MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

DISCRIMINAÇÃO

Considere as seguintes afirmações:

– Uma empresa tem o direito de contratar os funcionários que quiser.
– Uma empresa tem o direito de contratar os funcionários que quiser, desde que sejam negros.
– Uma empresa tem o direito de contratar os funcionários que quiser, desde que sejam brancos.
– Uma empresa tem o direito de contratar os funcionários que quiser, desde que não sejam gays.
– Uma empresa tem o direito de contratar os funcionários que quiser, desde que sejam gays.

Quem concorda com todas as afirmações acima, pensa como eu: somos a favor da liberdade de discriminar. Sim, porque “discriminar”, segundo o Aurélio, significa “distinguir, discernir, separar”, e “discriminação”, segundo o enorme dicionário do Prof. Dr. Francisco da Silveira Bueno, significa “discernimento”. E discernimento, ou discriminação, é o que separa o ser humano dos animais irracionais, que são desprovidos de vontade própria e agem apenas segundo seus instintos. Nós, humanos, temos a capacidade de decidir se gostamos de carne ou de peixe, de maçã ou de banana, de bolero ou de samba, de praia ou de piscina. E temos a capacidade de formar opinião sobre tudo que nos rodeia, incluindo outras pessoas. Não somos obrigados a gostar ou a não gostar de alguém, temos a liberdade de formar nossa opinião.

Um emprego é um contrato de trabalho, e o direito ensina que contrato é “um acordo voluntário entre duas partes”. Um acordo voluntário significa que existe liberdade para definir os critérios que serão usados para avaliar a conveniência ou não do acordo – e estes critérios podem ser objetivos ou subjetivos. Nesta ótica, as quatro últimas frases são desnecessárias e redundantes: a primeira já diz tudo. Claro que também vale para o outro lado, uma pessoa também tem o direito de escolher com quem vai ou não firmar um contrato de trabalho, e tem o direito de usar os critérios que bem entender para isso.

Quem não concorda com nenhuma das frases acima, tem opiniões diferentes da minha sobre liberdade.

Agora, naquelas pessoas que concordam com algumas das afirmações e discordam de outras é que mora o problema. Sim, porque, sendo todas elas uma consequência lógica do conceito de liberdade, aceitar só algumas implica em dizer que existem liberdades certas e liberdades erradas. Ou de outra forma, implica em negar o direito de cada um estabelecer seus critérios, e definir que deve existir um critério único para todos. Isso é muito perigoso.

Todas as pessoas que acreditam que existem verdades absolutas também acreditam que esta verdade absoluta é a dela. Nunca vi alguém dizer “eu creio que existe uma maneira incontestavelmente certa de pensar, mas não é a minha”. Essas pessoas que acreditam conhecer a verdade absoluta geralmente são completamente incapazes de aceitar a idéia de que podem não estar tão certos assim, ou mesmo que para outras pessoas e outras situações a verdade possa ser diferente.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

PORQUE SOU LIBERTÁRIO

Machado de Assis disse certa vez em uma crônica: “Acredito na liberdade, então sou liberal. Também acredito que essa liberdade deve ser conservada, então sou conservador.” Naturalmente era uma piada, um jogo de palavras. Na época de Machado, os políticos brasileiros se dividiam entre o Partido Conservador e o Partido Liberal. Proclamar-se um “liberal conservador” seria o mesmo que um norte-americano de hoje dizer-se “republicano democrata” ou “democrata republicano”.

Mas a brincadeira de Machado de Assis aponta para um problema que já causou muita discussão: a prática de tomar um adjetivo genérico e transformá-lo no nome de um grupo, movimento ou mesmo de um partido político. Nesse processo, geralmente o tal grupo se atribui a exclusividade da virtude relacionada ao adjetivo e rotula todos os seus adversários como inimigos dessa virtude. Ou seja, um grupo adota o nome “Liberal” (com maiúscula porque é nome próprio) e a partir daí declara que todos os demais são “anti-liberais” e portanto contra a liberdade.

Isso é obviamente uma falácia, uma distorção intencional. O progressista proclama que quer o progresso, e o conservador proclama que quer conservar o que há de bom. Mas e se eu discordar do conceito de progresso do progressista ou do critério do conservador sobre o que deve ser conservado? Como Machado de Assis, eu posso ser a favor da liberdade sem ser filiado ao Partido Liberal, e posso ser a favor de conservar a liberdade sem ser membro do Partido Conservador.

Nem é preciso dizer que tudo fica ainda mais complicado com os termos “esquerda” e “direita”. São palavras que não definem nada e são usadas baseando-se na divisão da Convenção Nacional que governou a França no final do século 18. Era uma realidade totalmente diferente com problemas totalmente diferentes, e as diferenças ideológicas entre girondinos e jacobinos não significam nada na política de hoje. Assim, “direita” e “esquerda” se tornaram simples nomes de grupos opostos, cada um acreditando ter o monopólio da virtude.

Uma “expansão” desse conceito, defendida por muita gente, identifica cinco grupos, que seriam centro, direita, esquerda, extrema-direita e extrema-esquerda, com a esquerda dizendo que não tem nenhuma relação com a extrema-esquerda e a direita dizendo o mesmo em relação à extrema-direita. Também é inútil porque a definição destes grupos não se baseia em fatos, mas em opiniões – opiniões estas emitidas por quem não tem a menor intenção de ser imparcial.

Nesta confusão de auto-elogios, uma das poucas coisas que permanecem claras é o conceito de liberdade individual, e o critério básico para classificar ideologias e correntes políticas é a postura em relação a ela. Segundo o dicionário inglês Oxford, “o liberalismo defende que os objetivos da política devem ser a preservação dos direitos individuais e a maximização da liberdade de escolha”. Infelizmente o termo “liberalismo” ou “liberal” foi tão abusado que tornou-se praticamente inútil para definir alguma coisa. No passado, nomes como John Locke, Adam Smith, James Madison e Montesquieu criaram uma sólida base filosófica para o liberalismo; hoje em dia, porém, o termo foi totalmente deturpado.

Na Europa, políticos de várias inclinações falam em “liberalismo” sem mostrar muita consideração pelos seus princípios. Quando querem falar mal uns dos outros, usam o termo “neo-liberal” que foi inventado como xingamento e não quer dizer nada de concreto. Nos EUA, o termo “liberal” é usado pela esquerda e considerado pejorativo pela direita. No Brasil, ao contrário, a esquerda nutre ódio por tudo que lembre a palavra “liberal”, enquanto a direita a usa com uma intimidade forçada (lê-se com frequência a expressão “nós conservadores e liberais”).

Por causa disso, os verdadeiros defensores dos ideais liberais acabaram por abdicar do termo, substituindo-o por “libertário” e “libertarianismo”. Não são palavras bonitas, com certeza, mas foi o que se pôde conseguir.

Para explicar melhor como as principais correntes se posicionam, vou usar as palavras de Friedrich Hayek, economista ganhador do prêmio Nobel, em sua obra “A Constituição da Liberdade” de 1960 (e que permanece extremamente atual):

“Habitualmente, representam-se as posições diferentes numa linha imaginária, com os socialistas à esquerda, os conservadores à direita e os liberais mais ou menos ao centro. Nada mais errôneo. Se utilizássemos um diagrama, a figura mais apropriada seria a de um triângulo, com os conservadores ocupando um ângulo, os socialistas o segundo e os liberais o terceiro. Contudo, como os socialistas há muito tempo exercem maior pressão, o que ocorreu foi que os conservadores tenderam a ser arrastados pelo pólo socialista mais que pelo pólo liberal.”

Ou seja, o triângulo não é equilátero. Esquerda e direita se aproximam, enquanto os liberais mantém-se afastados de ambos. Continuando com Hayek:

“Penso que o atributo mais marcante do liberalismo, que o distingue tanto do conservadorismo quanto do socialismo, é a idéia de que convicções morais quanto a questões de conduta não justificam a coerção dos demais.”

“Como o socialista, o conservador preocupa-se pouco em manter limitados os poderes do governo, e preocupa-se muito sobre quem irá exercê-los; e, como o socialista, também se acha no direito de impor às outras pessoas os valores nos quais acredita.”

A esquerda socialista/progressista nunca teve nada em comum com os liberais. Nos EUA, os seguidores do Partido Democrata falam em liberdade mas esta liberdade não significa que alguém possa escolher o que comer, que roupa vestir, que marcas comprar e que tipo de lâmpada usar em sua casa. A liberdade deles é a liberdade de seguir o politicamente correto e fazer aquilo que se difunde como sendo “bom para a sociedade”.

O conservadorismo como movimento político organizado surgiu na Inglaterra com o nome de Tory, tendo Edmund Burke e David Hume entre seus nomes mais significativos. O partido Tory surgiu como oposição ao Whig, que era o partido dos liberais. Ao longo da história, conservadores e liberais quase sempre foram partidos opostos, com os liberais defendendo a supremacia do indivíduo sobre o estado e os conservadores defendendo um estado forte que se oponha à pluralidade de idéias e de opiniões.

De forma resumida, pode-se dizer que a esquerda progressista e a direita conservadora de hoje estão do lado oposto ao dos liberais/libertários porque compartilham uma idéia que foi mostrada pelo filósofo Baruch Espinoza no século 17:

“Todo homem almeja conseguir que todos sejam obrigados a gostar do que ele gosta, e proibidos de gostar do que ele não gosta.”

Dizem que uma vez um homem pediu ao rabino Hillel, um sábio da época de Cristo, que lhe explicasse a Torah de forma rápida. Hillel respondeu: “Não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem a você. Esta é a lei, o resto é comentário.”

Isso para mim resolve tudo: Eu não quero impôr minhas idéias ou preferências aos outros porque não gostaria que fizessem o mesmo comigo. Eu não quero determinar como os outros devem viver suas vidas, porque não gostaria que o fizessem comigo. E, com certeza, não quero calar ninguém porque não gostaria de ser calado. Por isso me considero libertário.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

TEXTOS ALHEIOS – A REALIDADE NA UCRÂNIA

No ano passado, a Ucrânia foi o “assunto do momento” por alguns meses. Quando as coisas começaram a não acontecer do jeito que a midia dizia que ia acontecer, o assunto foi jogado para baixo do tapete. Mas a guerra continua, porque esse danado do bicho-homem que se acha o animal mais inteligente de todos não sabe viver sem guerra. Vamos ver como estão as coisas por lá:

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A realidade na Ucrânia – Por Chuck Baldwin

Aqui está a realidade na Ucrânia: a guerra é um desastre completo, e os neocons americanos que começaram e prolongaram esta guerra para seus próprios propósitos egoístas (do mesmo modo que eles começam todas as guerras dos EUA para seus próprios propósitos egoístas) destruíram ainda outro país e mostraram-se (para quem está prestando atenção) sedentos por sangue, ambições tirânicas e corações sem alma.

Fontes da Ucrânia (não da Rússia), têm alertado que o país está à beira do colapso. Não há absolutamente nenhuma maneira de a Ucrânia ganhar alguma coisa. É por isso que Zelensky está tão desesperado para arrastar a OTAN para a guerra; ele sabe que eles não podem retomar o Donbass nem derrotar a Rússia. Os neoconservadores americanos esperavam enfraquecer a Rússia para que pudessem arquitetar algum esquema para justificar o ataque.

Há rumores por trás da cortina agora que um acordo de paz deve ser fechado ou a Ucrânia entrará em colapso, se suas próprias tropas não se rebelarem e assassinarem Zelensky por sua especulação e massacre de seu próprio povo.

O Wall Street Journal em 23 de julho escreveu: “Oficiais militares ocidentais sabiam que Kiev não tinha todo o treinamento ou armas – de projéteis a aviões de guerra – necessários para desalojar as forças russas. Mas eles esperavam que a coragem e a desenvoltura ucranianas levassem a melhor”.

O fato de isso ter aparecido na imprensa mostra que há descontentamento por trás da cortina. Tudo o que ouvimos até agora são mentiras sobre como a Rússia é fraca e perdedora. Isso é precisamente o oposto da verdade e isso é informação vinda da Ucrânia – NÃO da Rússia. Zelensky manteve uma falsa imagem de vitória apenas para manter o dinheiro fluindo para a Ucrânia. A população da Ucrânia era de cerca de 36 milhões antes da guerra. Pelo menos 500.000 estão mortos e o número real de ucranianos que fugiram de suas casas pode agora ultrapassar 10 milhões. Zelensky destruiu seu país por causa do Donbass, que nunca foi território ucraniano nem ocupado por ucranianos.

A tentativa de Zelensky de fazer a OTAN iniciar outra guerra europeia pela Ucrânia sempre foi pura fantasia. A verdade é: a OTAN é uma casca vazia. A única razão pela qual ainda existe é fornecer uma plataforma para os Estados Unidos travarem suas guerras por procuração na Europa. Sem a ajuda dos dólares dos contribuintes americanos e do equipamento e munições militares dos EUA, a OTAN desapareceria – e é exatamente isso o que deveria acontecer.

Um pequeno punhado de republicanos no Congresso está lutando bravamente para retirar o financiamento dos EUA à guerra na Ucrânia. Eles estão lutando uma batalha perdida, no entanto (pelo menos agora), porque a grande maioria dos republicanos é controlada pelos neoconservadores sedentos de guerra – ou devo dizer famintos por dinheiro, porque nada fornece mais riquezas aos incitadores de guerras do que, bem, a guerra.

E aqueles nos EUA que pensam que a guerra na Ucrânia está prejudicando Moscou, eles também estão vivendo em um mundo de fantasia. A economia russa cresceu desde que os EUA se enfiaram neste conflito. O rublo atingiu seu nível mais forte em sete anos em 2022, e os parceiros comerciais da Rússia se multiplicaram exponencialmente, assim como suas alianças políticas.

Eu sei que a propaganda da mídia ocidental não vai te dizer isso, mas o fato é que a maioria das nações do mundo apoia a Rússia no conflito ucraniano. O envolvimento dos Estados Unidos na guerra na Ucrânia levou milhões de pessoas e dezenas de países à órbita de influência da Rússia.

A Ucrânia é outro exemplo trágico do que acontece com os países quando eles tolamente permitem que egocêntricos e loucos pelo poder assumam o controle de uma nação. Com o tempo, todos esses líderes, se permanecerem no poder, transformarão seus próprios países em desastres completos – ao custo de um número incontável de mortes de seus próprios cidadãos.

É exatamente onde a Ucrânia se encontra hoje.

Lembre-se, também, que tudo isso foi facilitado (e planejado) pelos incitadores de guerras neocons / neoprogressistas em Washington, DC

Sem mencionar que Joe Biden está obcecado em garantir que a guerra na Ucrânia não acabe, porque ele provavelmente sabe que Zelensky tem segredos escondidos contra os Bidens que Joe não pode deixar serem revelados.

“Desastre completo” não se aplica apenas à Ucrânia, mas também à presidência de Joe Biden.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

UM VIZINHO LIBERTÁRIO?

Nosso país tem estado muito voltado para seus problemas internos e para a política local. Sendo assim, é possível que muita gente nunca tivesse ouvido falar de Javier Milei até o último fim de semana, quando ele foi o pré-candidato mais votado nas prévias argentinas. A surpresa ficou maior quando as pessoas buscaram descobrir quem era afinal o tal Javier e encontraram alguém que contraria a atual moda de atribuir ao estado todas as virtudes e esperar dele a solução de todos os problemas. Milei é um representante da escola libertária, que diz que o cidadão deve estar acima dos políticos, que a liberdade é mais importante que a burocracia estatal e que o governo cria mais problemas do que resolve.

A imprensa mundial, que não sabe falar de nada novo sem antes colar um rótulo, correu para designar Milei como “extrema-direita” ou “ultra-direita”. São definições que não definem nada, porque se baseiam em conceitos que já não existem mais, e que se tornaram meros auto-elogios para as diferentes torcidas organizadas que formam a política de hoje. Não importa, porque o programa de Milei não tem nada a ver com o que se costuma chamar de “extrema-direita”, e provavelmente vai escandalizar por igual aos simpatizantes tradicionais da “direita” e da “esquerda”.

O programa de Milei é ousado, embora para a teoria libertária ele ainda seja tímido, abrindo concessões em vários pontos. Mas é preciso reconhecer que passar subitamente de um sistema onde o governo controla tudo para outro onde o governo não controla nada é algo extremamente difícil de realizar na prática. De forma resumida, os pontos principais do programa são os seguintes:

1 – Reforma organizacional do governo, passando de 18 para 8 ministérios. Nenhum burocrata de carreira deve ser demitido inicialmente, mas eles serão realocados. Os nomeados políticos não serão renovados e serão reduzidos ao mínimo. Todos os privilégios de funcionários públicos, como guarda-costas e motoristas, serão eliminados, exceto nos casos em que forem absolutamente necessários por questões de segurança. Esta medida inclui também o início do processo de privatização ou fechamento de todas as empresas estatais.

2 – Redução dos gastos públicos. Para o primeiro orçamento, o objetivo é uma redução de 15% do PIB, eliminando o déficit. Do lado das receitas a idéia é simplificar, eliminando 90% dos impostos.

3 – Flexibilização da regulamentação trabalhista. A medida visa reduzir o custo e o risco de litígio nas contratações, além da implementação de um regime privado de seguro-desemprego. A expectativa é aumentar o número de empregos formais no setor privado de 6 milhões para 14 milhões.

4 – Liberalização do comércio. Isso inclui a eliminação de todas as tarifas de importação e exportação e a redução das restrições regulatórias, ao estilo do Chile.

5 – Reforma monetária. Esta medida inclui permitir o uso de qualquer mercadoria ou moeda estrangeira como moeda legal e o fim do Banco Central, o que resultaria na eliminação do peso argentino. Ainda existem detalhes não resolvidos em função dos passivos atualmente existentes no Banco Central, que precisariam ser honrados.

6 – Reforma energética. Esta medida pretende eliminar todos os subsídios aos fornecedores de energia, talvez substituindo-os por um subsídio do lado da demanda para famílias vulneráveis. Também se busca melhorar a infraestrutura energética através de incentivos a investimentos privados no setor.

7- Fomento ao investimento. Isso será feito por meio de uma legislação especial para investimentos de longo prazo, com foco em mineração, combustíveis fósseis, energia renovável e silvicultura, entre outros. Isso inclui eliminar restrições cambiais e taxas de exportação.

8 – Reforma agrária. Isso inclui a liberação do câmbio, a eliminação de taxas e retenções de exportação, a eliminação do imposto sobre a receita bruta, a eliminação de todas as restrições ao comércio exterior incluindo cotas e autorizações, uma nova lei de sementes e a melhoria da infraestrutura rodoviária por meio da iniciativa privada.

9 – Reforma judicial. A medida visa separar o judiciário da política promovendo, entre outras coisas, a independência orçamentária. Além disso, haverá incentivos para aumentar julgamentos por júri e procedimentos orais.

10 – Reforma previdenciária. Prevê avançar a longo prazo para um sistema privado no qual os usuários pagam pelos seus serviços de saúde. A curto prazo, visa oferecer programas de proteção de renda para mitigar a pobreza extrema, programas nutricionais, programas de educação parental sobre estimulação cognitiva, maior cobertura para pré-escola, incentivos à graduação, programas de integração de pessoas com deficiência, promoção de acesso a crédito privado e a eliminação de todos os intermediários na provisão de bem-estar social. Em paralelo, haverá um programa piloto de prestação de serviços via vouchers, a fim de estimular a concorrência entre os prestadores de serviço.

11 – Reforma educacional. Visa um maior grau de liberdade para escolha de currículos, métodos e educadores. Haverá um programa piloto de vouchers escolares, como na saúde, e um sistema de avaliação das escolas para que possam concorrer aos incentivos.

12 – Reforma da segurança. Essa medida inclui reformas nas leis de segurança interna, defesa nacional e inteligência, bem como uma reforma no sistema penitenciário para incorporar híbridos público-privados e intensificar a repressão ao narcotráfico.

Quais as chances de termos um país vizinho governado em moldes libertários? Sobre a eleição, eu não arrisco prognóstico, principalmente em função do segundo turno, onde as alianças mais estranhas podem acontecer. Mas me arrisco a dizer que, caso vença, a vida de Milei não será nada fácil, por vários motivos:

– Ele não terá uma base sólida no Congresso, o que pode inviabilizar a implantação de muitas das propostas.

– O apoio popular no momento do voto pode não se manter quando as mudanças começarem a abalar privilégios e direitos adquiridos.

– Haverá forte pressão da imprensa e da comunidade internacional, viciadas em estatismo, que sentem muito medo de qualquer possibilidade de sucesso de um modelo alternativo.

– Como a produtividade argentina é baixa, o processo de ajuste a um novo modelo econômico pode ser demorado e doloroso.

Por tudo isso, eu me mantenho cético em relação ao sucesso de Milei. Poderemos ter uma acomodação “pragmática” ao velho estilo da política, criando exceções e limitações ao plano até esvaziá-lo, ou poderemos ter mais um turno de caos, golpes, renúncias e deposições, o que parece ser algo cíclico na Argentina.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

A IDADE PÓS-CONTEMPORÂNEA

Aprendemos na escola que a história se divide em Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Eu nunca gostei dessa classificação, por ser muito voltada à Europa ocidental para algo que deveria ser universal, e porque é uma classificação datada; afinal, toda época é contemporânea de alguma coisa. Além disso, pressupõe um conjunto fechado: o que virá depois da idade contemporânea?

A discussão se torna importante porque eu acho óbvio que estamos em um quinto período. Vamos relembrar os anteriores para entender:

A Idade Antiga se caracteriza pelos grandes impérios. É uma visão eurocêntrica, que ignora o mundo além dos domínios romanos, gregos ou persas. Seu marco final é a queda do último imperador de Roma, Rômulo Augusto, em 476.

Seguiu-se a Idade Média, que ao contrário da anterior se caracterizou pela descentralização. Com o fim do poder de Roma, a Europa se dividiu em centenas de pequenos feudos, cada um governado pelo seu príncipe, duque ou conde, com pouca interação entre eles. O comércio diminuiu e durante cinco séculos o progresso tecnológico foi mínimo. Somente por volta do século 10 é que o comércio e a interação entre as diferentes comunidades voltou a crescer.

A Idade Moderna tem como marco inicial mais comum a queda de Constantinopla em 1453, embora alguns autores prefiram outros eventos como a viagem de Colombo em 1492 ou a reforma protestante em 1517. De qualquer forma, este período se caracteriza pela “globalização” que interliga Europa, América, Ásia e África através do comércio e do estabelecimento de colônias (o interior da África só participaria deste processo séculos depois). Politicamente, os pequenos feudos perdem importância e o poder se centraliza nos grandes estados nacionais.

Um fator comum nestas três épocas é a divisão social entre nobres e plebeus. Os primeiros exercem o poder, promovem guerras, constroem castelos, conquistam e perdem territórios. O restante da população apenas trabalha e sobrevive; do que produzem, ficam apenas com o mínimo necessário para não morrer, o resto é tomado na forma de impostos.

A Idade Contemporânea, que tem como marco inicial a Revolução Francesa (1789), nasceu junto com o iluminismo. Foi nessa época que as pessoas comuns deixaram de ser apenas mão-de-obra e passaram a ser vistas como indivíduos. A justiça, por exemplo, deixou de ser simplesmente a vontade do rei e passou a ser estabelecida por leis. A Revolução Industrial trouxe uma abundância sem precedentes para o cidadão comum, e pode-se dizer que o século 19 viu mais mudanças do que qualquer outro na história. Por volta de 1800 uma casa de classe média era iluminada por velas ou lampiões de óleo, e a única máquina existente era talvez uma roca de fiar lã. Viagens eram feitas a cavalo e o único meio de comunicação era a carta. Cem anos depois, havia fonógrafos, fogões a gás, máquinas de costura, lâmpadas elétricas, automóveis, trens, telégrafos. O comércio internacional cresceu enormemente. Mas, voltando ao início do parágrafo, o mais importante é que pela primeira vez o progresso beneficiava principalmente o cidadão comum e não a elite governante.

E é aí que tudo se complica. Os otimistas gostam de ver esse progresso existindo até hoje, falando em “conquistas sociais”. Para eles, o mundo continua melhorando. Para os pessimistas, como eu, a coisa não é bem assim.

Terminado o século 19, a Primeira Guerra Mundial mostrou que o povo continuava correndo o risco de morrer em um campo de batalha simplesmente porque alguns reis ou presidentes não tinham nada melhor para fazer. E quando a guerra terminou, os antigos costumes do feudalismo, onde as pessoas eram tratadas como propriedade pelos poderosos, voltou com nova roupagem: o regime de servidão mudou de nome para nacionalismo; a obediência ao rei virou obediência ao governo, e a justificativa deixou de ser o “direito divino” e passou a se chamar “contrato social” ou “estado democrático de direito”. A obrigação de pagar impostos, essa não mudou muito, só aumentou em variedade e em quantidade.

Além da Primeira Guerra, outros fatos poderiam ser escolhidos como marco final da Idade Contemporânea: a Grande Depressão em 1929, o fim do padrão-ouro em 1971 ou o anúncio oficial de que o governo se concedeu o direito de fazer o que quiser em nome da “segurança nacional”, após o 11 de setembro de 2001.

Mas nada se compara ao que aconteceu entre 2020 e 2022, no período conhecido como “a pandemia”. Foi quando a população do mundo renunciou a seus direitos de adulto e declarou que prefere viver como criança, sendo cuidada pelo papai governo. O governo declarou que era preciso evitar aglomerações, e para isso iria limitar o horário de funcionamento dos supermercados e reduzir o número de ônibus, e a população apoiou. A OMS declarou que não adiantava usar máscaras, mas um mês depois disse que todos deveriam usar máscaras, e todos não só obedeceram como transformaram o uso em motivo de orgulho, talvez em um reflexo atávico dos tempos em que tampar a boca era o tratamento dado aos escravos como símbolo de sujeição.

Nessa época, governos do mundo inteiro disseram que iriam ignorar todos os protocolos sobre testes e certificações de novos medicamentos, e que iriam usar o dinheiro público para adquirir, a qualquer preço, vacinas que não haviam sido testadas, e cujos fabricantes declaravam explicitamente que não assumiriam nenhuma responsabilidade em caso de efeitos colaterais indesejados. Os governos ainda ordenaram que a população deveria não apenas receber essas vacinas não testadas, mas acreditar que “a ciência” garantia que elas eram seguras; quem duvidasse deveria ser xingado de “negacionista” ou “terraplanista”. A população obedeceu alegremente.

Governos do mundo inteiro declararam que, em nome do “bem comum”, eles poderiam fazer o que quisessem, e que coisas como Liberdade de Expressão, Direitos Individuais ou Segurança Jurídica eram coisas antigas, fora de moda e perigosas. O povo aplaudiu, agradecido, e pediu mais.

Nesta Idade Pós-Contemporânea, as pessoas não têm mais noção própria do que é verdade; ao invés disso, a mídia informa aquilo que o governo determinou que é verdade, e todos se sentem confortáveis em acreditar. Em nome de uma certa “democracia”, todos gostam daquilo que todos devem gostar e têm medo daquilo que devem ter medo – discordar da maioria, por exemplo.

Algum dia, talvez tenhamos um novo Iluminismo, e as pessoas (ou pelo menos algumas delas) voltem a acreditar que possam pensar por si mesmas. Ou antes disso teremos uma guerra nuclear e uma nova Idade Média.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

BRICS MONEY

Rumores pelo mundo dizem que os países do BRICS estão muito perto de anunciar a criação de uma nova moeda, lastreada em ouro; talvez agora em agosto quando acontecerá uma reunião em Johanesburgo. Em que isso nos afeta?

Já falei tanto sobre a história do dinheiro que não vou repetir tudo; apenas relembrar que os Estados Unidos ganharam de presente a hegemonia econômica mundial quando os países europeus resolveram destruir a si mesmos em duas guerras estúpidas e inúteis. De 1945 para cá, todo o comércio mundial é feito em dólar, o que coloca os EUA em uma posição bem diferente de todos os outros países.

Desde que o presidente Nixon mandou às favas o acordo de Bretton Woods, em 1971, muita gente falou em criar alternativas para o dólar, mas quase nada aconteceu além de falação. Teorias da conspiração dizem que as invasões do Iraque de Saddam Hussein e da Líbia de Kadaffi aconteceram porque ambos queriam vender petróleo usando outras moedas. Se foi isso mesmo, Saddam e Kadaffi mostraram uma espetacular falta de visão em achar que poderiam sozinhos fazer algo dessa magnitude.

Mas as coisas andam acontecendo muito rapidamente nos últimos tempos, e agora quem está falando em abandonar o dólar e voltar para o ouro são duas potências nucleares. O que se pode concluir por enquanto?

Em primeiro lugar, óbvio, é preciso saber se os demais países vão aderir a esta nova moeda. Poucos anos atrás, ninguém apostaria nisso, mas os EUA deram-se um enorme tiro no pé ao bloquear unilateralmente reservas em dólar do Afeganistão e da Rússia. Todos os países perceberam que deixar todas as suas reservas na mão dos políticos de Washington não é uma boa idéia. A China, que tem um projeto de longo prazo para se tornar o próximo líder mundial, percebeu o momento favorável, agora que a Rússia precisa desesperadamente voltar a participar da economia mundial.

Se o projeto vingar, a consequência óbvia é que o dólar vai perder valor, mas isso não é o pior. Hoje, o governo dos EUA desfruta do privilégio de poder fabricar dinheiro muito mais impunemente que os outros países: como o dólar é demandado no mundo inteiro, os EUA acabam “exportando” boa parte da inflação que aconteceria no mercado interno.

Os Estados Unidos estão em um momento delicado: a dívida é enorme, a inflação está alta, o déficit também. A subida da inflação junto com a perda da confiança forçou uma subida dos juros. Só a despesa com esses juros já ultrapassa 1 trilhão de dólares por ano. O governo esperava poder continuar imprimindo dinheiro para pagar a conta até que as coisas se acalmassem. Se ocorrer uma queda brusca na demanda mundial pelo dólar, continuar fabricando dinheiro vai jogar a inflação para as alturas. Interromper a fabricação de dinheiro exigirá um profundo corte de despesas que não parece politicamente possível.

Por tudo isso, os inegáveis benefícios a longo prazo da nova moeda dos BRICS poderiam ficar em segundo plano diante da enorme tensão que causaria entre EUA e China no curto prazo. Sobre o desenrolar dessa tensão, pode-se apenas especular.

E para nós brasileiros, o que muda? Quase nada. É praticamente certo que essa nova moeda será usada apenas para operações de comércio internacional, e existirá apenas na forma digital, não em cédulas ou moedas físicas. Na verdade, trata-se mais de criar um sistema mundial de compensações que seja uma alternativa ao que existe hoje, baseado em dólar. Um sistema desses não é algo monolítico, que existe em um determinado lugar; é um conjunto de softwares, protocolos, contratos e regras que efetuam transferências de dinheiro de um lugar para o outro. Ou seja, é quase como o nosso sistema bancário, só que em nível internacional.

A possibilidade de que essa nova moeda passe a ser usada internamente em substituição ao real é mínima, por um motivo simples: uma moeda lastreada em ouro não pode ser inflacionada, o que é ótimo para os cidadãos mas é desagradável para os políticos. O mais provável é que continuaremos a usar um real sempre mais desvalorizado, e em breve totalmente digital (já falei sobre isso antes).

Um último ponto: jornalistas adoram expressões chamativas, e siglas como BRICS agradam em cheio. Só que na verdade a tal sigla é apenas isso, uma sigla. Trata-se de um grupo absolutamente heterogêneo de países (“um polaco de cada colônia”, diria minha avó) que têm pouca coisa em comum: o R é uma superpotência que se meteu em uma situação complicada e teme, com razão, virar uma ex-superpotência. O I e o C são superpotências de verdade que se odeiam. O B e o S são apenas amigos irrelevantes que foram incluídos na festa mas não decidem nada (“anões diplomáticos”, diria alguém). Assim, quando se diz que “os países do BRICS vão criar uma moeda lastreada em ouro”, seria prudente observar de quanto ouro estamos falando:

O gráfico acima mostra a quantidade de reservas em ouro de cada membro do BRICS (em toneladas, valores do primeiro trimestre de 2023). Juntando essa informação com a participação de cada país no comércio mundial e com a importância geo-política, fica óbvio que se trata de uma briga de cachorro grande. É torcer para que a briga não fique muito feia.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

LINCOLN E A SECESSÃO

Existem duas maneiras de enxergar a história. A primeira é vê-la do ponto de vista dos seres humanos. A segunda, mais comum, ignora a individualidade das pessoas e vê o mundo como um conjunto de países. Esta segunda opção reduz a história a um punhado de listas com datas e nomes de heróis, e decorar estas listas é chamado “estudar história” em muitas escolas. Nesta “história”, só os países e seus governos fazem alguma coisa: o país A conquista o país B, o país X entra em guerra com o país Y, os países compram, vendem e constroem coisas. As pessoas não existem, são apenas peças do mecanismo.

Estas visões da história refletem diferentes visões do mundo. A primeira, que existiu em países como os Estados Unidos, vê o povo como soberano e o governo como um funcionário encarregado de algumas tarefas. A segunda é a visão que predomina no mundo de hoje, e vê exatamente o contrário: o governo é o soberano e o povo é servo ou escravo deste governo (não é funcionário porque funcionários são pagos). Neste mundo, o povo não tem opinião, quem tem opinião é o governo, ou melhor, as pessoas que formam o governo. Elas têm o poder de impôr o seu ponto de vista sobre os demais, e fazem isto de várias maneiras. Uma delas é justamente “reescrever” a história, ou seja, modificar tanto o registro dos fatos como a sua interpretação. Com isso, as pessoas ficam impossibilitadas de discordar.

Um caso exemplar dessa “reconstrução do passado” envolve a guerra que aconteceu nos EUA entre 1861 e 1865. Os fatos históricos vêm sendo sistematicamente manipulados e reescritos para transformar a história em uma narrativa conveniente.

Os fatos são os seguintes:

– Em 1776, após uma guerra contra a Inglaterra, os moradores dos EUA disseram que não eram mais súditos do rei inglês. Foi redigido um documento, que ficou conhecido como “Declaração de Independência”, que dizia “declaramos que estas Colônias unidas são Estados Livres e Independentes”.

– Dez anos depois, foi elaborada uma constituição que foi ratificada e aceita por cada um dos “Estados Livres e Independentes”. Os estados de Rhode Island, New York e Virgínia incluíram em sua ratificação uma cláusula que lhes dava o direito de separar-se da União. Estas cláusulas nunca foram questionadas.

– Com o passar do tempo, novos estados foram sendo criados, e cada um deles ratificava sua entrada na União, sob a constituição vigente.

– Na década de 1850, havia um grande desagrado nos estados do sul com relação ao governo central. O cálculo da população, que determinava o número de deputados de cada estado, favorecia os estados do norte, que assim garantiam a maioria no congresso. Com essa maioria, o governo central favorecia os estados do norte, mais industrializados, que pediam protecionismo, ou seja, restrições ao comércio exterior. O sul, ao contrário, era exportador e portanto queria liberdade de comércio.

– Segundo a constituição, o único imposto a cargo do governo federal era sobre importações e exportações. Em 1860, o congresso aprovou a tarifa Morril, que aumentou essas tarifas em mais de 70%. Os estados do sul representavam três quartos do comércio exterior e portanto seriam os mais prejudicados.

– Também havia pressões abolicionistas por parte de alguns estados do norte. Não era exatamente por bondade ou por algum sentimento aos moldes dos de hoje. Simplesmente a economia destes estados não precisava de mão-de-obra escrava, e eles desejavam que os escravos dos outros estados passassem a ser consumidores de seus produtos.

– Em novembro de 1860, Lincoln foi eleito presidente por um colégio eleitoral que, segundo os sulistas, favorecia injustamente os estados do norte. Ele foi o mais votado nos estados do norte e perdeu em todos os estados do sul.

– Três dias após a vitória de Lincoln, a câmara de deputados da Carolina do Sul declarou a intenção de separar-se da união. Foi convocada uma eleição para escolher representantes de cada cidade e em 17 de dezembro estes representantes eleitos votaram pela secessão (169 votos a favor e 0 contra). O presidente James Buchanan, que estava nos últimos dias de seu mandato, ignorou a declaração.

– O comandante das tropas federais no estado, Major Robert Anderson, havia reunido todas as tropas e armas no Forte Sumter, que protegia o acesso ao porto de Charleston. Após a declaração de secessão, o governador do estado pediu ao Major Anderson que abandonasse o forte. Anderson se recusou.

– Em fevereiro do ano seguinte, os estados da Flórida, Mississipi, Alabama, Georgia e Louisiana declararam a sua saída da União e a formação de um novo país, chamado Estados Confederados da América. A Carolina do Sul uniu-se a eles dias depois.

– Em abril, já com Lincoln na presidência e o Major Anderson se recusando a se retirar do Forte Sumter, a marinha dos EUA enviou uma frota para Charleston. Antes que a frota chegasse, o governador decidiu atacar o forte, que foi atingido por artilharia durante um dia e meio. O forte rendeu-se (sem nenhuma baixa).

– Poucos dias depois, o presidente Lincoln disse aos estados do norte que necessitava formar um exército de 75.000 voluntários para “retomar os fortes, proteger a capital (Washington) e preservar a União”.

– Em 1862, o Congresso dos EUA, que tinha apenas representantes apenas do norte (os do sul se retiraram, já que seus estados declararam que não faziam mais parte da União) aprovou duas medidas importantes do ponto de vista histórico: a permissão para o governo fabricar dinheiro de papel (segundo a constituição, o dinheiro deveria ser cunhado em ouro ou prata) e a criação de um imposto de renda, com a aliquota máxima de 3% e a duração de cinco anos (não é preciso dizer que hoje, dois séculos depois, o imposto continua sendo cobrado e com uma alíquota bem maior).

– Em 1863, Lincoln assinou a Proclamação de Emancipação: ela declarava livres os escravos APENAS dos estados que eram considerados “rebeldes” pelo governo federal, e dava a estes escravos libertados o direito de entrar para o exército da União.

– Com mais dinheiro, mais tropas e com uma marinha muito mais forte, a União venceu a guerra em 1865, deixando aproximadamente 650.000 soldados mortos, um número desconhecido de vítimas civis, e a economia e a infraestrutura dos estados do sul destruídas.

– Lincoln nunca assinou uma lei “libertando todos os escravos” ou “proibindo a escravidão”. Após sua morte em 1865, o fim da escravidão veio aos poucos, com leis distintas em cada estado.

Do ponto de vista humano, a questão parece bem clara: o povo de alguns estados “Livres e Independentes” decidiu não mais fazer parte da União. Isso até estava previsto na constituição, mas não era necessário; se o poder “emana do povo”, a lei não pode estar acima da vontade popular. Quanto ao Forte Sumter, ele estava no território da Carolina do Sul e foi construído com o dinheiro do povo daquele estado. Na visão original dos EUA, o governo existe para servir ao povo, e não faz sentido ele ser “dono” de alguma coisa.

Para quem adota o ponto de vista oposto, a explicação fica bem mais simples: alguns estados quiseram se separar da União e deveriam ser impedidos. Para quem vê o mundo dessa forma, países são como as casas mal-assombradas dos filmes de terror: quem entra nunca mais sai. Se um grupo de pessoas quer separar-se de um país, é preferível o governo matá-las do que permitir que elas se separem e vivam da forma que desejam.

Na década anterior, Lincoln havia se manifestado a favor do direito de secessão. Em um discurso na Câmara dos Deputados em 1848, ele disse:

“Quaisquer pessoas, em qualquer lugar do mundo, que estejam dispostas e tenham o poder para tal, têm o direito de se insurgirem e se desvencilharem do governo vigente, e de formarem um novo governo que lhes seja mais apropriado. … Tampouco está este direito restrito apenas a casos em que todos os cidadãos devem escolher exercê-lo. Qualquer fatia de um povo que se sinta capaz pode fazer uma revolução, se seceder e se apossar de toda a área daquele território em que habitam.”

Na época, ele se referia à guerra contra o México e à subsequente secessão do Texas em relação àquele país. Quando ele se viu do outro lado, sua opinião mudou radicalmente. Seus fãs de hoje em dia ignoram o Lincoln de 1848 e apoiam o Lincoln de 1861, que acha que a secessão deve ser reprimida pela guerra.

Durante muito tempo, a guerra iniciada por Lincoln foi conhecida como a Guerra de Secessão. Mas nos últimos tempos o desejo de poder dos governos tornou-se tão forte que até mesmo palavras se tornaram inaceitáveis. Por isso, foi escrita uma nova história: Lincoln era o “bonzinho” que queria libertar os escravos e os estados do sul eram os “malvados” que eram racistas e escravagistas. Ainda que totalmente falsa e inconsistente com os fatos, essa nova visão espalhou-se pelos livros e pelos ambientes acadêmicos com rapidez. A guerra foi rebatizada de “Guerra Civil” e, seguindo o costume, o lado que venceu foi declarado “certo” e o lado que perdeu foi declarado “errado”, o que iniciou um movimento de destruição de tudo que não se ajustasse à nova narrativa, incluíndo retirada de estátuas e monumentos. A bandeira confederada, que por muito tempo foi usada por habitantes do sul como um símbolo de sua região e de sua cultura, hoje pode dar cadeia.

Afinal, Lincoln era racista? Não era mais racista do que a grande maioria dos seus conterrâneos, mas certamente suas idéias não seriam consideradas politicamente corretas nos dias de hoje. Em 1858, no célebre debate com Stephen Douglas, Lincoln disse:

“Não sou, nem nunca fui, a favor de criar a igualdade social e política das raças branca e preta; não sou, nem nunca fui, a favor de transformar negros em eleitores ou jurados, nem de habilitá-los a exercer cargos públicos, nem de permitir seu casamento com pessoas brancas. Há uma diferença física entre as raças branca e preta que, creio eu, irá para sempre proibir as duas de viverem juntas em termos de igualdade social e política. Enquanto elas coexistirem terá de haver a posição do superior e do inferior, e eu sou a favor de que a posição superior seja da raça branca.”

O que é importante entender é que a questão da abolição não tinha nada a ver com igualdade ou racismo; era uma questão basicamente política que se transformou em uma questão militar. A Proclamação de 1863 visava apenas prejudicar a economia dos estados do sul. Isso fica bem claro nessa famosa declaração de Lincoln:

“Se eu pudesse salvar a União sem libertar qualquer escravo, eu o faria; se eu pudesse salvá-la libertando a todos, eu o faria; se eu pudesse salvá-la libertando alguns e deixando outros por sua própria conta, eu também o faria. O que eu fiz a respeito da escravidão e da raça negra eu fiz acreditando que ajudaria a salvar a União.”

Um último fato interessante: enquanto George Washington, considerado o fundador dos EUA, foi homenageado na capital com um obelisco, Lincoln é lembrado com um imenso panteão que abriga uma estátua sua de quase seis metros de altura:

As mãos de Lincoln se assentam sobre dois feixes de varas amarradas com tiras de couro. Esse símbolo é idêntico ao que era usado pelos imperadores da antiga Roma, onde era chamado de fascio (fasces no plural) e representava o poder. O site oficial do governo dos EUA explica o seguinte:

“Os fasces indicam que uma pessoa detém o imperium, ou autoridade executiva. Exercendo o imperium, um líder romano podia esperar que suas ordens seriam obedecidas; podia determinar punições e mesmo a execução de quem desobedecesse.”

O monumento de Lincoln foi construído em 1922, na mesma época em que outro país também havia adotado o símbolo dos fasces e o conceito da autoridade a quem todos devem obediência: a Itália de Benito Mussolini, que usou não apenas o símbolo e a ideologia, mas também o nome, batizando seu regime de fascismo. A idéia do poder do estado sobre o povo é a mesma nos três casos.

Quem poderia imaginar, não é mesmo? Abraham Lincoln, fascista.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

COMÉRCIO

Houve um tempo em que a expressão “comércio internacional” significava o seguinte: os clientes dos supermercados queriam comprar batatas, então os departamentos de compras compravam batatas dos agricultores. Se o supermercado e a fazenda estavam em países diferentes, fazia pouca diferença: o comprador mandava o dinheiro, o vendedor mandava as batatas, todo mundo ficava feliz.

Todo mundo, claro, menos os políticos e os funcionários do governo, que não ganhavam nada com o negócio. Por isso, os políticos declararam que esse modo de fazer comércio era “caótico” e que era necessário organizar, regulamentar, controlar, padronizar, inspecionar, autorizar, fiscalizar… e, naturalmente, taxar. Então no século 20 foi criado um novo modo de fazer comércio.

Neste “novo modo”, o país A envia um grupo de funcionários para um hotel de luxo e o país B envia outro grupo, para realizar uma “conferência econômica”. Os representantes do país A querem vender batatas para o país B. Os representantes do país B dizem que só comprarão batatas se o país A comprar suas laranjas. “Não precisamos de laranjas”, diz o país A. “Então não compraremos suas batatas”, diz o país B. Esse diálogo prossegue por dias ou semanas, enquanto os funcionários de ambos os países aproveitam o restaurante e a piscina do hotel. Em algum momento, chega-se a um acordo: o país A venderá uma quantia pré-determinada de batatas a um preço pré-determinado. O país B venderá laranjas em quantidade e preço também fixados.

O resultado é que os supermercados do país B, para comprar as batatas que seus clientes desejam, precisarão peregrinar pelas repartições do governo em busca de guias de importação, autorizações de câmbio e outras papeladas. Já o país A dará o dinheiro dos contribuintes para alguma empresa encarregada de comprar as laranjas do outro país e descobrir o que fazer com elas – soluções típicas são vendê-las com prejuízo aos supermercados ou deixá-las apodrecer nos depósitos.

O comércio do século 20, claro, é muito mais complicado do que trocar batatas por laranjas, mas os princípios são sempre estes: fingir que comércio não é algo feito entre pessoas, que podem ser compradoras ou vendedoras, mas entre países; e pensar que o objetivo do comércio não é chegar a um acordo que seja bom para ambas as partes, e sim obter o máximo de vantagem possível às custas do prejuízo alheio. Estas idéias se espalharam pela sociedade de tal forma que hoje em dia algumas pessoas ganham muito dinheiro ministrando cursos a empresários e executivos para ensinar que negociações “ganha-ganha” são melhores do que disputas “ganha-perde”.

Quando o comércio é controlado pelos governos (que por sua vez são controlados pelos políticos), todo mundo perde: alguns produtos ficam mais caros ou simplesmente não existem, outros vão para o lixo por falta de compradores, e muito dinheiro e trabalho é desperdiçado em burocracias inúteis. Exemplo: durante boa parte do século 20, todos os trens que ligavam um país a outro na Europa precisavam parar na fronteira para ter sua carga inspecionada, enquanto os passageiros também precisavam preencher papéis e em alguns casos ser revistados para se ter certeza que nenhum bem estava sendo levado ilegalmente. Nos trens que tinham restaurante, todos os produtos, incluíndo garrafas de água mineral ou vinho, precisavam ser descarregados junto à fronteira. O trem andava alguns metros, e parava na estação do outro país, onde o vagão-restaurante era novamente abastecido com produtos nacionais. Todos os funcionários do trem também eram trocados, e em alguns casos os vagões eram desengatados e ligados a outra locomotiva, registrada no país em que o trem acabara de ingressar.

Se há um país que foi mais adiante que qualquer outro no protecionismo comercial, foi a Inglaterra (ou melhor, Reino Unido). No final do século 19, os grandes empresários começaram a se reunir em associações de classe que cartelizavam completamente cada setor da economia – com total apoio do governo. Todas as minas de carvão, por exemplo, se filiavam em uma associação que tabelava um preço único para o carvão. O preço do frete era fixado pela associação das ferrovias. As siderúrgicas que compravam o carvão tabelavam um preço único para seus produtos, e assim por diante. Todas essas iniciativas eram “supervisionadas” por um órgão chamado Comissão de Manutenção dos Preços de Revenda, ligada ao Conselho de Comércio. Essa comissão se dedicava a localizar e denunciar empresas que vendiam produtos mais baratos do que o preço fixado.

Com o lucro garantido pelo preço tabelado e com o governo proibindo a concorrência estrangeira, é inevitável que os empresários se acomodem e que se crie um clima de evitar mudanças e “manter tudo como sempre foi”. Um exemplo: em 1945 o Conselho de Comércio designou uma comissão para avaliar a situação da indústria da lã, que sempre foi um produto importante na economia inglesa. A comissão descobriu que aproximadamente metade das máquinas usadas pela indústria eram do século 19, existindo algumas com 80 anos de uso. Na área da fabricação de roupas, “a maioria das máquinas de costura em uso nas fábricas têm de 30 a 40 anos”. É interessante notar que essa incompetência acaba se tornando uma vantagem: quanto mais obsoletas as máquinas (ou, de modo geral, quanto mais ineficiente a fábrica) mais os empresários e o governo se unem para proclamar a necessidade de “proteger a indústria nacional” que seria “incapaz de competir”. O consumidor, naturalmente, fica com o prejuízo.

Junto com o protecionismo comercial, inevitavelmente vêm o protecionismo financeiro. No século 19, a moeda era o ouro, e ouro é ouro em qualquer lugar; portanto, as moedas circulavam livremente. No século 20, o dinheiro passou a ser papel colorido, e cada país queria fabricar mais papel colorido do que o outro. Ao fazer isso, o dinheiro se desvaloriza, e as pessoas vão tentar trocá-lo por outro que não perca seu valor, algo que o governo não quer. O resultado é sempre o mesmo: controle de câmbio e proibição da saída do dinheiro. Neste aspecto, a Inglaterra desceu mais fundo que qualquer um: na década de 50, em tempo de paz, o governo inglês fazia o que nunca havia sido feito sequer em tempo de guerra: violava toda correspondência destinada ao exterior para verificar se não havia dinheiro sendo “contrabandeado” para o estrangeiro. Em paralelo, mulheres que embarcassem para outros países não podiam usar anéis, brincos, colares ou qualquer objeto contendo metais preciosos como ouro ou prata.

Pode parecer que a Europa resolveu seus problemas criando a União Européia, mas na verdade o problema só mudou de tamanho: o protecionismo agora é exercido em escala continental, e o comércio exterior é controlado de forma mais rígida, mais burocrática e mais distante do consumidor, por um batalhão de burocratas que o eleitor comum não conhece, não sabe onde está nem de onde veio. Importações de fora não são formalmente proibidas; ao invés disso, são inviabilizadas por milhares de normas técnicas, padronizações, documentações obrigatórias e burocracias em geral.

Hoje em dia, é irônico constatar que mesmo os que em princípio se beneficiariam com o protecionismo saem prejudicados. O lucro que eles conseguem é consumido com inúmeros pequenos prejuízos causados pelo protecionismo dos outros. Seria o caso de olhar o exemplo da história e voltar aos tempos mais simples, mas isso parece impossível. É um caso estranho onde todos perdem, e ninguém consegue perceber.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

BALANÇA COMERCIAL

Desde Adam Smith muitos economistas tentaram desfazer os mitos sobre a chamada “balança comercial”, mas estes mitos ainda persistem. A razão é que eles são convenientes para defender o protecionismo.

É simples perceber que o protecionismo não aumenta a prosperidade nem beneficia a população de um país. Se prosperidade significa ter acesso a bens e serviços, é óbvio que quando o governo restringe o acesso a bens e serviços (essa é a definição de protecionismo) a população está sendo prejudicada.

O conceito de balança comercial vem do tempo em que os reis viam o país como sua propriedade, e as pessoas viam o rei como a personificação da nação. Neste contexto, o conceito faz sentido. O rei precisa pagar suas despesas, seu palácio, seus assessores e (principalmente) seu exército. Sem dinheiro, ele se tornaria um ex-rei rapidamente.

Assim, na mente do rei e de seus ministros, “país”, “governo” e “economia nacional” são sinônimos, e portanto é fácil concluir que a economia de um país deve ser organizada como uma empresa: visando lucro. Uma empresa lucra produzindo e vendendo bens, e fazendo com que a receita desta venda seja maior do que a despesa. Da mesma forma, o rei e seus ministros procuram vender o que foi produzido em “seu” país e deseja que a receita destas vendas seja a maior possível.

Nessa concepção, as pessoas que vivem no reino não são vistas como cidadãos, mas como operários. Eles não têm direito à sua própria vida ou à sua própria prosperidade. Sua função é produzir bens que serão tomados pelos funcionários do rei e vendidos para o exterior, para encher de moedas os baús do rei. País rico, nessa visão, é aquele que tem um rei rico, não aquele onde a população é rica.

Obviamente, se exportações são incentivadas para arrecadar mais, importações são indesejáveis porque implicariam em gastar o dinheiro recebido. Daí surge o conceito de que exportar muito e importar pouco significa “balança comercial favorável”, enquanto que o contrário é visto como um déficit “indesejável”.

Mas no conceito moderno de país, tudo isso não faz mais sentido. Os países de hoje não são mais propriedade particular de seus soberanos. Cada pessoa tem o direito de buscar a sua felicidade e a sua prosperidade através do trabalho, e prosperidade não é juntar dinheiro, prosperidade é obter as coisas que o dinheiro pode comprar. Ao restringir importações em nome do protecionismo ou da balança comercial, o que o governo faz é desvalorizar o trabalho das pessoas, roubando-lhes o poder de compra: se importações são proibidas, a lei da oferta e procura fará o preço das coisas aumentar, e o dinheiro comprará menos. Além disso, quanto mais exportações, menos sobra para o mercado interno, e o preço também sobe.

Se o povo como um todo é prejudicado, alguns poucos são beneficiados: são aqueles que são protegidos da concorrência e ganham maior liberdade para cobrar mais caro e até mesmo para ser ineficientes. É a força que esses poucos têm junto aos políticos que conserva vivo o conceito de balança comercial, que já deveria ter falecido de morte natural há séculos.

Uma nação não deve ter objetivos contábeis nem buscar superavit. Os objetivos de uma nação devem estar na escala humana, aumentando o poder de compra de seus cidadãos. Tratar o comércio realizado por pessoas e empresas como se fossem realizados por uma corporação gigante chamada estado não é apenas uma questão acadêmica. É uma política errada e economicamente destrutiva.

Baseado neste artigo de Donald Boudreaux. Clique aqui para ler.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

A GUERRA ÀS DROGAS

O gosto pelo fingimento e pela hipocrisia faz parte da natureza humana, em todo o mundo, mas não dá para negar que nosso Brasil está entre os primeiros nesse quesito. Somos a terra do “é proibido mas pode”. Cassinos são proibidos mas existem em qualquer cidade média. Aborto é proibido mas quem quiser faz com a maior tranquilidade (cinquenta mil por ano segundo as estimativas mais prudentes). Jogo do bicho é crime mas no carnaval os bicheiros são celebrados na televisão como beneméritos das escolas de samba. No tempo do câmbio controlado, os noticiários informavam todo dia a cotação “no oficial” e a cotação “no paralelo”. Sempre tivemos “leis que pegam” e “leis que não pegam”.

Claro que nada disso chega perto, em termos de incoerência, com a chamada “Guerra às Drogas”. O desenho abaixo sintetiza bem o porquê.

O que hoje é chamado de “guerra às drogas” é o resultado da união de dois interesses, um econômico e um político. Em inglês, é costume referir-se a esta união com uma expressão que pode ser traduzida como “moralistas e contrabandistas”.

“Contrabandistas” são os que ganham dinheiro com a proibição, que na verdade é mais uma reserva de mercado. O governo usa o seu “monopólio da força” para eliminar os competidores, e deixa o mercado livre para os seus aliados. O exemplo da chamada “Lei Seca” nos EUA mostra bem que quanto mais tempo dura uma proibição, mais a corrupção penetra em todas as instâncias do governo. Os altos lucros atraem políticos, juízes e policiais (todos abrigados pelo corporativismo estatal) para participar do negócio e protegê-lo usando seus cargos. A postura deste grupo é “quanto menos se falar no assunto, melhor”.

“Moralistas” são o público-alvo de determinados políticos. Nas modernas democracias, um deputado nunca tenta agradar à maioria; ele se dedica a agradar uma minoria que lhe traga votos suficientes para se eleger (no Brasil, um deputado pode ser eleito com menos de 1% dos votos de seu estado). No caso das drogas, o alvo são aquelas pessoas que encaram o assunto de forma dogmática e que gostariam que sua opinião pessoal fosse imposta ao restante do mundo. Para esse público, o discurso de políticos demagogos soa como música: promessas de “guerra sem trégua” e “leis mais duras” que se repetem a cada eleição, mesmo com todos os fatos mostrando que isso é inútil. É que esse tipo de eleitor só aceita que exista um remédio para cada problema, e quando o remédio não funciona, a solução é sempre aumentar a dose.

Não é preciso ser um militar de carreira para saber que, em uma guerra, é importante saber quando se está ganhando ou perdendo, e ajustar a estratégia de acordo com isso. Quando a guerra é conduzida pelos políticos, entretanto, isso é ignorado. Não existem fatos ou números, apenas retórica e discursos emocionados. Quase pode-se dizer que não importa que as drogas sejam comercializadas e usadas livremente, que existam cracolândias no centro das cidades ou que os traficantes (em parceria com a fração corrupta do estado) controlem bairros inteiros; a única coisa que importa é que a lei continue dizendo que é proibido e que muito dinheiro continue a ser gasto em operações inúteis mas que dão audiência na TV.

Apenas como exemplo: só o estado de São Paulo gasta mais de quatro bilhões de reais por ano na suposta “guerra”. O resultado: estimativas da Polícia Federal dizem que menos de 10% da cocaína que entra no país é apreendida.

Enquanto isso, alguns países mostram que existem outras formas de tratar a questão. Por exemplo: a Suíça (que dificilmente será acusada de ser um país subdesenvolvido) implantou em 1994 uma nova política em relação às drogas, que deixou de lado a idéia de “guerra” e passou a concentrar-se na ajuda aos viciados, redução de danos e facilidade de tratamento.

Nos últimos 20 anos o número de processos judiciais relacionados a drogas caiu 75%. Ao mesmo tempo, os casos de contaminação por HIV caíram 84%. Mortes por overdose caíram 64%. O número de viciados que busca ajuda médica chegou a 95%. Os crimes relacionados a uso de drogas caíram 75%, e, mais especificamente, as ocorrências de furto ou roubo cometidas por viciados caíram nada menos que 98% !

Em 2019 os deputados da Califórnia aprovaram a criação de um projeto-piloto que tentaria aplicar algumas das idéias suíças. O governador, que provavelmente tem o dom da clarividência, vetou o projeto com o argumento “isso nunca vai funcionar” (os eleitores moralistas adoraram).

Outro caso de sucesso que vai na mesma direção é Portugal. Em 2001, o país adotou uma política de “descriminalização”: qualquer pessoa portando o equivalente a até dez dias de consumo não é mais assunto da polícia ou da justiça. O dinheiro que era gasto em operações policiais passou a ser usado em clínicas de tratamento e políticas de apoio e redução de danos. Resultados: o número de casos de HIV, que era o maior da Europa em 2000, caiu mais de 90%. O índice de mortes causadas pelo uso de drogas é cinco vezes menor que a média da União Européia. O número de pessoas que procura tratamento médico aumentou 60%. O número de usuários, segundo pesquisas do governo, caiu, especialmente entre os jovens de 15 a 25 anos, que é o grupo mais vulnerável (8% em 2001, 6% em 2012). Em 1999, 44% dos presos em Portugal haviam sido condenados por questões relacionadas a drogas. Em 2021, este número caiu para 16%.

Mais números sobre Portugal podem ser vistos clicando aqui. A experiência está sendo estudada em muitos países e vários estão a caminho de adotar políticas semelhantes (provavelmente a Noruega será a próxima). Nós, como em tantas outras ocasiões, podemos aprender com a experiência alheia ou podemos continuar fingindo que sabemos mais do que todo mundo.