MAURINO JÚNIOR - SEM CRÔNICAS

Há uma vergonha que não vem da covardia, mas da lucidez. Uma vergonha que não é a negação da pátria, e sim o desgosto de quem a enxerga por inteiro — sem filtros, sem slogans, sem o truque sentimental barato do verde-amarelismo de ocasião. É a vergonha de quem ama o Brasil, mas não suporta mais vê-lo desmentir-se todos os dias com a pontualidade de um relógio suíço e a desfaçatez de um carnaval fora de época.

Há uma vergonha que não nasce do ódio, mas do amor.

É a vergonha dos lúcidos, dos que ainda enxergam beleza onde a maioria vê apenas lama. A vergonha de ser brasileiro não é vergonha da terra, do povo, da língua ou da música — é a vergonha de ver um país tão vasto em talento e alma ser conduzido por mentes tão pequenas.

É a vergonha de quem observa, com o olhar cansado, a transformação do discurso público em feira de vaidades, em teatro grotesco, onde se confundem humor e cinismo, simplicidade e ignorância, carisma e demagogia.

Enquanto o Brasil pulsa sob um sol de ouro e música, lá em cima, nos palcos do poder, encena-se a tragédia da mediocridade: o riso fácil, o discurso vulgar, a piada de boteco disfarçada de diplomacia. E quem pensa, quem sente, quem ainda exige grandeza — se recolhe envergonhado, não por ser brasileiro, mas por ser brasileiro demais para suportar o rebaixamento constante do espírito nacional.

Essa vergonha não é covarde; é o contrário. É o eco de um amor não correspondido.

É o grito silencioso dos que sabem que o Brasil podia ser imenso — culturalmente, moralmente, espiritualmente — e, no entanto, insiste em tropeçar nas próprias sandálias, rindo da própria ruína.

Mas há algo de nobre nessa vergonha. Porque ela é o último sinal de que ainda há lucidez, ainda há esperança, ainda há quem queira ver o país de pé — limpo, digno, adulto.

Ter vergonha do Brasil é, paradoxalmente, amar o Brasil de forma mais pura: sem ilusões, sem bandeirinhas, sem slogans, apenas com o desejo de vê-lo enfim tornar-se aquilo que prometeu ser.

Ser brasileiro, hoje, é viver num eterno dilema entre a ternura e o náusea. É amar a música, o idioma, o povo, o céu, e ao mesmo tempo sentir vergonha das criaturas que, por acidente histórico e voto distraído, ocupam o poder. É ver um país de João Gilberto, Guimarães Rosa e Santos Dumont ser representado por bufões que tratam diplomacia como conversa de botequim e tragédias geopolíticas como rodadas de chope.

Vivemos numa república em que a ignorância não é mais um defeito — é um estilo de governo. O populismo tornou-se virtude, a improvisação virou método, e o “deixa comigo que eu resolvo tomando uma cerveja” virou doutrina de Estado. O país parece viver numa crônica de Nelson Rodrigues reescrita por um roteirista da Praça é Nossa.

E o mais espantoso: há quem bata palmas. Há quem chame de “espontaneidade”. Há quem veja genialidade onde há apenas a mais primária das indigências intelectuais.

Não há nada mais trágico do que ver a mediocridade aplaudida de pé.

E nós, que ainda temos a ousadia de pensar, somos tomados por essa vergonha antiga, que é quase amor em estado de desalento. Porque não odiamos o Brasil – odiar seria fácil.

Nós o amamos demais para suportar vê-lo assim, ajoelhado diante de sua própria caricatura.

O brasileiro lúcido é uma figura trágica: ele olha o país e sente, simultaneamente, orgulho e repulsa.

Orgulho pela arte, pela inteligência difusa nas esquinas, pela generosidade do povo anônimo.

Repulsa pelos discursos vulgares, pelas frases de efeito que soam como arrotos de boteco, pelo uso da ignorância como plataforma eleitoral.

É um eterno “sim, mas…” — um amor que se desculpa por existir.

O pior é que o Brasil se acostumou à piada.

A política virou stand-up; a seriedade, ofensa; o pensamento, um luxo supérfluo.

E enquanto os que leem, estudam, refletem e trabalham se recolhem — meio envergonhados, meio exaustos —, o país se diverte com a própria ruína.

Afinal, rir sempre foi o disfarce nacional para o desespero.

Mas há uma elegância silenciosa na vergonha.

Ela é o último resquício da decência.

É a confissão de que ainda há quem espere mais, quem exija mais, quem queira ver o país de pé, limpo, sóbrio e digno.

A vergonha lúcida é, paradoxalmente, o último sinal de esperança — o suspiro dos que não desistiram, mas já não se iludem.

O Brasil é uma promessa que insiste em não cumprir-se.

E nós, os envergonhados, somos os únicos que ainda acreditam que, talvez um dia, ele cumpra.

Até lá, seguimos — com o copo na mão, a ironia nos lábios e a lucidez nos ombros —, brindando àquilo que o Brasil poderia ter sido, se não insistisse tanto em ser apenas o que é atualmente: uma República Banânica.

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