JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

Milho nascendo em fileira

Hoje, próximo de uma data significativa, resolvi dar uma volta no tempo, e relembrar um pouco das boas coisas vividas no sertão – então adolescente, sempre passando as férias escolares na cada da minha Avó, figura que, se fosse minha mãe, não faria nenhuma diferença. As duas, Avó e Mãe, eram quase que a mesma pessoa.

Meu Avô, homem de poucas letras, conhecia apenas o mundo em volta de si mesmo. Tudo se resumia ao redor do que ele via e conhecia. Nunca ouvira falar de escola ou de estudar. Mas, a sensibilidade divina adquirida, compreendia e aceitava que o mundo, para outros, ia além das manhãs, tarde e noites nas Queimadas (povoado onde todos convivemos). Ele sabia que existia um mundo além daquele onde vivia. Admitia e aceitava.

Mas, nós, os netos por vezes nos cercávamos da crença que, pelo menos nos meses das férias, o mundo era aquele ali, onde vivíamos e do qual usufruíamos só coisas boas que hoje são apenas saudades.

E nunca deixamos de aceitar que ali tínhamos muito que aprender. E fazíamos isso com prazer e sem cerimônia.

Cedo entendemos que, para semear alguma coisa, precisávamos preparar a terra. Limpar a terra. Preparar a terra para o momento oportuno de semear. Tantas e tantas linhas, tantos e tantos roçados preparávamos com as nossas enxadas e com a nossa coragem. O fruto de tudo, com certeza, viria depois.

Semear o milho, para nós, era como sentir muito cedo o cheiro da canjica com coco e aquelas borbulhas de algo que nos ligaria cada vez mais à terra e aos nosso costumes – para alguns, efêmeros e passageiros prazeres. Para nós, parte da nossa própria vida e razão de existir.

Semear o milho na terra preparada, e, vê-lo crescer até “embonecar”.

Milho “embonecando

Avistada a “boneca”, o objetivo se imaginava mais próximo. E era verdade. Os resultados positivos de tantos dias trabalhados na terra, sol a sol, agora estavam por vir. Com certeza.

Enxadas à mão, a manutenção da limpeza das ervas daninhas era uma constante – que ali significava também com uma vigília ao crescimento e desenvolvimento daquelas espigas verdinhas do milho mole até atingir o amarelecimento da secagem.

Milho em espiga verdinha

Quem planta, colhe.

Quem plantar e cuidar, vai ter boa safra. No milho, e na vida.

É o milho verde que vai servir para alguma coisa. Para canjica e pamonha, por exemplo. É o filho bem orientado que vai seguir o bom caminho – esse, é o bom fruto que proporcionará a boa colheita.

Colhido, o milho verde vai à ralação.

Ralado, vai à preparação para a canjica ou para a pamonha – duas coisas que satisfazem aos que sabem o que isso significa. Desde o semear, passando por todos os demais caminhos, até o consumir – se possível com um “pozinho” de canela.

Ralação do milho verde

A ralação precede ao cozimento. Não é algo fácil. É preciso saber o que está fazendo, para não correr o risco de desperdiçar tudo que foi feito e ter que voltar à estaca zero.

Tantas espigas raladas produzirão uma quantidade xis de milho ralado que, passado por uma separação (uma “peneiragem”) produzirá um líquido que será levado ao fogo, com o acréscimo de adoçante e/ou coco ralado – sem que esse acréscimo seja algo obrigatório.

Canjica de milho verde

Podemos afirmar sem medo de errar, que tanto a canjica quanto a pamonha são duas especiarias entre as mais desejadas que a culinária sertaneja produz a partir do milho verde. O cuscuz, outra maravilha produzida com o milho, entra num estágio mais adiante – com o milho seco e moído.

Pamonha à moda sertaneja

Comer uma canjica de milho verde um dia após a sua feitura é algo divino, quase sempre à disposição daqueles que vivem na roça e trabalharam o milho a partir da sua colheita. Produzindo de forma positiva em todas as suas etapas.

Quem, como eu, viveu essa preparação da terra para o plantio do milho até o sentar à mesa para o usufruto do que foi produzido, com certeza não terá lido aqui nada que surpreenda. Mas, servirá para, entre outras coisas, matar a saudade.

15 pensou em “A CANJICA DA VOVÓ

  1. Bom dia e um feliz domingo
    Sr. José Ramos.
    Sua coluna, aqui no JBF. Tem algo de muito especial e quase sempre nos remete as nossas raízes regionais e familiares.

    Esse, “A canjica da vovó”. É uma viagem prazerosa nos lugares das nossas mentes onde estão guardados os mais sublimes e encantados momentos de nossas vidas na infância e na adolescência, convividos entre nossos entes queridos.
    Principalmente nesses momentos festivos, datas religiosas e comemorações em famílias.

    Não plantamos milho nessa escala de terras no sertão e sim no quintal da nossa casa. Mas a alegria era grande ao vê-lo brotar, crescer, embonecar e depois colhermos. Ou então, quando nosso
    pai trazia “uma mão” de milho e íamos debulhar, ralar e ajudar,
    a nossa mãe à fazer a canjica, a pamonha (tudo com leite de côco natural) e outros acepipes.

    Nossa avó por parte de mãe, era italiana. Quando ela se foi, éramos muito pequenos ainda. Mas acompanhamos ela na cozinha, por essas ocasiões e principalmente quando fazia as suas maravilhosas receitas italianas. “Mamma mia! Che delizioso”. Nossa avó paterna, quase não tivemos convivência, pois residia há mais de 2 mil km. de nós.

    Nossos cumprimentos mais uma vez por fazer nosso domingo mais feliz com seus artigos de muitas e boas recordações de uma época única, onde o convívio entre parentes, era de união, de respeito, de amizade e de amor ao próximo. Porque tudo era uma coisa só, tudo era família.

    Bom dia e bom domingo, mais uma vez.

    • Luiz Carlos, obrigado. O milho nos dias atuais, tem mil e uma utilidades e figura entre os maiores índices de exportação. Diversas formas de utilização. Já vi tantos filmes e vídeos produzidos nos EUA, onde o milho está presente na maioria das mesas daquele país. Hoje, sem confirmação oficial, arrisco dizer que o milho é tão consumido quanto o trigo.

    • Assuero, sabe uma coisa que acho arretado mesmo? É o milagre da mãe Natureza, que adoça alguns alimentos. Quando a gente consome esses alimentos e sente a ausência do açúcar, a gente estranha. Milho verde é doce. Quem adoça? A cana de açúcar é doce. Quem adoça? A uva é doce. Quem adoça? Dia desses um Químico e Agrônomo tentou me convencer que o limão não é azedo. Ao contrário. O limão é tão doce, tem uma concentração enorme de açúcar, que fica azedo. Será? Assim, o ruivo da cor do cabelo da boneca, pode ser vermelho ou amarelo, além, claro, de ruivo.

  2. Só de imaginar, me transportei para a minha infância! Sou filho orgulhoso do Nordeste do Brasil e curti cada palavra de seu maravilhoso artigo, meu amigo.

    O gosto dessas guloseimas beira o celestial!

  3. Caro amigo José Ramos,

    Embora até aqui ainda não tivesse comentado nenhuma das suas postagens, sou leitor assíduo do JBF há vários anos. E acompanho com muito interesse, saudades e emoção, tudo o que se refere ao nosso querido Brasil e, em particular, ao nosso amado Nordeste, no qual estão todas as minhas raízes e a maior parte da minha família.

    Esteja certo de que, mesmo que não comente, aprecio cada postagem, lendo e relendo-as sempre que posso.

    Tenho muitos outros amigos, cronistas e colunistas do JBF, a maior e mais abrangente manifestação de opiniões de todas as correntes, credos e ideologias do nosso país!

    A todos vocês e ao meu amigo Luiz Berto, as minhas mais profundas homenagens!

      • Meu querido amigo Luiz Berto,

        Fui mais de uma vez agraciado por gestos de amizade explícita vindos de você, pessoa que ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente, mas de quem sou profundo admirador, não apenas pelo talento, mas por tudo o que representa para o nosso Brasil atual.

        Além de ter sido presenteado com o Romance da Besta Fubana autografado, fui também atendido com muita presteza e simpatia por você próprio ou pela Aline, sua esposa, como no caso da música “Terra Brasileira”, prefixo clássico da nossa saudosa Rádio Clube de Pernambuco dos meus tempos de criança, do qual ela imediatamente me providenciou uma cópia..

        Ouso dizer que o Jornal da Besta Fubana representa hoje para esse nosso conturbado e polarizado Brasil, um inigualável bastião de liberdade, expressa diariamente por dezenas de talentosos colunistas e cronistas, para os quais tiro o meu chapéu.

        Mas nada disso seria possível sem a sua coragem e perseverança na criação e manutenção do JBF, o maior mosaico de expressões políticas, artísticas e humanas de que eu já tive notícia ou participei!

        O sentimento que me invade todas as vezes em que leio qualquer coisa na sua “gazeta escrota”, como você mesmo a denomina, me enche de esperança num país melhor e mais justo para todos.

        Em breve, se Deus quiser, teremos oportunidade de nos conhecermos pessoalmente.

        Fraterno abraço!

    • Philippe, sou nordestino do Ceará. Vivi tempos no Rio de Janeiro e fui várias vezes a São Paulo e ao Paraná. Mas, o que me considero realmente, é “brasileiro”. Sou negro, mas nunca me senti ofendido (em pese ter nascido no estado mais racista do Brasil) com coisas desse tipo. Desde os 19 anos trabalho para ganhar o meu sustento pessoal, pois entendo que é para isso que os pais trazem os filhos ao mundo. Meus pais já faleceram mas, mesmo ausente da convivência deles por livre e espontânea vontade, nunca deixaram de me apoiar – e eu, por respeito, nunca deixei de comunicá-los de qualquer cosia que eu pretendesse fazer. Hoje tudo é diferente. Fazer o que, né não? Obrigado pela leitura.

      • Caro amigo José Ramos,

        Sou nordestino de Recife. Vim para o Rio em dezembro de 1965, quando meu pai, funcionário público e engenheiro do antigo DNER foi transferido para trabalhar aqui. E por aqui fiquei, me casei e constituí família, embora os meus pais e todos os demais irmãos tenham voltado para Recife menos de dois anos depois, por problemas de adaptação.

        Conheço o Brasil de ponta a ponta, por força do tipo de trabalho que exerci em todos esses anos. Amo o meu país acima de tudo e entendo que somos privilegiados por termos nascido num lugar tão maravilhoso.

        Somos um povo privilegiado, meu amigo

        Parabéns pela sua percepção da vida, dos costumes e dos respeito aos que nos precederam e a todos os que nos cercam!

        Fraterno abraço.

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