PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

CANTIGA PARA NÃO MORRER – Ferreira Gullar

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento

José Ribamar Ferreira, o  Ferreira Gullar, São Luís-MA, (1930-2016)

PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

SONETO DA MAIORIDADE – Vinícius de Moraes

O Sol, que pelas ruas da cidade
Revela as marcas do viver humano
Sobre teu belo rosto soberano
Espalha apenas pura claridade.

Nasceste para o Sol; és mocidade
Em plena floração, fruto sem dano
Rosa que enfloresceu, ano por ano
Para uma esplêndida maioridade.

Ao Sol, que é pai do tempo, e nunca mente
Hoje se eleva a minha prece ardente:
Não permita ele nunca que se afoite

A vida em ti, que é sumo de alegria
De maneira que tarde muito a noite
Sobre a manhã radiosa do teu dia.

Vinicius de Moraes, Rio de Janeiro-RJ (1913-1980)

PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

A TARDE – Leandro Gomes de Barros

Tomba a tarde, o sol baixa seus ardores,
Alvas nuvens no céu formam lavores
E a voz da passarada o campo enchendo:
A juriti em seu ramo de dormida
Soltando um canto ali por despedida,
Dando adeus ao sol que vai morrendo.

E mergulha o sol pelo ocaso,
Já o dia ali venceu o prazo,
Abrem flores, o orvalho em gotas vem;
Limpa o céu, o firmamento se ilumina,
Uma luz alvacenta e argentina
Já se avista no céu, mas muito além.

Regressam do campo lavradores,
Apascentam os rebanhos os pastores,
E o mundo fica ali em calmaria;
A matrona embala o filho pequenino
E prestando atenção à voz do sino
Quando dobra no templo a Ave-Maria.

Vem a noite, dormem ali as cousas mansas,
Dormem qu’etos os justos e as crianças,
E a Virgem envia preces à divindade;
A velhice recorda arrependida
Todo erro que fez em sua vida
E murmura: Quem me dera a mocidade.

Leandro Gomes de Barros, Pombal-PB (1865-1918)

PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

AMAR! – Florbela Espanca

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui… além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…

Florbela Espanca, Vila Viçosa, Portugal (1894-1930)

PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

SONETO DA CONCILIAÇÃO – Lêdo Ivo

Que o amor não me iluda, como a bruma
que esconde uma imprevista segurança.
Antes, sustente o chão em que descansa
o que se irá, perdido como a espuma.

Veja que eu me elegi, mas sem nenhuma
razão de assim fazer, e sem lembrança
de aproveitar apenas a esquivança
de que o amor não prescinde em parte alguma.

Que também não se alheie ao que esclarece
o motivo real, de uma oferta,
reunir o acessório e o imprescindível.

Antes, atente a tudo o que se tece
distante do seu dia inconsumível
que dá certeza à noite mais incerta.

Lêdo Ivo, Maceió-AL, (1924-2012)

PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

LIVRE – Cruz e Souza

Livre! Ser livre da matéria escrava,
arrancar os grilhões que nos flagelam
e livre penetrar nos Dons que selam
a alma e lhe emprestam toda a etérea lava.

Livre da humana, da terrestre bava
dos corações daninhos que regelam,
quando os nossos sentidos se rebelam
contra a Infâmia bifronte que deprava.

Livre! bem livre para andar mais puro,
mais junto à Natureza e mais seguro
do seu Amor, de todas as justiças.

Livre! para sentir a Natureza,
para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.

João da Cruz e Sousa, Florianópolis-SC, (1861-1898)

PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

HISTÓRIA ANTIGA – Raul de Leoni

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi… um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era… Não sabia…

Desde então, transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para frente…

Nunca mais nos falamos… vai distante…
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la…

Raul de Leoni, Petrópolis, (1895-1926)

PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

HISTÓRIA ANTIGA – Raul de Leoni

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi… um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era… Não sabia…

Desde então, transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para frente…

Nunca mais nos falamos… vai distante…
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la…

Raul de Leoni, Petrópolis, (1895-1926)

PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

AMOR QUE MORRE – Florbela Espanca

O nosso amor morreu… Quem o diria?
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria…
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre… e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia…

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer,
E são precisos sonhos pra partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que há-de vir!

Florbela Espanca, Vila Viçosa, Portugal (1894-1930)

PEDRO MALTA - A HORA DA POESIA

INGRATIDÃO – Raul de Leoni

Nunca mais me esqueci! … Eu era criança
E em meu velho quintal, ao sol-nascente,
Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira adolescente.

Era a mais rútila e íntima esperança…
Cresceu… cresceu… e aos poucos, suavemente,
Pendeu os ramos sobre um muro em frente
E foi frutificar na vizinhança…

Daí por diante, pela vida inteira,
Todas as grandes árvores que em minhas
Terras, num sonho esplêndido semeio,

Como aquela magnífica amendoeira,
Eflorescem nas chácaras vizinhas
E vão dar frutos no pomar alheio…

Raul de Leoni, Petrópolis, (1895-1926)