Existem duas maneiras de enxergar a história. A primeira é vê-la do ponto de vista dos seres humanos. A segunda, mais comum, ignora a individualidade das pessoas e vê o mundo como um conjunto de países. Esta segunda opção reduz a história a um punhado de listas com datas e nomes de heróis, e decorar estas listas é chamado “estudar história” em muitas escolas. Nesta “história”, só os países e seus governos fazem alguma coisa: o país A conquista o país B, o país X entra em guerra com o país Y, os países compram, vendem e constroem coisas. As pessoas não existem, são apenas peças do mecanismo.
Estas visões da história refletem diferentes visões do mundo. A primeira, que existiu em países como os Estados Unidos, vê o povo como soberano e o governo como um funcionário encarregado de algumas tarefas. A segunda é a visão que predomina no mundo de hoje, e vê exatamente o contrário: o governo é o soberano e o povo é servo ou escravo deste governo (não é funcionário porque funcionários são pagos). Neste mundo, o povo não tem opinião, quem tem opinião é o governo, ou melhor, as pessoas que formam o governo. Elas têm o poder de impôr o seu ponto de vista sobre os demais, e fazem isto de várias maneiras. Uma delas é justamente “reescrever” a história, ou seja, modificar tanto o registro dos fatos como a sua interpretação. Com isso, as pessoas ficam impossibilitadas de discordar.
Um caso exemplar dessa “reconstrução do passado” envolve a guerra que aconteceu nos EUA entre 1861 e 1865. Os fatos históricos vêm sendo sistematicamente manipulados e reescritos para transformar a história em uma narrativa conveniente.
Os fatos são os seguintes:
– Em 1776, após uma guerra contra a Inglaterra, os moradores dos EUA disseram que não eram mais súditos do rei inglês. Foi redigido um documento, que ficou conhecido como “Declaração de Independência”, que dizia “declaramos que estas Colônias unidas são Estados Livres e Independentes”.
– Dez anos depois, foi elaborada uma constituição que foi ratificada e aceita por cada um dos “Estados Livres e Independentes”. Os estados de Rhode Island, New York e Virgínia incluíram em sua ratificação uma cláusula que lhes dava o direito de separar-se da União. Estas cláusulas nunca foram questionadas.
– Com o passar do tempo, novos estados foram sendo criados, e cada um deles ratificava sua entrada na União, sob a constituição vigente.
– Na década de 1850, havia um grande desagrado nos estados do sul com relação ao governo central. O cálculo da população, que determinava o número de deputados de cada estado, favorecia os estados do norte, que assim garantiam a maioria no congresso. Com essa maioria, o governo central favorecia os estados do norte, mais industrializados, que pediam protecionismo, ou seja, restrições ao comércio exterior. O sul, ao contrário, era exportador e portanto queria liberdade de comércio.
– Segundo a constituição, o único imposto a cargo do governo federal era sobre importações e exportações. Em 1860, o congresso aprovou a tarifa Morril, que aumentou essas tarifas em mais de 70%. Os estados do sul representavam três quartos do comércio exterior e portanto seriam os mais prejudicados.
– Também havia pressões abolicionistas por parte de alguns estados do norte. Não era exatamente por bondade ou por algum sentimento aos moldes dos de hoje. Simplesmente a economia destes estados não precisava de mão-de-obra escrava, e eles desejavam que os escravos dos outros estados passassem a ser consumidores de seus produtos.
– Em novembro de 1860, Lincoln foi eleito presidente por um colégio eleitoral que, segundo os sulistas, favorecia injustamente os estados do norte. Ele foi o mais votado nos estados do norte e perdeu em todos os estados do sul.
– Três dias após a vitória de Lincoln, a câmara de deputados da Carolina do Sul declarou a intenção de separar-se da união. Foi convocada uma eleição para escolher representantes de cada cidade e em 17 de dezembro estes representantes eleitos votaram pela secessão (169 votos a favor e 0 contra). O presidente James Buchanan, que estava nos últimos dias de seu mandato, ignorou a declaração.
– O comandante das tropas federais no estado, Major Robert Anderson, havia reunido todas as tropas e armas no Forte Sumter, que protegia o acesso ao porto de Charleston. Após a declaração de secessão, o governador do estado pediu ao Major Anderson que abandonasse o forte. Anderson se recusou.
– Em fevereiro do ano seguinte, os estados da Flórida, Mississipi, Alabama, Georgia e Louisiana declararam a sua saída da União e a formação de um novo país, chamado Estados Confederados da América. A Carolina do Sul uniu-se a eles dias depois.
– Em abril, já com Lincoln na presidência e o Major Anderson se recusando a se retirar do Forte Sumter, a marinha dos EUA enviou uma frota para Charleston. Antes que a frota chegasse, o governador decidiu atacar o forte, que foi atingido por artilharia durante um dia e meio. O forte rendeu-se (sem nenhuma baixa).
– Poucos dias depois, o presidente Lincoln disse aos estados do norte que necessitava formar um exército de 75.000 voluntários para “retomar os fortes, proteger a capital (Washington) e preservar a União”.
– Em 1862, o Congresso dos EUA, que tinha apenas representantes apenas do norte (os do sul se retiraram, já que seus estados declararam que não faziam mais parte da União) aprovou duas medidas importantes do ponto de vista histórico: a permissão para o governo fabricar dinheiro de papel (segundo a constituição, o dinheiro deveria ser cunhado em ouro ou prata) e a criação de um imposto de renda, com a aliquota máxima de 3% e a duração de cinco anos (não é preciso dizer que hoje, dois séculos depois, o imposto continua sendo cobrado e com uma alíquota bem maior).
– Em 1863, Lincoln assinou a Proclamação de Emancipação: ela declarava livres os escravos APENAS dos estados que eram considerados “rebeldes” pelo governo federal, e dava a estes escravos libertados o direito de entrar para o exército da União.
– Com mais dinheiro, mais tropas e com uma marinha muito mais forte, a União venceu a guerra em 1865, deixando aproximadamente 650.000 soldados mortos, um número desconhecido de vítimas civis, e a economia e a infraestrutura dos estados do sul destruídas.
– Lincoln nunca assinou uma lei “libertando todos os escravos” ou “proibindo a escravidão”. Após sua morte em 1865, o fim da escravidão veio aos poucos, com leis distintas em cada estado.
Do ponto de vista humano, a questão parece bem clara: o povo de alguns estados “Livres e Independentes” decidiu não mais fazer parte da União. Isso até estava previsto na constituição, mas não era necessário; se o poder “emana do povo”, a lei não pode estar acima da vontade popular. Quanto ao Forte Sumter, ele estava no território da Carolina do Sul e foi construído com o dinheiro do povo daquele estado. Na visão original dos EUA, o governo existe para servir ao povo, e não faz sentido ele ser “dono” de alguma coisa.
Para quem adota o ponto de vista oposto, a explicação fica bem mais simples: alguns estados quiseram se separar da União e deveriam ser impedidos. Para quem vê o mundo dessa forma, países são como as casas mal-assombradas dos filmes de terror: quem entra nunca mais sai. Se um grupo de pessoas quer separar-se de um país, é preferível o governo matá-las do que permitir que elas se separem e vivam da forma que desejam.
Na década anterior, Lincoln havia se manifestado a favor do direito de secessão. Em um discurso na Câmara dos Deputados em 1848, ele disse:
“Quaisquer pessoas, em qualquer lugar do mundo, que estejam dispostas e tenham o poder para tal, têm o direito de se insurgirem e se desvencilharem do governo vigente, e de formarem um novo governo que lhes seja mais apropriado. … Tampouco está este direito restrito apenas a casos em que todos os cidadãos devem escolher exercê-lo. Qualquer fatia de um povo que se sinta capaz pode fazer uma revolução, se seceder e se apossar de toda a área daquele território em que habitam.”
Na época, ele se referia à guerra contra o México e à subsequente secessão do Texas em relação àquele país. Quando ele se viu do outro lado, sua opinião mudou radicalmente. Seus fãs de hoje em dia ignoram o Lincoln de 1848 e apoiam o Lincoln de 1861, que acha que a secessão deve ser reprimida pela guerra.
Durante muito tempo, a guerra iniciada por Lincoln foi conhecida como a Guerra de Secessão. Mas nos últimos tempos o desejo de poder dos governos tornou-se tão forte que até mesmo palavras se tornaram inaceitáveis. Por isso, foi escrita uma nova história: Lincoln era o “bonzinho” que queria libertar os escravos e os estados do sul eram os “malvados” que eram racistas e escravagistas. Ainda que totalmente falsa e inconsistente com os fatos, essa nova visão espalhou-se pelos livros e pelos ambientes acadêmicos com rapidez. A guerra foi rebatizada de “Guerra Civil” e, seguindo o costume, o lado que venceu foi declarado “certo” e o lado que perdeu foi declarado “errado”, o que iniciou um movimento de destruição de tudo que não se ajustasse à nova narrativa, incluíndo retirada de estátuas e monumentos. A bandeira confederada, que por muito tempo foi usada por habitantes do sul como um símbolo de sua região e de sua cultura, hoje pode dar cadeia.
Afinal, Lincoln era racista? Não era mais racista do que a grande maioria dos seus conterrâneos, mas certamente suas idéias não seriam consideradas politicamente corretas nos dias de hoje. Em 1858, no célebre debate com Stephen Douglas, Lincoln disse:
“Não sou, nem nunca fui, a favor de criar a igualdade social e política das raças branca e preta; não sou, nem nunca fui, a favor de transformar negros em eleitores ou jurados, nem de habilitá-los a exercer cargos públicos, nem de permitir seu casamento com pessoas brancas. Há uma diferença física entre as raças branca e preta que, creio eu, irá para sempre proibir as duas de viverem juntas em termos de igualdade social e política. Enquanto elas coexistirem terá de haver a posição do superior e do inferior, e eu sou a favor de que a posição superior seja da raça branca.”
O que é importante entender é que a questão da abolição não tinha nada a ver com igualdade ou racismo; era uma questão basicamente política que se transformou em uma questão militar. A Proclamação de 1863 visava apenas prejudicar a economia dos estados do sul. Isso fica bem claro nessa famosa declaração de Lincoln:
“Se eu pudesse salvar a União sem libertar qualquer escravo, eu o faria; se eu pudesse salvá-la libertando a todos, eu o faria; se eu pudesse salvá-la libertando alguns e deixando outros por sua própria conta, eu também o faria. O que eu fiz a respeito da escravidão e da raça negra eu fiz acreditando que ajudaria a salvar a União.”
Um último fato interessante: enquanto George Washington, considerado o fundador dos EUA, foi homenageado na capital com um obelisco, Lincoln é lembrado com um imenso panteão que abriga uma estátua sua de quase seis metros de altura:
As mãos de Lincoln se assentam sobre dois feixes de varas amarradas com tiras de couro. Esse símbolo é idêntico ao que era usado pelos imperadores da antiga Roma, onde era chamado de fascio (fasces no plural) e representava o poder. O site oficial do governo dos EUA explica o seguinte:
“Os fasces indicam que uma pessoa detém o imperium, ou autoridade executiva. Exercendo o imperium, um líder romano podia esperar que suas ordens seriam obedecidas; podia determinar punições e mesmo a execução de quem desobedecesse.”
O monumento de Lincoln foi construído em 1922, na mesma época em que outro país também havia adotado o símbolo dos fasces e o conceito da autoridade a quem todos devem obediência: a Itália de Benito Mussolini, que usou não apenas o símbolo e a ideologia, mas também o nome, batizando seu regime de fascismo. A idéia do poder do estado sobre o povo é a mesma nos três casos.
Quem poderia imaginar, não é mesmo? Abraham Lincoln, fascista.