MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Noticiaram essa semana que o senado vai votar um projeto sobre “independência do Banco Central”. Mas o que isso quer dizer, na prática?

Muito pouco.

O tal projeto basicamente estabelece mandatos fixos para a diretoria do BC, com a alegação de que assim os diretores não estariam subordinados ao executivo. Na prática, não muda nada se os diretores voluntariamente fazem o que o governo quer.

Na teoria, a função do BC é ser o “guardião da moeda” e o “controlador da inflação”. No fundo é a mesma coisa, porque inflação é simplesmente o aumento da quantidade de moeda, e quem “fabrica” a moeda é justamente o BC. Para manter a inflação sob controle, tudo que o BC precisa fazer é não aumentar a quantidade de moeda.

Só que governos sempre querem mais dinheiro para gastar, e existem três formas de obter esse dinheiro: cobrando impostos, pedindo emprestado ou fabricando. Para evitar (ou fingir que evita) a terceira hipótese é que existe o Banco Central e sua suposta independência.

Funciona assim: o governo não pode fabricar dinheiro, mas pode fabricar “títulos da dívida” e vender esses títulos com a promessa de recomprá-los no futuro. São como as velhas notas promissórias. A maioria destes títulos é vendida para os bancos, que têm autorização legal para fabricar crédito. Crédito não é exatamente a mesma coisa que dinheiro, mas é bem parecido. A diferença está justamente na atuação do Banco Central.

Se o BC não existisse, o governo receberia dos bancos, em troca de seus títulos, créditos eletrônicos, que são apenas bytes nos computadores. O governo usa estes créditos para pagar suas contas, transferindo estes créditos para outras contas, e assim por diante. Só que estes créditos que circulam pelos bancos não são dinheiro. Se de repente um monte de gente for ao banco sacar o que existe em suas contas, o banco poderá não ter o dinheiro para entregar. Esse risco limita a quantidade de crédito que os bancos podem fabricar.

Onde entra o BC nessa história? O BC pode fabricar dinheiro do nada (dinheiro mesmo, impresso na Casa da Moeda, e não apenas créditos eletrônicos) e usar esse dinheiro para comprar os títulos que os bancos compraram do governo (mais exatamente, do Tesouro), resolvendo o problema dos bancos. Resumindo:

Sem BC: o governo (através do Tesouro Nacional) emite títulos e vende para os bancos. Os bancos geram créditos e compram os títulos. Com o passar do tempo, a quantidade de créditos produzida pelos bancos (também chamada “alavancagem”) fica muito alta e os bancos ficam com medo de comprar mais títulos. Para convencer os bancos a comprar, o governo oferece juros maiores. Quanto mais juros, mais caro fica para o governo “rolar” a dívida.

Com BC: o governo emite títulos e vende para os bancos. Os bancos fabricam créditos e compram os títulos. Depois, vendem para o Banco Central, que paga com dinheiro vivo que ele – e só ele – pode produzir. Os bancos podem continuar comprando títulos à vontade, sem medo de serem pegos sem dinheiro.

Parece que com o BC tudo fica lindo e maravilhoso, certo? Sim, para o governo, os bancos e o BC tudo está lindo. O único “probleminha” é que a moeda, como qualquer outro bem, está sujeita à famosa lei da oferta e procura: quanto maior a quantidade existente, menor o valor. Então o que acontece é que quanto mais o BC fabrica dinheiro, menos ele vale. Quem paga o pato, naturalmente, não é o governo nem os bancos: é o povo que fica com o dinheiro na mão vendo ele perder valor dia a dia.

Voltando ao início, um Banco Central independente não se importaria com a quantidade de títulos que o governo quer vender para os bancos. Sua preocupação seria apenas de manter o valor da moeda estável, sem inflação. Para isso, o BC não deve fabricar moeda em ritmo maior do que o crescimento da economia, e em muitos casos, não deve fabricar moeda nenhuma (era assim que funcionava no século 19, sob o padrão-ouro).

Manter a moeda estável não acontece na prática: para o governo, saber que poderia fabricar dinheiro e não aproveitar é como uma criança saber que têm sorvete na geladeira e não comer. Para resolver isso, o governo convence todo mundo que um pouquinho de inflação é bom, e estipula uma “meta”, que hoje no Brasil é de 4% ao ano. Embora pareça pouco, significa que o governo (sempre com a conivência do BC, não esqueça) pode produzir, do nada, 4 reais para cada 100 reais que já existem. Como já existem centenas de bilhões de reais, dá para produzir bastante. Vendo de outro lado, isso significa que o governo está autorizando ele mesmo a roubar 4% do dinheiro que cada brasileiro tiver no bolso ou na conta bancária.

Um BC independente que cumprisse a meta de inflação até que seria bom. No momento, o que temos é um BC que faz tudo o que o governo quer, e que está jogando a nossa moeda no lixo. Pior, colabora com as mentiras do governo:

“Em entrevista ao canal do Youtube Me Poupe, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, minimizou a alta dos preços. Ele disse que a inflação está sendo influenciada pela elevação do dólar, principalmente. Campos Neto também atribuiu a carestia ao aumento do preço de matérias-primas alimentícias, em razão de uma demanda maior na Ásia.”

A inflação não é influenciada pelo dólar. O dólar é que é influenciado pela inflação; quanto mais o governo fabrica reais, menos eles valem. Por isso são precisos cada vez mais reais para comprar a mesma coisa, seja um dólar ou um quilo de arroz.

Colocando em números: a quantidade de dinheiro existente (denominada em economês de M1) aumentou nesse ano de 409,9 bilhões em fevereiro para 565,4 bilhões em setembro. Isso dá um aumento de 38% em sete meses, ou 5% ao mês, enquanto a tal “meta de inflação” que deveria nortear a atuação do BC é de 4% ao ano. No mesmo período em que o BC aumentou a quantidade de dinheiro em quase 40%, a cotação do dólar aumentou também quase 40%: isso não é uma coincidência, é uma consequência.

A inflação e a desvalorização da moeda (que são a mesma coisa) afetam primeiro o setor produtivo primário (indústria e agricultura/pecuária). Com a economia parada e sufocada pela quarentena, a inflação demora mais para chegar ao consumidor. Assim, enquanto o IGP-M já acumula 20,93% de aumento nos últimos doze meses, o IPCA, que mede apenas os preços do varejo, ainda está em 4%.

Uma parte dos aumentos será absorvida pela cadeia produtiva, que não consegue repassar integralmente os aumentos de custo. Se considerarmos que as coisas não surgem do nada, e que tudo deve vir de algum lugar, é fácil ver que a riqueza que o governo obteve fabricando dinheiro será paga pela redução das margens de lucro das empresas. Como o povo que acredita que inflação é bom também acredita que lucro é uma coisa nojenta e horrorosa, ninguém se importa.

Para encerrar: a cotação internacional do arroz, que atingiu um pico no início de junho, já caiu 43% desde então, e está hoje apenas 5% acima do que estava em novembro do ano passado. A soja estava, até agosto, na mesma faixa de preços que 2018 e 2019, e mais barata que em 2016 e 2017. A desculpa do Roberto Campos Neto não cola.

3 pensou em “INDEPENDÊNCIA?

  1. E na ponta direita do jbf… Gente que dá show em forma de texto e imagem (uma pegada mais politizada): Ana Paula Henkel, Marcelo Bertoluci, Caio Copolla, Cláudio Lessa, Políbio Braga, Luiz Berto Filho, Percival Puggina, Augusto Nunes, Adônis Oliveira, Luis Ernesto Lacombe, Alexandre Garcia, Goiano Braga Horta, Guilherme Fiuza, Rodrigo Constantino, José Roberto Guzzo, Paula Marisa e Bárbara.

    Caríssimo Marcelo,

    Cuma cê iscrevi direitim, cabra. ¿Sabes qué? Al diablo con esto. Leio sempre seus sólidos argumentos e como sou daqueles que adoram escrever longos comentários, fico achando palavras, mas (maledetto mas), deixas poucas arestas a serem aparadas, o que deixo para aparadores de arestas mais capacitados do que eu em termos de finanças e economia, áreas em que sou apenas um perna-de-pau, se usarmos o jargão futebolístico..

    E o que mais me prende a seus textos é não encontrar neles nenhuma jogada esperta ideológica, pois afagas e cutucas governantes com a mesma mão e afiada espada.

    Penso seriamente em retornar à “facul”, desta feita para estudar economia para ter algum argumento para poder esgrimir por comentário em sua coluna.

    Abraço forte e ótimo final de semana para toda essa gente maravilhosa da terra das araucárias.

    • Sancho, “faz o que quiseres pois é tudo da lei”, mas não me dê essa decepção de cursar uma faculdade de economia.

      Vais escutar por anos a fio que o governo é bom, o governo é necessário, o governo sempre está certo, o governo só fala a verdade – e terás que repetir isso nas provas, senão reprovas.

      Pior que isso é o risco de ser recrutado para o outro lado. Estás quieto em seu canto pensando na vida, chega uma mocinha na flor de seus dezenove anos, camiseta do Che ressaltando os seios durinhos, mini-saia mostrando as pernas lisinhas e macias como seda, chega-se ao teu ouvido e inocentemente convida “Vamos lá no Centro Acadêmico assistir Bacurau?”. Em pouco tempo Sancho estará vestido de vermelho frequentando passeatas pagas à pão com mortadela. Como disse Roger Rocha Moreira, “Já era, meu chapa, quando cê vai ver já foi”.

      • Acho que não posso decepcionar a tal mocinha (kkkkkkkk)… Tô indo correndo me inscrever para o próximo semestre. Valeu a dica, gigantesco Marcelo…

        E o Goiano me xavecando faz tempo para eu aderir á causa… Era só ter falado sobre mocinhas lindas com a camiseta do Che… kkkkkkkkk

        Acho que o Jair acaba de perder um eleitor…

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