MAURINO JÚNIOR - SEM CRÔNICAS

COP30: O GRANDE TEATRO DO DESVIO CLIMÁTICO

Veio o grande circo. Palco da esperança ecológica, cartaz publicitário da salvação do planeta — e, no entanto, encenado com luxo, privilégio e inconsistência. A COP30 ergueu-se prometendo salvar a Amazônia, domar o aquecimento global, restaurar a justiça climática. Mas o que vemos, nas entrelinhas da propaganda, é o espetáculo dos desvios — de finalidade, de prioridades, de honestidade.

1. A hipocrisia estrutural

Os delegados chegaram para discutir emissões-zero e descarbonização enquanto as emissões globais continuavam a subir. Os anfitriões brasileiros anunciaram ser “a COP na Amazônia”, símbolo de sustentabilidade — e, simultaneamente, avalizaram leilões de exploração de óleo e expansão de infraestrutura que favorecem o agronegócio e os combustíveis fósseis.

O discurso: “Defender a floresta, proteger o clima”. A prática: reuniões em navios-cruzeiro, hotéis sobrecarregados, taxas de estadia para países pobres maiores que toda a contribuição de alguns para a própria conferência.

2. O custo da exclusão

Uma das grandes piadas desta COP30 é a ideia de “inclusão global”. Mas como incluir quando se exige das delegações diárias de US $ 700 ou mais por noite — enquanto muitos países vulneráveis têm orçamentos reduzidos à míngua?

A cidade-sede, Belém, com 18.000 leitos para estimados 45.000 participantes — problema logístico grave? Sim. Mas grave sobretudo é serem os países mais atingidos pelas mudanças climáticas aqueles que ficam de fora porque “não cabem” no orçamento do espetáculo.

Assim, a salvação do planeta vira convenção de ricos — ou convenção que só incluem aos que podem pagar.

3. Distorção da finalidade: espetáculo versus ação

O que esta COP mais entrega: painéis, discursos, compromissos que soam grandiosos, frases de efeito. Mas onde está a alocação concreta de fundos, a limitação real das emissões, a supervisão eficaz das metas? Os relatórios mostram que apenas 25 países haviam submetido suas novas contribuições nacionais (NDCs) antes da COP30.

Dito de outra forma: chegamos à COP para “salvar o clima”, mas sem que o mecanismo global tenha equilibrado de fato a balança entre promessa e execução. Enquanto isso, a energia predatória segue em ascensão, os combustíveis fósseis seguem financiados, os lucros dos grandes atores permanecem intactos.

4. Luxo, ostentação e descompasso moral

Enquanto o mundo clama por moderação de carbono, se inaugura infraestrutura própria para acomodar delegações: navios-cruzeiro como hotéis temporários, iates e barcos transformados em “soluções de alojamento” — alusão grotesca ao “vamos debater o clima enquanto navegamos no símbolo do luxo”. Para muitos, a COP30 tornou-se o palco do que o comentarista chamou de “climate greenwashing deluxe”, traduzido ao pé da letra como “lavagem verde climática de luxo.”

Não é mero detalhe: é metáfora da falência ética daquilo que deveria ser o mais sério compromisso coletivo da humanidade.

5. O resultado previsível: esperanças perdidas

Há pouco mais que retórica. O cronograma global de US $ 300 bilhões anuais até 2035 foi anunciado no COP29, mas qual o mecanismo concreto para cumprir? Tendências mostram que a ambição falha e que o cronograma será estendido ou recuado.

Enquanto isso, o relógio climático não espera.

Conclusão: O Despertar ou o Acordar Tardio

A COP30 podia ser um monumento de viragem — mas corre o risco de ser apenas mais um símbolo de impotência, com rostos famosos, discursos eloquentes e almoços nababescos, mas sem mudanças reais. A hipocrisia não está nas intenções, nem sequer sempre nos indivíduos. Está na “estrutura”. (Leia-se aqui, o desgoverno). Quando a finalidade original — “reduzir emissões, proteger os vulneráveis, reconstruir a justiça” — se transforma em “login em viagem internacional, encontro de elites, protocolo diplomático”, o resultado não podia ser diferente: espetáculo sem substância.

É hora de exigir que resumam menos, façam mais. Que não se reservem iates e navios-cruzeiro para debater justamente, modo de vida sustentável. Que países vulneráveis tenham assento de verdade, não ingresso de luxo. Que promessa signifique execução, e que metas inalcançáveis deixem de ser promessa de marketing.

Porque se o grande encontro global para “salvar o clima” não for credível, será apenas parte do problema — e não da solução.

MAURINO JÚNIOR - SEM CRÔNICAS

A VERGONHA LÚCIDA DOS QUE AINDA AMAM O BRASIL

Há uma vergonha que não vem da covardia, mas da lucidez. Uma vergonha que não é a negação da pátria, e sim o desgosto de quem a enxerga por inteiro — sem filtros, sem slogans, sem o truque sentimental barato do verde-amarelismo de ocasião. É a vergonha de quem ama o Brasil, mas não suporta mais vê-lo desmentir-se todos os dias com a pontualidade de um relógio suíço e a desfaçatez de um carnaval fora de época.

Há uma vergonha que não nasce do ódio, mas do amor.

É a vergonha dos lúcidos, dos que ainda enxergam beleza onde a maioria vê apenas lama. A vergonha de ser brasileiro não é vergonha da terra, do povo, da língua ou da música — é a vergonha de ver um país tão vasto em talento e alma ser conduzido por mentes tão pequenas.

É a vergonha de quem observa, com o olhar cansado, a transformação do discurso público em feira de vaidades, em teatro grotesco, onde se confundem humor e cinismo, simplicidade e ignorância, carisma e demagogia.

Enquanto o Brasil pulsa sob um sol de ouro e música, lá em cima, nos palcos do poder, encena-se a tragédia da mediocridade: o riso fácil, o discurso vulgar, a piada de boteco disfarçada de diplomacia. E quem pensa, quem sente, quem ainda exige grandeza — se recolhe envergonhado, não por ser brasileiro, mas por ser brasileiro demais para suportar o rebaixamento constante do espírito nacional.

Essa vergonha não é covarde; é o contrário. É o eco de um amor não correspondido.

É o grito silencioso dos que sabem que o Brasil podia ser imenso — culturalmente, moralmente, espiritualmente — e, no entanto, insiste em tropeçar nas próprias sandálias, rindo da própria ruína.

Mas há algo de nobre nessa vergonha. Porque ela é o último sinal de que ainda há lucidez, ainda há esperança, ainda há quem queira ver o país de pé — limpo, digno, adulto.

Ter vergonha do Brasil é, paradoxalmente, amar o Brasil de forma mais pura: sem ilusões, sem bandeirinhas, sem slogans, apenas com o desejo de vê-lo enfim tornar-se aquilo que prometeu ser.

Ser brasileiro, hoje, é viver num eterno dilema entre a ternura e o náusea. É amar a música, o idioma, o povo, o céu, e ao mesmo tempo sentir vergonha das criaturas que, por acidente histórico e voto distraído, ocupam o poder. É ver um país de João Gilberto, Guimarães Rosa e Santos Dumont ser representado por bufões que tratam diplomacia como conversa de botequim e tragédias geopolíticas como rodadas de chope.

Vivemos numa república em que a ignorância não é mais um defeito — é um estilo de governo. O populismo tornou-se virtude, a improvisação virou método, e o “deixa comigo que eu resolvo tomando uma cerveja” virou doutrina de Estado. O país parece viver numa crônica de Nelson Rodrigues reescrita por um roteirista da Praça é Nossa.

E o mais espantoso: há quem bata palmas. Há quem chame de “espontaneidade”. Há quem veja genialidade onde há apenas a mais primária das indigências intelectuais.

Não há nada mais trágico do que ver a mediocridade aplaudida de pé.

E nós, que ainda temos a ousadia de pensar, somos tomados por essa vergonha antiga, que é quase amor em estado de desalento. Porque não odiamos o Brasil – odiar seria fácil.

Nós o amamos demais para suportar vê-lo assim, ajoelhado diante de sua própria caricatura.

O brasileiro lúcido é uma figura trágica: ele olha o país e sente, simultaneamente, orgulho e repulsa.

Orgulho pela arte, pela inteligência difusa nas esquinas, pela generosidade do povo anônimo.

Repulsa pelos discursos vulgares, pelas frases de efeito que soam como arrotos de boteco, pelo uso da ignorância como plataforma eleitoral.

É um eterno “sim, mas…” — um amor que se desculpa por existir.

O pior é que o Brasil se acostumou à piada.

A política virou stand-up; a seriedade, ofensa; o pensamento, um luxo supérfluo.

E enquanto os que leem, estudam, refletem e trabalham se recolhem — meio envergonhados, meio exaustos —, o país se diverte com a própria ruína.

Afinal, rir sempre foi o disfarce nacional para o desespero.

Mas há uma elegância silenciosa na vergonha.

Ela é o último resquício da decência.

É a confissão de que ainda há quem espere mais, quem exija mais, quem queira ver o país de pé, limpo, sóbrio e digno.

A vergonha lúcida é, paradoxalmente, o último sinal de esperança — o suspiro dos que não desistiram, mas já não se iludem.

O Brasil é uma promessa que insiste em não cumprir-se.

E nós, os envergonhados, somos os únicos que ainda acreditam que, talvez um dia, ele cumpra.

Até lá, seguimos — com o copo na mão, a ironia nos lábios e a lucidez nos ombros —, brindando àquilo que o Brasil poderia ter sido, se não insistisse tanto em ser apenas o que é atualmente: uma República Banânica.

MAURINO JÚNIOR - SEM CRÔNICAS

A NOITE DOS GEMIDOS EQUIVOCADOS

Nunca se sabe quando a vida decide nos pregar uma de suas pequenas, mas inesquecíveis, peças de teatro. Foi numa dessas madrugadas de Propriá, em 1992, que o ordinário se confundiu com o extraordinário, e o silêncio da noite se tornou cúmplice de um mal-entendido digno de um roteiro de comédia.

Minha ex-esposa e eu estávamos, enfim, descansando depois de um dia de cansaço razoável. Marcus Alexandre, nosso amigo recém-retornado de uma longa temporada missionária na Bolívia, também repousava, ou pelo menos tentava.

Pouco depois da 1 da manhã, estranhos sons começaram a perfurar a serenidade da casa. Gemidos, suspiros, exclamações curtas — “ain, ain, ain”, “unhé, unhé!” — seguidos de perguntas que soavam absurdamente sugestivas: “Quer mais, quer??”

Levantei-me e a minha ex-esposa assustada, atrás de mim perguntando o que seria aquilo, pois os barulhos e gemidos se intensificaram e, pouco depois, lá estava o Marcus Alexandre, também acordado, os olhos arregalados de incredulidade e como quem estava pensando: “Que diabos será isso?”

Olhei para o Marcus. Ele me olhou de volta, a expressão inconfundível: “Ôôôôôxi!”. Nenhum de nós precisava de tradução: o cérebro, por um instante, se recusou a processar a realidade.

A curiosidade — ou a imprudência — falou mais alto. Abrimos a porta. E ali, sob a luz pálida da madrugada, a revelação: um jovem casal, sentados nos degraus de acesso à porta de nossa casa. O rapaz, empenhado, entregava nada mais do que um cachorro-quente à namorada, que, por sua vez, era surda-muda. Os sons, ao invés de paixão proibida, eram apenas uma tentativa amorosa e barulhenta de comunicação — e de apreciação do lanche.

O riso foi inevitável. Eu ri tanto que minha garganta quase cedeu; minha ex-esposa, de tanto rir, chorava; Marcus, no outro quarto, tentava recuperar o fôlego entre gargalhadas. Na manhã seguinte, durante o café, ainda não nos recuperáramos. E o assunto, claro, dominou a mesa.

A vida, constatei, tem o poder de transformar a mais inocente das cenas em um episódio memorável. E às vezes, a comédia mora exatamente nos lugares onde menos esperamos — até que o cheiro de cachorro-quente e a inocência de um casal nos lembram que, afinal, o mundo é sempre mais engraçado e gentil do que imaginamos.

MAURINO JÚNIOR - SEM CRÔNICAS

MANUAL DO BOM HIPÓCRITA MODERNO

Quer sobreviver no século XXI sem suar? Senhoras e senhores, bem-vindos ao século XXI: a era em que a hipocrisia deixou de ser vício para se tornar currículo. O hipócrita moderno não é um dissimulado tímido, escondido nas sombras; ele é um artista performático, com perfil verificado e manual de conduta. Eis, portanto, o Manual do Bom Hipócrita Moderno.

Siga estas regras infalíveis do bom hipócrita:

1. Opine sobre tudo: Não importa se não leu, não estudou, não sabe. O silêncio é mortal para a reputação digital. Diga qualquer coisa, mas diga com convicção.

2. Indigne-se seletivamente: Indignação universal é cara; escolha causas que deem visibilidade. Se possível, aquelas que tenham emoji próprio.

3. Seja inclusivo em público, exclusivo em privado: Pregue diversidade nas redes; no churrasco de sábado, convide sempre os mesmos amigos.

4. Apoie minorias — desde que não atrapalhem seu conforto: Poste frases de efeito, mas não ouse abrir mão de privilégios concretos.

5. Adote palavras mágicas: Sustentabilidade, resiliência, empoderamento, equidade. Não precisam significar nada; apenas soam bem.

6. Apague rastros: Hipócritas antigos eram pegos pela memória das pessoas; o moderno confia na memória curta das redes. Delete, poste outra coisa, siga em frente.

7. Primeira regra: fale de tudo, mesmo sem saber nada. A ignorância só é pecado quando silenciosa; com hashtags, ela vira virtude.

8. Segunda regra: indigne-se seletivamente. Guarde energia para causas que deem visibilidade. Melhor ainda se tiverem emoji próprio: arco-íris, punho cerrado, planeta Terra.

9. Terceira regra: pregue diversidade em público, mas mantenha sua bolha intacta em privado. Assim você exibe consciência sem renunciar ao conforto.

10. Quarta regra: use sempre palavras mágicas. Resiliência, empoderamento, equidade. Elas funcionam como perfume: escondem o mau cheiro da incoerência.

11. Quinta regra: pratique o ativismo performático. Poste uma foto com filtro, um texto copiado de Wikipedia e declare-se engajado. Se alguém cobrar coerência, diga que “o importante é levantar a bandeira”.

12. Sexta regra: apague rastros. O passado? Delete. O presente? Poste outra coisa. O futuro? Depende da próxima tendência.

Com esse manual, o hipócrita moderno não apenas sobrevive: ele é celebrado. É convidado para painéis, entrevistas e podcasts. Afinal, nada mais admirado hoje do que a capacidade de vender imagem. E se a máscara cair? Faça cara de vítima. No palco atual, a vítima sempre sai ovacionada.

A hipocrisia, enfim, deixou de ser pecado mortal e virou soft skill. E quem não aprender esse ofício corre o risco de ficar para trás — com a incômoda desvantagem de ainda ter que ser autêntico.

Seguindo esse manual, você não será apenas um sobrevivente: será celebrado como “engajado”. O segredo é simples: não precisa mudar nada — só parecer. E, se for descoberto, faça cara de vítima. Afinal, no mundo atual, até a hipocrisia tem passe livre — desde que bem embalada.

MAURINO JÚNIOR - SEM CRÔNICAS

O BRASIL DA INVERSÃO DE VALORES: A CRISE DE JUSTIÇA E A REVOLTA DO CIDADÃO

Vivemos em um Brasil onde a realidade parece ter sido desconectada do senso comum de justiça. Em meio a um cenário de violência crescente, desigualdade social gritante e decisões judiciais cada vez mais questionáveis, o sentimento de frustração e impotência toma conta de milhões de brasileiros que se veem abandonados por aqueles que deveriam representá-los.

Casos recentes envolvendo a soltura de criminosos acusados de crimes bárbaros, como assassinatos e decapitações, causam indignação pública não apenas pela brutalidade dos atos, mas pela justificativa frágil das decisões. A alegação de que esses indivíduos “não representam perigo à sociedade” beira o cinismo, e deixa clara uma desconexão entre a teoria jurídica e a realidade vivida nas ruas.

O Judiciário brasileiro, que deveria ser o guardião dos direitos e da ordem, tem sido percebido por muitos como seletivo, distante e, em alguns casos, comprometido com interesses que não são os do povo. Decisões contraditórias, ativismo judicial desproporcional e falta de responsabilização criam um ambiente de insegurança jurídica e social.

Paralelamente, o atual governo, que deveria conduzir políticas públicas eficazes e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, demonstra omissão diante de pautas urgentes. Ao ignorar os clamores populares, normalizar a impunidade e fechar os olhos para abusos cometidos em diversas esferas do poder, transmite à sociedade a mensagem de que a justiça é um privilégio de poucos.

Esse cenário aprofunda o sentimento de que vivemos uma inversão de valores: o cidadão honesto é tratado como suspeito, enquanto criminosos recebem tratamentos brandos em nome de um garantismo que, muitas vezes, serve mais como escudo político do que como instrumento de equidade.

Não se trata aqui de clamar por vingança, mas por coerência. O povo brasileiro não pede punições desmedidas, mas sim justiça real, proporcional e acessível. Quando o Estado falha em aplicar a lei com firmeza e equidade, mina-se a confiança social e alimenta-se a descrença nas instituições.

É preciso um movimento de reflexão nacional. O Brasil precisa urgentemente de um pacto entre seus cidadãos, juristas e governantes para resgatar o valor da justiça, da ética e da responsabilidade pública. Ignorar esse chamado é perpetuar o abismo entre a lei e a vida.

A indignação não é apenas um sentimento: é um sinal de que ainda há consciência. E é a partir dela que pode nascer a mudança que tanto esperamos.

MAURINO JÚNIOR - SEM CRÔNICAS

A DITADURA DO POLITICAMENTE CORRETO

O século XXI inventou uma nova Inquisição — só que agora os inquisidores não usam batina nem carregam tochas; carregam hashtags. O politicamente correto se tornou a nova gramática moral: não se trata de respeitar, mas de domesticar. As palavras, antes pontes, viraram minas terrestres: pisa em falso, explode.

A ironia? O politicamente correto nasceu como antídoto contra preconceitos. Mas, em pouco tempo, foi sequestrado pelos sacerdotes do ressentimento. Agora, em vez de libertar, aprisiona. Não se pode rir, não se pode pensar em voz alta, não se pode experimentar ideias. Tudo precisa ser testado num laboratório de assepsia social — onde as frases são passadas em álcool gel antes de chegar ao público.

Resultado: o humor morreu, a espontaneidade foi demitida e a conversa transformou-se num manual de conduta. Ninguém fala: emite comunicados. Ninguém pensa: consulta cartilhas. O medo não é de errar — é de ser filmado errando. Assim nasce a “ditadura soft”: sem tanques nas ruas, mas com censores em cada timeline.

E a vida, como sempre, vinga-se: quanto mais tentam impor pureza, mais cresce a hipocrisia. O politicamente correto não gera bondade; gera máscaras. E, por baixo delas, continuam os mesmos vícios de sempre, só que agora envernizados.

Há ditaduras que se impõem com fuzis, tanques e censores oficiais. Outras, mais sutis, não precisam de exércitos — basta um exército de ofendidos com celular na mão. Essa é a ditadura do politicamente correto: não tem quartel-general, mas controla corações e mentes pela chantagem moral.

O curioso é que nasceu com intenções legítimas. Evitar ofensas, respeitar minorias, refrear preconceitos — quem poderia ser contra? Mas o bom propósito foi sequestrado por patrulhas ideológicas que não diferem muito dos antigos censores. Trocaram a mordaça pelo “cancelamento”, a fogueira pelo “exposed” e o tribunal pela timeline.

Hoje, quem ousa arriscar uma piada, um comentário, uma frase fora do script, pode ter sua vida virada do avesso. O que era erro vira crime, e o que era divergência vira blasfêmia. O humor, essa arte nobre de revelar verdades escondidas, foi condenado à clandestinidade. A espontaneidade virou suspeita. O diálogo, uma coreografia ensaiada de termos autorizados.

O politicamente correto não cria cidadãos melhores; cria cidadãos com medo. É uma ditadura sem quartel, mas com muita delação: todo mundo vigiando todo mundo, como se a virtude dependesse da censura. No fundo, é só mais uma forma de controle — e como toda forma de controle, gera hipocrisia. Por fora, discursos floridos; por dentro, preconceitos intactos.

A verdadeira liberdade não é falar sem pensar, mas pensar sem medo. Se não podemos rir de nós mesmos, se não podemos ironizar o poder, se não podemos nem tropeçar na palavra errada sem correr risco de linchamento moral, então estamos de volta à Idade Média — só que com Wi-Fi.

MAURINO JÚNIOR - SEM CRÔNICAS

DA TEORIA DOS CHATOS… UMA CRÔNICA DA CHATICE…

Sempre procurei me inspirar nos maiores nomes da Crônica Nacional, a saber, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Arnaldo Jabor… Claro que não tenho a pretensão de pertencer a esta ilustre plêiade, mas, foi lendo essas ilustres pérolas da crônica brasileira, que me levou a escrever essa crônica acerca da chatice humana…

Não sei se vocês sabem, mas, existe algo pior do que aqueles sujeitos maçantes e indesejáveis, que lamentavelmente convivem conosco? Pois bem!

Paradoxalmente, a mais importante máxima a respeito deles se limita a afirmar: “Os chatos são necessários”.

Entendo que a humanidade não pode passar sem os chatos. Ruim com eles, pior sem eles. E o que é ainda mais grave: vivemos, neste século, um tempo da “nostalgia do chato”.

Em outras palavras: não existem chatos o suficiente para, com sua contra-energia de chatice, ajudar o mundo a se mover.

Por isso, prego, sem pudor algum: “O mundo sem os chatos seria insuportável”.

“O chato, para mim, é o verdadeiro psiquiatra, isto é, o único sujeito realmente capaz de nos curar de nossas dores”. E ainda posso justificar: “A gente faz verdadeiras curas com um chato. Depois de conversar com um chato, não existe mais problema nenhum. Então, nada como conversar com um bom chato para acharmos o mundo um verdadeiro paraíso”.

Pego então essa Teoria dos Chatos, e desenho, a partir dela, ao longo dessa vida, a minha própria tipologia, ou seja, uma espécie de Teoria dos Tipos Psicológicos da Chatice, catálogo geral que cadastra os sujeitos mais maçantes que possa vir a encontrar no decorrer da essencialização da existência humana e que estará sempre por terminar. Enfim, essas bossas…

Basta pensar, por exemplo, no Chato-Depois, que é aquele sujeito que, a princípio, parece muito simpático, mas que no dia seguinte se torna insuportável; o Chato-que-Faz-Calor, que é aquele cara que fala compulsivamente, sem saber que a compulsão provoca calor e faz o ouvinte suar… Isso é simplesmente genial!

Outros, queiram perdoar-me o detalhe, mas são tirados dos clichês, dos lugares-comuns, de forma despudorada, e que servem apenas para compor um arsenal organizado de defesa contra a chatice, a saber, o Chato-de-Ouvido, que é o sujeito que fala bem de perto, pegando o teu cotovelo; o Chato-de-Joelho, isto é, o que fala segurando o teu joelho e que é normalmente encontrado nos templos sagrados da ociosidade etílica, ou seja, nos bares; o Chato-de-Retina, que é aquele que fala grudado na tua retina e não te larga e que são tipos, na verdade, sem expressividade… Há mais deles:

Um sujeito que para falar com você, te pega pelo paletó, um outro camarada que entra pelos fundos e toma o elevador de serviço para dar um ar de grande intimidade, um outro que o abraça muito quando você está com a roupa branca passadinha, vinda do tintureiro…

Os chatos, também é bom lembrar, são mestres nos clichês de época, que vêem a chatice como a explicação para todas as coisas, lugar-comum que, é bom lembrar, inferniza a vida de muita gente, além é claro de beirar a nonsense. Querem um exemplo disso?

Basta saber do sujeito que foi entrevistado por Vinícius de Moraes e, quando o Vinícius pergunta sobre o que ele achava da bomba atômica, ele diz sem o menor senso de pudor:

– “Elas vão melhorar muito as festas de São João. Vão fazer uma porção de bombinhas atômicas de São João para as criancinhas.”

Quando o Vinícius lhe pede que dê sua interpretação de Jânio Quadros, é taxativo:

– “Para mim, o culpado disso tudo foi o Oswald de Andrade.”

Quando, por fim, Vinícius lhe pergunta:

– “Quem é Rui Barbosa?”, responde com toda tranqüilidade, possivelmente a resposta mais chata e absurda:

– “Você já viu alguém mais burro que o Rui Barbosa?”

Não me peçam mais sofisticação e mais ousadia à essa Teoria Geral dos Chatos.

O que é que vocês queriam? Que uma teoria dos chatos não fosse chata? Dessa forma, me livro dos Chatos-Mesmo – que são aqueles que, envaidecidos com os próprios argumentos, não podem admitir a própria chatice.

Não basta?

MAURINO JÚNIOR - SEM CRÔNICAS

OS ABSURDOS DOS EXTREMISMOS

Imaginem a cena — uma calçada, uma farmácia, uma barra de ferro encostada no vidro, talvez enferrujada, quem sabe com um bilhete amarelecido colado por cima: “cuidado”. Eu, numa atitude puramente blague, dou um chute distraído; a barra tomba com um som metálico, ninguém se machuca, nenhum vidro se estilhaça. Mas não se enganem: no novo teatro social, esse simples ato já tem enredo preparado. Em minutos surgirá um herói improvável — com crachá, cartão de visita e uma página no Instagram — fundando uma ONG para “proteger barras de ferro contra agressões físicas”, angariando doações, patrocínios e manchetes. Haverá demanda coletiva, petição online e uma cobertura midiática com especialistas em metálicos feridos. Se o final não for trágico, será pelo menos ridículo.

Vivemos numa era que transformou a sensibilidade em pólvora e o aborrecimento em programa de auditório. É verdade: a humanidade sempre teve exageros — inquisidores, moralistas, censores de várias épocas — mas o que nos distingue, hoje, é a industrialização do espanto. Tudo vira causa, cada tropeço é uma proclamação, e a indignação tem cronograma: nasce, explode, viraliza e se esvai, enquanto os problemas que realmente importam — educação, saúde, infraestrutura, a loteria de oportunidades — continuam algemados no porão.

O extremismo que desejo apontar não é uma única doutrina; é o hábito de transformar a defesa de um valor legítimo numa liturgia dogmática incapaz de ouvir. Defendem-se causas nobres com gestos exagerados e palavreados de tribunal; a medida do engajamento vira a intensidade do ataque, não a qualidade da proposta. Quando a fragilidade do argumento é grande, a voz é mais alta; quando o conhecimento falta, o insulto vem de prontidão. Assim, o diálogo morre asfixiado pela histeria preventiva.

Há uma comicidade triste nisso tudo. Lembro de Swift e de sua ironia — ele demonstraria que muitas das nossas paixões públicas são carapaças vazias que estalam ao menor toque. Machado de Assis sorriria, com aquele esgar de quem não se engana, e apontaria as contradições: a mesma pessoa que exige tolerância para suas causas é impaciente com opiniões divergentes; pede abertura para seu grupo e fechamento para os demais. A hipocrisia, quando vestida de virtude, torna-se a mais ruidosa das falsificações.

É claro que não estou propondo a apologia do descuido ou do desrespeito. Nada disso. Há limites que valem ser preservados — a dignidade das pessoas, a segurança, o direito à integridade física e moral. O que combato é o autoritarismo do sentimento, a tirania do microtema. Quando a indignação se organiza como aparato repressivo, ela sufoca a curiosidade, a contradição e a comédia — e sem comédia não há humanidade, apenas tribunais de exceção vestidos de moral pública.

O exagero institucionaliza o absurdo. Quantas regras foram criadas para não ferir sensibilidades que, ao final, só servem para empurrar o riso para debaixo do sofá? A censura autorreforçada — aquela em que alguém se autocensura por medo de represália social — é mais mortal que qualquer decreto oficial. As palavras ficam com muletas; as ideias, com freio de mão puxado. E assim a cultura empobrece: menos risco, menos invenção, menos ousadia. O espírito crítico enfraquece, substituído por mantras prontos e slogans reciclados.

Outra faceta perversa: a mercantilização da ofensa. Surgem empresas de escândalo, consultorias de outraged management, cursos para criar narrativas de vitimismo e monetizar o sofrimento. A economia da indignação transforma dor em capital simbólico. Já vimos movimentos genuínos capturados por interesses que nada têm de nobres; é a velha lógica do oportunismo: onde há barulho, há lucro. E o silêncio, mais uma vez, paga o maior preço — pois o que não dá likes desaparece.

Dói admitir que a polarização é fruto também de preguiça intelectual. É mais simples rotular, inserir em categorias binárias e empunhar a bandeira. Não digo que todas as convicções sejam iguais — longe disso —, mas rejeito o pendor de reduzir debates complexos a duelos de insultos. A grandeza do pensamento público consiste em suportar contradições e, sobretudo, em transformar adversários em interlocutores, não em inimigos a serem anulados.

Portanto, a proposta — modesta e atrevida — é a de readotar alguma moderação. Que tal reaprender a rir? Rir de si, do exagero, da própria severidade. Que tal cultivar a paciência para ouvir o argumento antes de preparar o linchamento moral? Que tal libertar a política do espetáculo e devolver ao argumento o lugar de honra? Não é um convite ao cinismo, mas à sobriedade. É recuperar o efeito civilizador do humor: ele diminui a tensão, permite a autocrítica e revela, muitas vezes, a estupidez com ternura.

O exagero não será extirpado por decretos; só desaparecerá com a prática cotidiana de diálogo, ironia e humildade. Quando aprendermos que as causas nobres não pedem cânticos de sacrifício, mas planejamento e esforço, talvez voltemos também a encontrar sentido no debate público. Até lá, continuaremos a ver ONGs que defendem barras de ferro, colunas de comentaristas que alimentam incêndios morais e leitores que, entre um like e outro, preferem o espetáculo à substância.

Se esta carta — mordaz, ferina, bem-humorada — provocar um espasmo nos devotos do ultraje, tanto melhor: que o espasmo vire reflexão. E se provocar riso, ótimo: o riso é um antídoto poderoso contra a tirania do excesso. O verdadeiro extremismo a combater é aquele que reduz o humano à caricatura e transforma o diálogo em arena. Contra isso, ergamos a arma mais subversiva que existe: a capacidade de pensar, e de rir enquanto pensamos.

E se, por acaso, alguém decidir fundar uma associação para defender as barras de ferro, que ao menos tenha bom gosto para o logotipo. Afinal, até o absurdo merece um pouco de estética.