher começou a gemer.

Desesperado, busquei na lista telefônica onde havia uma maternidade em Vitória. Liguei para lá para pedir o endereço e instruções de como chegar a ela. Para botar mais pimenta no meu vatapá, atendeu-me uma moça gaga. Expliquei-lhe onde morava e ela, atenciosamente e com toda a calma para serenar minha afobação, me passou as instruções para encontrar a maternidade, claro que com uma certa dificuldade devido ao seu hábito de ficar repetindo as sílabas.

– “O-o-o-o se-se-se-nhor vai se-se-se-guir pe-pe-pela sua ru-ru-rua até o arma-ma-ma-zém do do do itali-li-ano e lo-lo-logo de-de-pois vi-vi-vi-virar à à es-es-es-querda na-na-na lo-lo-loja de tin-tin-tintas…” e, à vista de meu nervosismo, gaguejou mais ainda, mas deu o recado.

E minha mulher gemendo.

Entramos no Fusca, busquei seguir as instruções da amável gaguinha e tentar lembrar-me do caminho. Até que cheguei em uma encruzilhada. E agora, direita ou esquerda?

Nisso, vi um cambaleante bêbado ali pertinho, que procurava alguma maneira de se equilibrar nas pernas enquanto tentava dar alguns passos. Quem sabe, sairia alguma informação útil daquele pudim-de-cachaça.

E minha mulher gemendo.

– Senhor, por favor, sabe onde fica a Maternidade São José?

– “Vaternidade Xão Jujé?” E, após pensar um pouco, afirmou: “Fica lá no xentro da xidade.”

Lembrei-me então, por sorte, que em minha procura na lista telefônica notei que havia um Hospital São José, que realmente ficava no centro da cidade, e também uma Maternidade São José, no bairro, que era o objeto de meu destino.

– Não, meu amigo, não é o hospital que procuro, mas a maternidade, lá onde nascem bebês.

– “Ah, xei que tem um monte de bebê ali, naquele cajarão amarero.”

Mal deu tempo de agradecer ao meu arretado salvador. Engatei uma quarta no Fusca bala e fui correndo para o casarão amarelo.

Minha filha nasceu doze minutos depois.

Só que não deu tempo de vê-la ainda. A enfermeira me avisou que eu precisava providenciar fraldas com urgência. Fui então a uma farmácia que, obviamente, ainda estava fechada. Esperei até as 8 horas, quando ela foi aberta.

– Moça, minha filha acaba de nascer e eu preciso de fraldas.

– Quantas?

– Acho que umas três são suficientes.

Ela arregalou os olhos e me olhou de cima a baixo. Sua expressão mostrava que queria dizer-me algo, mas meu visível aperreio fez com que desistisse. E, enquanto buscava as fraldas, perguntou:

– Deve ser o seu primeiro filho, né?

– Sim.

– Veja, o menor pacote de fraldas tem 6 unidades (as fraldas não eram descartáveis naquele tempo).

– Ótimo, assim terei fraldas por um bom tempo.

A moça não me disse nada. Apenas deu um sorrisinho debochado.

Quando cheguei à maternidade a enfermeira me mandou voltar e comprar mais fraldas. Bem mais! Já estávamos devendo fraldas para as mães vizinhas.

Isso foi meu primeiro aprendizado como pai: bebês sujam fraldas quase tão rapidamente quanto os políticos brasileiros metem a mão no dinheiro público.

Minha filha hoje é médica neonatologista, e às vezes me pergunto se sua vocação profissional teve algo a ver com tudo isso!

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CAMAÇARI NA SEGUNDA-FEIRA

A maneira de trabalhar em Camaçari, na Bahia, era, digamos assim, sui generis – pelo menos naquela época, há mais de trinta anos atrás. Não sei como é hoje.

Em 1991, trabalhando em uma metalúrgica em São Paulo, obrigações profissionais me levaram a visitar uma empresa de auto peças localizada no Polo Industrial de Camaçari e que consumia nossos produtos.

Reunião confirmada por fax (vosmecê se lembra dele?), horário agendado e confirmado para a próxima segunda-feira com o Diretor Técnico às 9 horas. Providenciei então a passagem aérea até Salvador.

Para não haver problemas com eventuais atrasos, algo detestável por este cabra desmantelado que fuxica com vosmecê, viajei no domingo para Salvador. O trajeto de uma hora da capital baiana até Camaçari foi feito no carro de nosso Representante Comercial na Bahia, um simpático e arretado mulato que, para não perder nenhuma hora sequer do carnaval baiano, reservava todos anos, por uma semana inteira, um quarto em um hotel que ficava ao lado da Praça Castro Alves.

Chegamos cerca de 15 minutos antes das 9 horas. Claro, o senhor Diretor Técnico ainda não havia chegado. Sua secretária tampouco. Bem, o negócio era esperar.

O relógio bateu 9:30 e nada de ninguém. Cheguei a pensar que havia me enganado e ainda era domingo. E então perguntei a um rapaz que passava:

– Diz aí, meu jovem, a que horas vocês começam a trabalhar aqui no escritório?

– Normalmente às 8:00, que é quando chega o ônibus com a gente de Salvador.

– E quando chega a primeira gente que não usa ônibus?

– Isso depende do dia. Hoje, por exemplo, é segunda-feira e é dia do pagamento quinzenal.

– E o que tem o pagamento quinzenal que ver com a chegada das pessoas?

– O que se assucede é que, como Camaçari ainda não tem uma boa estrutura bancária e de comércio, a turma do escritório é dispensada do trabalho nos dias de pagamento para fazer as compras e ir aos bancos em Salvador. Eu acho que ninguém vai aparecer hoje aqui, e vocês estão perdendo tempo esperando. Vocês são paulistas, não? Sugiro que vão passear e conhecer nossa linda Salvador, se ainda não conhecem, e voltarem amanhã!

Bem, a realidade é dura mas é a realidade, e o nosso Representante Comercial me levou então  para visitar o Pelourinho, o farol da Barra, Ondina, o Elevador Lacerda e um bom restaurante que servia uma peixada deliciosa, protocolarmente acompanhada de acarajés e uma cervejinha baiana gelada de estalar os dentes.

No dia seguinte, terça-feira, recomeçamos nossas atividades. Às 9 horas chegamos à empresa. O Diretor Técnico nos atendeu por volta das 11 horas, conversou conosco como se nada tivesse acontecido, acertamos os pontos que motivaram a reunião e, transbordando de gentilezas, nos levou a degustar uma maravilhosa panelada de camarões feita pelas mãos divinas de uma tiazona sacudida em uma bodega ali pertinho. Vixe, que coisa gostosa!

A Bahia é um lugar maravilhoso!

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CHEVROLET VERANEIO

Chevrolet Veraneio, veículo top da General Motors do Brasil

A perua Veraneio, fabricada pela General Motors entre 1964 e 1994, era considerada o modelo “top” da montadora.

Pensado para grandes famílias (e bem abonadas, é claro), tinha dois bancos inteiriços e um porta-malas bem amplo, além de uma suspensão firme mas bem macia. Não demorou muito para que aquela SUV marcasse presença também como ambulância e viaturas oficiais ou policiais. Quanto gasta de gasolina? Ora, isso é assunto e preocupação de pobres, que só podem comprar Fuscas e Gordinis. O preço de uma Veraneio era muitíssimo alto e inviabilizava tal sonho de consumo da classe média – da ignara mundiça, então, nem se fala!

Em 1973, com a construção da nova fábrica da Detroit Diesel no terreno da G.M. em São José dos Campos, SP, estava este fuxicador fuxiquento envolvido no projeto da parte hidráulica daquela unidade fabril. Isso incluía o projeto e aquisição de uma série de bombas hidráulicas para as redes de água industrial e potável, óleos, água de resfriamento, caldeiras, etc.

Um dos fornecedores das bombas, cuja fábrica ficava então nas imediações do Rio de Janeiro, estava atrasado na entrega de quatro enormes unidades, o que fazia com que todo o projeto hidráulico se atrasasse. Além disso, outras quatro, já entregues, apresentaram problemas no funcionamento e precisaram ser retrabalhadas.

O chefe do projeto, o sr. J.M., determinou que eu fosse ao Rio tomar pé da situação do fornecimento, pressionando seriamente o Fabricante nessas duas questões: prazo e qualidade. Coincidentemente o diretor geral daquela fábrica era um grande amigo e havia sido colega de faculdade do sr. J.M., que, para dar mais moral às minhas perorações esculhambatórias, me municiou com um bilhete bem xinguento e arretado para entregar ao seu ex-colega.

Como ir de São José dos Campos ao Rio de Janeiro era muito mais prático, rápido e conveniente ir de carro do que ir até São Paulo para tomar um avião para o Rio, foi-me disponibilizada uma Veraneio de luxo, topo de linha, estralando de nova (marcava somente poucos quilômetros no odômetro), o que também evitaria que eu ficasse dependente de taxis naquela linda e maravilhosa cidade, ainda não tomada pelos traficantes que atualmente mandam no governo, no STF e nas demais colendas e egrégias cortes de justiça no Brasil.

Eis-me, portanto, todo pavoneante chegando à reunião com o Fornecedor, pilotando o supra sumo, mais caro e cobiçado veículo da G.M.

Dominei a reunião. Após a tradicional introdução sobre a harmonia dissonante que é a base da música minimalista de Philip Glass, entreguei o bilhete do sr. J.M. ao seu amigo, com o peito cheio de empáfia. Descasquei o Fornecedor. Deixei claro o que pensávamos da qualidade de seus produtos e do cumprimento dos prazos de entrega. Afirmei que deveriam por mais tecnologia e cuidado em suas bombas, tal como fazíamos com os nossos veículos.

Eita ferro! Lavei a alma de maneira bem lavada, e tiveram que engolir tudo – afinal, eu representava a General Motors, o grande e poderoso Cliente, e estava prenhe de razão no que alegava.

Terminada a arretada sessão, fomos almoçar. Os três representantes do Fabricante manifestaram o desejo de irem comigo na Veraneio – o veículo, versão top recém-lançada, era o assunto do momento. Rasguei-me em elogios ao carrão.

E lá fomos. Depois do almoço pedi apenas uns cinco minutos para abastecer o veículo em um posto perto do restaurante, já que pretendia regressar a São José em seguida.

A Veraneio foi devidamente abastecida, mas… deu um vexame arretado. O pedal do acelerador foi até o fundo e lá ficou. Não retornava. O frentista, vendo o desmantelo, veio em meu socorro: pegou um alicate e um pedaço de arame, abriu o capô e amarrou o cabo do acelerador a uma alavanquinha do carburador. Pronto. Tudo voltou a funcionar às mil maravilhas.

Quero dizer, às mil maravilhas até ele fazer um comentário bem desabonador sobre tão caro produto:

– Não se aperreie não, dotô, isso acontece com muitas das Veraneios que vêm abastecer aqui. O pino de ligação que a G.M. põe no cabo do acelerador desse carro é uma porcaria, vive quebrando, mas o problema pode ser facilmente resolvido com um arame e um alicate. É como se a G.M. gastasse um dinheirão num jantar com lagosta e champanhe e economizasse o palito e a azeitona. Aconselho o senhor a ter esses dois componentes no seu porta-luvas para não ficar na estrada.

O diretor da fábrica deu uma risadinha debochada, com mais ironia na fala do que banha na barrigona do ministro Clávio Bino, e comentou:

– Magnovaldo, vamos retomar novamente a discussão sobre a qualidade de nossos produtos?

E, ato contínuo, escreveu um bilhete para ser entregue ao sr. J.M.

Minha viagem de volta teve um gosto de cabo de guarda-chuva molhado.

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CORONEL BÊBADO

Um nome vale mais que uma carteirinha. Ou não?

O mais antigo nome conhecido de Coronel ficou famoso na Espanha (Andaluzia) por causa de Doña Maria Coronel, que viveu entre 1334 e 1411. Seu pai perdeu a cabeça literalmente, acusado de sublevação, sendo decapitado por ordem do Rei Peter I, “O Cruel”, que reinou entre 1350 a 1369. Quatro anos depois seu marido teve a mesma sorte. Bonita, rica e altiva que era, resistiu bravamente aos avanços do Rei, refugiando-se no Convento de Santa Clara, onde as madres clarissas a esconderam. Para se ter uma idéia da brabeza de Doña Maria Coronel, ela, de saco cheio das insistentes cantadas reais, um dia desfigurou a cara do rei quando jogou nela azeite fervente, quando ele descobriu onde estava escondida e avançou doidão sobre ela. Em 1373, após a morte de Peter I, e retomar suas posses, ela fundou o Convento de Santa Inés em Sevilha, na Espanha, na mesma rua do Convento Santa Clara, que abriga freiras da ordem de Santa Clara até os dias de hoje.

A rua dos dois conventos, em Sevilha, se chama Calle Doña Maria Coronel.

Houve também, antigamente, Don Hernando de los Rios Coronel, figura importante na Época de Ouro da conquista espanhola das Filipinas, entre 1588 e 1590.

No mundo atual, há o Dr. Emmanuel Coronel, renomado gastroenterologista, com pós-doutorado na Beth Israel Deaconess Medical Center, atualmente exercendo suas atividades no Texas, Estados Unidos.

Há também o jogador de futebol brasileiro Carlos Coronel, nascido em Corumbá, MS, goleiro do New York Red Bulls.

Ou o Dr. Emerson Coronel, grande especialista em diabetes em Mariland. E que tal Pedro Coronel, reputado consultor de empresas na Suiça, Master em Engenharia Elétrica pela École Polytechnique Fédérale de Lausanne e PhD também em Engenharia Elétrica pela EHT em Zurich?

Ou, em um caso mais eclético e sacudido, el señor Ignácio Coronel Villareal, mexicano nascido em Veracruz em 1954, também conhecido como “Nacho Coronel”, tendo sido responsável por contrabandear toneladas de um inocente e sacudido pozinho branco em navios pesqueiros da Colombia para o México e daí para o Texas e Arizona. Era também conhecido como “O Rei dos Cristais”, por seu poderoso domínio no contrabando de metanfetamina. Atualmente, associado ao cramunhão Asmodeu, está traficando pozinhos e cristais lá nas profundas do inferno.

No Brasil há a história do arretado engenheiro e senador baiano Angelo Coronel (Angelo Mario Coronel de Azevedo Martins), solidamente estável e firme em suas convicções políticas, sendo filiado aos partidos MDB, 1989 – 1992; PSDB, 1992 – 1996; PL, 1997 – 2006; PR, 2007 – 2009; PP, 2009 – 2011 e PSD desde 2011. Bastante consistente com seu idealismo político, como se pode depreender dessas informações sobre sua carreira política.

Tudo isso é contado para falar sobre o assucedido com um jardineiro, que cortava rotineiramente a grama de minha casa em São José dos Campos. Chamava-se Antonio Coronel, e era tão simplório quanto seu pai.

Antonio Coronel sabidamente não era oriundo de nenhuma das famílias Coronel citadas acima, ou mesmo de alguma outra de menor extração. Seu pai, uma pessoa simples, cansado de não ser importante, resolveu que pelo menos o seu filho seria. Segundo a história contada a este fuxicador fuxiquento que aporrinha vosmecê com essas patranhas sem valor algum, tentou por em seu filho o nome de “General”, mas o oficial do cartório se recusou, alegando que “General” era uma patente militar e não um nome. Então nosso personagem descobriu que “Coronel” era um termo já consagrado como sobrenome e meteu bala:

– Já que não pode ser General que seja pelo menos Coronel.

E assim foi feito. Havia um outro sobrenome, da família, é claro, mas isso não importava. O que pegou mesmo foi que só chamavam seu filho de Coronel.

Entre 1964 e 1985 o fato de ser militar inspirava um arretado respeito na galera brasileira. No início de 1974, em pleno regime, ainda sob a presidência de Garrastazu Medici, um general da linha dura, o Antonio Coronel completou seus quarenta anos de idade e resolveu comemorá-los com toda a pompa junto a seus amigos cachaceiros. Encheu tanto a cara que não conseguia mais dirigir o carro. Dois dos amigos, pouco menos encachaçados, tiveram que levá-lo de volta para sua casa.

No caminho, o veículo foi parado por uma patrulha da Polícia Militar. O cheiro da mardita impregnava todo o interior do carro. Os soldados, de pronto, apreenderam a carteira do motorista, junto com os documentos do carro. E queriam também os documentos de identidade de todos.

Só que havia um problema: o Coronel, encolhido no banco traseiro, roncava mais que um porco, curtindo a bebedeira. Os amigos disseram que seria difícil acordá-lo e fazê-lo mostrar seus documentos, que deveriam estar em algum dos bolsos da roupa. O cabo que comandava a tropa não quis saber de nenhuma desculpa:

– Acorde-o de qualquer maneira.

Então o que estava dirigindo candidamente alegou:

– Xi, rapaz, quando o Coronel acorda ele tem um mau humor do cão. Acho melhor não tentar.

E falou de maneira tão espontânea que o cabo recuou:

– Coronel? Bem, deixe o coronel em paz. Toma aqui seus documentos e se manda daqui bem ligeirinho. Não digam a ninguém que vimos vocês. Só tratem de não arrumar confusão no caminho!

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GETÚLIO VARGAS

Por acaso vossuncê é chegado em política?

Bem, de uma maneira ou de outra, a política está em toda a parte. Até as religiões estão impregnadas de política. Dos tribunais, que deveriam ser os templos da justiça, nem se fala!

Minha iniciação à política aconteceu em 1952 (ou foi em 1953?), por ocasião da cerimônia de inauguração de alguma coisa ligada à Estrada de Ferro Noroeste do Brasil em Corumbá, Mato Grosso do Sul, cidade onde nasci.

Foi quando, pela primeira vez, vi em pessoa um Presidente do Brasil: Getúlio Vargas. Ao lado dele, como de costume, a figura do “Anjo Negro”, Gregório Fortunato, seu guarda-costas de estimação. Perto dele, Getúlio era um baixote. Todo vestido de terno de linho branco (o calor em Corumbá é arretado), andava na frente de um magote de seguranças e homens bem vestidos ou fardados.

Minha madrasta já dizia, desde priscas eras, que tinha horror e nojo a três tipos de animais: os sapos, as aranhas e os políticos. Eu não entendia nada, já que tinha uma certa simpatia por sapos e aranhas, mas nada sabia de políticos.

Foi minha primeira decepção quando vi Getúlio Vargas: como moleque, imaginava que o homem mais poderoso do país deveria ser, também, o mais sacudido, parrudo, alto e musculoso. E Getúlio só era o mais barrigudo!

Perguntei a meu pai quem eram aqueles homens que caminhavam ao lado e atrás do Getúlio, ao que ele me informou que eram guarda-costas ou puxa-sacos.

E o que eram puxa-sacos?

Ah, esses são os políticos, ponderou com arretada sabedoria o sr. Miguel Bezerra, explicando que políticos são gente que vive de política.

A coisa aí complicou, já que minha curiosidade infantil queria saber o que é política.

O velho pensou um pouco e fulminou:

– Meu filho, imagine um chiqueiro de porcos. Política é uma espécie de chiqueiro: é uma criação de porcos sujos que só estão interessados na lavagem, e se você entrar nele – ou nela – não vai sair sem levar, no mínimo, o fedor.

Manda a sabedoria popular que os religiosos têm alma pura e só desejam o bem e a salvação dos homens. Mas é igualmente certo que vários deles fizeram o mal e pecaram contra sua própria condição pastoral.

Também a sabedoria popular contempla os políticos como uma classe de corruptos e somente interessados em enriquecer às custas de nossos impostos. Mas é igualmente certo que alguns deles são gente honesta, trabalhadora e que lutam para melhorar as condições de vida de seus eleitores. São uma exceção, penso eu.

Parte do desmantelo que penso da grande maioria dos políticos vem das palavras de meu pai naquela ocasião muito especial.

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AVOID

A General Motors, empresa para a qual trabalhei entre 1971 e 1979, era muito estrita em exigir de seus funcionários que todas as comunicações fossem feitas por escrito, norma que evitava discussões inúteis sobre o que se havia dito ou combinado entre eles.

Os assuntos mais relevantes, ou que envolvessem mais de dois funcionários, deveriam ser tratados por memorandos. Já os mais simples, sem maiores implicações, deveriam ser tratados por um formulário de cerca de 3 por 5 polegadas (7,5 por 12,5 centimetros). No topo desses pequenos formulários estava determinado “Avoid Verbal Orders”, que significa “Evite Ordens Verbais”. Dessa maneira, a tradição da empresa era de chamar ditos formulários de “Avoid”, e assim era feito por todos, mesmo pelos que não sabiam o significado da palavra inglesa.

Qualquer coisa que acontecesse, a solução era: “mande um Avoid pra mim”. Os blocos de “avoids” estavam disponíveis para todo mundo.

Um belo dia perdido nas brumas do ano de 1973 fui até a matriz em São Caetano do Sul para consultar meus colegas sobre a instalação de determinados equipamentos, no caso dinamômetros, que seriam instalados na fábrica de São José dos Campos. Após umas duas horas de esclarecimentos e uma visita às instalações existentes em São Caetano, meus amáveis colegas me brindaram com alguns desenhos daquelas instalações, o que ajudaria muito no nosso projeto.

E aí estava eu saindo da fábrica com ditos desenhos nas mãos quando um guarda da portaria me interpelou:

– Quem é o senhor e que desenhos são esses que o senhor está levando?

– Sou engenheiro da fábrica de São José – e aqui está meu crachá – e esses são desenhos de instalação dos dinamômetros que vamos instalar na nova fábrica.

– Não sei o que são dinamômetros, mas o senhor tem autorização para levar desenhos daqui de São Caetano?

– Sim, meu colega daqui foi quem me deu.

– Também não sei quem é o seu colega daqui, mas o senhor precisa ter um “avoid”.

– Perfeitamente. E de quem para quem?

– Isso para mim não me importa. O que preciso é de um “avoid”.

Voltei até a entrada do departamento de Engenharia, peguei um bloco de “avoids” e escrevi:

“O Sr. Magnovaldo está autorizado a levar desenhos de dinamômetros para São José.”

E rabisquei uma assinatura embaixo.

Mostrei-o ao guarda. Imediatamente fui liberado, após efusivos agradecimentos por ter atendido ao seu pedido.

MAGNOVALDO SANTOS - EXCRESCÊNCIAS

MESTRE ANTONIO

No final de 1969, trabalhava eu no porto de Tubarão em Vitória, ES, responsável pelo cálculo de carga que era embarcada nos navios que transportavam minério de ferro da Companhia Vale do Rio Doce para diversos países do mundo.

O carregamento dos navios era feito por gigantescos equipamentos que recebiam o minério através de esteiras. A capacidade de tais equipamentos era de cerca de 4.000 toneladas por hora, o que equivale a cerca de 67 toneladas por minuto. Isso significa que uma bobeada do operador do carregador, por exemplo de 3 minutos, significava uma carga de 200 toneladas a mais ou a menos no navio.

Em um belo dia de um tempo já distante, o “Mestre de Carregamento”, o funcionário da Vale responsável pelas operações de carregamento no cais, deu uma escorregada de 4 minutos no tempo de carregamento, significando que meteu mais de 250 toneladas de minério adicionais no porão do navio. O comandante fez uma reclamação oficial, já que 250 toneladas em um dos porões do navio poriam uma carga extra pontual sobre a estrutura da embarcação. Houve a necessidade de se chamar um engenheiro da companhia proprietária do navio para atestar, após os devidos cálculos, que o navio ainda estaria seguro para navegar com essa carga adicional em um dos porões. Isso demandou uma espera adicional de seis horas para a partida do navio, e a companhia proprietária se recusou a pagar essa permanência adicional da embarcação no porto, custo esse nada desprezível.

No dia seguinte ao acontecido mandaram chamar o Mestre Antonio para que se explicasse.

E aí, cabeça baixa, chegou o Mestre Antonio à sala onde estavam reunidos os principais manda-chuvas do porto de Tubarão. Sentia-se como um condenado à morte por decapitação ao ter a visão da guilhotina, já imaginando a desagradável sensação de ter sua cabeça separada do tronco. Foi esculhambado desde o momento em que entrou no recinto.

– Você é um incompetente. Se não fosse tão fácil contratar e treinar um novo Mestre de Carregamento você estaria no olho da rua neste exato momento. E, ademais, blá blá blá…, disse seu chefe imediato.

– São essas ações idiotas que fazem a Vale ser criticada pelas empresas estrangeiras, blá blá blá…, adicionou o Superintendente de Operações.

– É isso mesmo. E além de tudo você foi suficientemente treinado para fazer seu trabalho correto e, depois disso, em uma ação burra como essa, o nome da Companhia fica marcado aí fora como o de um bando de incompetentes, blá blá bla…, emendou o Gerente de Operações.

– E não se pode dizer que o Departamento de Relações Humanas tem alguma culpa nesse lamentável incidente, já que foram gastos muitos recursos financeiros em treinar todos os funcionários que trabalham no cais, junto aos navios, inclusive financiando cursos de inglês, blá blá blá…, completou o Gerente de Recursos Humanos.

Após todas essas esculhambosas detratações o pobre do Mestre Antonio teve, enfim, a oportunidade de se defender.

– Posso falar?

– Sim, claro, permitiu seu chefe imediato.

– Quem estava na operação no dia de ontem não era eu, mas o Mestre Ronaldo. Querem que o chame?

Retumbante e desmantelado silêncio na sala.

E ai o Diretor de Operações disse:

– Veja, não é necessário. Por favor, transmita a ele todas as palavras que você ouviu, tá bem?

E o Mestre Antonio voltou aos seus afazeres normais.

MAGNOVALDO SANTOS - EXCRESCÊNCIAS

AS GARRAFAS DE VINHO

Dizem que o vinho é um néctar dos deuses.

Pessoalmente também acho. Um bom vinho liberta o espírito, faz bem à saúde e não deixa dúvidas de que há muita coisa boa neste mundo. Desde os tempos bíblicos o vinho é elevado à categoria das coisas divinas.

Claro, não se pode exagerar, como quase tudo neste mundo.

Uma garrafa do vinho Romanée Conti, por exemplo, é vendido aqui nos Estados Unidos por 35 mil dólares (na adega), podendo custar 40 mil dólares em um restaurante fino. Coisa que só um bom corrupto que tem um Presidente nas mãos pode encarar.

Também não se necessita tomar um vinho de garrafão feito na Bolívia para saber quanto dói uma ressaca.

Existem bons vinhos no Brasil, claro.

Na festa dos funcionários da empresa metalúrgica para a qual trabalhava em 1988 foi montada uma cesta de Natal que continha uma garrafa de um bom vinho de Bento Gonçalves (não me recordo a marca), um panetone, uma caixa com um quilo de chocolates, pacotes de amêndoas, figos secos, queijos e outros paranauês típicos das festas natalinas. Para baratear os custos, cada um desses componentes foi comprado pela própria empresa, sendo as cestas montadas pelos funcionários do Departamento de Recursos Humanos.

Os vinhos – em torno de 500 garrafas – foram guardados na Ferramentaria, uma área cercada que oferecia relativa proteção contra investidas dos amigos do alheio, para serem postas junto com os outros componentes da cesta natalina três dias depois.

Mas bem o sabe vossuncê que tem experiência de vida, tentação é uma arma do desejo, e Satanás sempre dá um jeito de se infiltrar no espírito dos mais fracos.

Dois de nossos colegas Operários chegaram à conclusão que umas cinco ou seis garrafas de vinho em um lote de 500 certamente passariam despercebidas se viajassem por caminhos incógnitos. Em outras palavras, se fossem surrupiadas.

E bolaram um plano.

Como trabalhavam no segundo turno ficaram um pouco mais tarde após a partida dos demais colegas, e um deles pulou a divisória cercada da Ferramentaria para socializar as garrafas, passá-las por cima da cerca para o outro, saissem furtivamente pelo fundo da fábrica, sem iluminação adequada, e ganhassem o mundo com três garrafas cada um. E o plano teve início.

O que aconteceu bem acontecido é que nosso arretado ladrão de vinho que ficou dentro do cercado para transferir as garrafas ao que estava de fora, não resistiu à tentação e resolveu abrir uma garrafa para provar a bebida dos deuses. Passava uma garrafa por cima da cerca e tomava um bom gole de vinho. Gostou! Passou a segunda, tomou mais um gole, passou a quarta e tomou um gole da terceira junto com mais outro da primeira, abriu a quinta e tomou mais uma talagada da segunda, e em cada uma delas um bom e arretado arroto para celebrar a vitória.
Como estava de estômago vazio não chegou à sexta garrafa.

O colega do lado de fora percebeu que nosso bebum não tinha condições de pular a cerca de volta. Catou as 3 ou 4 que tinha nas mãos e se mandou. O bebum ficou tonto, caiu no chão e lá mesmo ficou roncando.

Como não tinha aparecido em casa no horário habitual, sua mulher telefonou para a Portaria da fábrica toda nervosa, o que determinou que os guardas fizessem uma busca na fábrica e flagrassem nosso inexperiente tomador de vinho totalmente inerme estendido no chão, eroticamente sonhando com a Benedita da Silva.

Fico me questionando quantas lapadas o ex-condenado tomou de Romanée-Conti antes de apagar e sonhar com a Maria das Candongas.

MAGNOVALDO SANTOS - EXCRESCÊNCIAS

EL REY DON JUAN

Vossuncê conhece algum índio bem grosso e sem muitos cuidados com o que faz com as mãos?

Nos meus anos de trabalho para a G.M. em São José dos Campos conheci o protótipo desse cidadão. Chamava-se Juan M., espanhol de nascimento, mas brasileiro de coração e passaporte. Era o Supervisor da estação de tratamento de efluentes da fábrica, e por isso era também conhecido como “Don Juan, El Rey de la Mierda”.

Três características eram bem intrínsecas ao nosso Rei: quatro bufas fedorentas a cada turno de trabalho, não mais que duas horas sem dar uma levantada na perna e proporcionar uma coçadinha reconfortante no orifício rugoso e, quando passava muito tempo sentado, tinha o refinado costume de enfiar aquela mão cheia de dedos pela parte frontal da calça e reorganizar a posição geométrica do receptáculo dos ovos. Muitas vezes, após essa piedosa atividade, levava a mão ao nariz para, através do apurado olfato, assegurar-se que estava manuseando o seu próprio saco e não o de outrem. Tenho a impressão de que essas delicadas atividades já faziam parte do DNA del Rey Don Juan.

O que se assucedeu bem assucedido é que um belo dia Juan foi convocado pela Justiça do Trabalho para, juntamente com um Advogado, representar a G.M. em um processo trabalhista no qual um seu ex-funcionário, demitido por incompetência e safadezas profissionais, estava processando a empresa para ver se descolava alguma grana – comportamento absolutamente normal no Brasil, onde as Leis Trabalhistas são apropriadas para proteger essa raça de gente – ou, pelo menos, era assim no meu tempo tupiniquense.

E eis que senão quando ali estava o desassombrado Juan sentado na primeira fila da sala de audiências, até então só ouvindo os argumentos do ex-funcionário e dos dois Advogados. A Juiza do caso, uma senhora de cabelos já grisalhos, dirigiu-se ao Juan, pedindo que se levantasse e se dispusesse a responder algumas perguntas, já que era o Supervisor que havia demitido o tal ex-funcionário.

Deu merda!

Juan levantou-se e a primeira coisa que fez foi meter a mãozorra por dentro da calça e providenciar a redistribuição física de suas partes pudendas no exíguo espaço dentro da cueca, bem na frente da Doutora Juiza. A Juiza, totalmente emputiferada, mandou que ele fosse retirado imediatamente da sala de audiência por desrespeito, encerrou o processo e sentenciou a G.M. a pagar a quantia estipulada pelo ex-funcionário.

Os agentes da Lei presentes à audiência cumpriram imediatamente a decisão judicial, mal disfarçando uma risadinha sem-vergonha.

Não sei se a Empresa recorreu da decisão, pois mudei de emprego logo depois.