JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

O banho dos primos

Era um sábado, lembro bem, embora já se tenham passado mais de 60 anos. No que poderia parecer um cenário teatral, eu acabara de almoçar e resolvi descansar um pouco. Não queria dormir, pois, se assim quisesse armaria uma rede.

Peguei um cambito que Vovô tirara do jumento Moreno, peguei a sela que era usada na montaria do cavalo Salú, arrumei as duas peças de modo a me oferecer apoio e conforto, sentei e me pus a olhar na linha do horizonte. Como se estivesse no deserto do Atacama, na primavera. Me pus a “matutar”, como dizemos naquelas paragens.

Um filme que eu jamais vira, estava passando na minha mente, em “slow motion”. Dava para contar as pessoas, os objetos, e, tudo que enfim, compunha as imagens da fita. Eram imagens policrômicas, que sequer existiam – para os apaixonados, a vida é sempre em policromia, e as paisagens são sempre as mais belas.

Cambito que auxilia às montarias no interior

Eis que, um movimento diferente do que “passava na fita mental” me chamou a atenção. A porteira, que ficava numa distância de uns 40 metros de onde eu estava sentado, me chamou a atenção. Mas, dava perfeitamente para perceber o rabo do cachorro Babalu balançando, frivolamente – a alegria do animal era visível, e eu pude deduzir que ele estava alegre pela aproximação de alguém.

E era mesmo. E estava mesmo. Dois meninos caminhavam ao tempo que também brincavam na frente de um comboio de jumentos conduzidos pelo nosso vizinho Zé de Augusta que, naquele instante transportava a farinha para entregar na manhã seguinte, no comércio do Seu Horácio. Os dois meninos brincavam na frente dos animais, e aquilo alegrava Babalu, que até davas cambalhotas.

Passada aquela aparente festa canina, permaneci sentado onde estava, e não percebi que o tempo passara, que a escuridão da noite mandava torpedos e mais torpedos, avisando sua chegada. Era a noite que se aproximava.

Mas, algo estranho continuava acontecendo, pois Babalu, passada aquela alegria pela passagem dos meninos, continuava na porteira. Vigilante, como sempre fora. E, de repente, começou latir. E latia cada vez mais. Mas, era um latido sem raiva, sem agressividade. Como se pretendesse avisar que alguém de casa se aproximava. E era verdade.

Era Anunciada, minha prima mais velha. Naquele tempo, aparentando 25 anos de idade. Apressada e cabisbaixa, caminhava na direção da nossa casa e mais apressada ainda ficou, quando de longe avistou Vovó. Ofegava. Causava ansiedade em quem viera saber algo na sua chegada.

Babalu o “vigia” da nossa porteira

Com dificuldade de falar, tomada pela emoção dos fatos, Anunciada agarrou-se à Vovó, e fez esforço para anunciar com voz trêmula, e copiosas lágrimas:
– Vó, mamãe tá desesperada! Zildinha acabou de falecer!

Aquele anúncio chocou os que ouviram a triste novidade. A mim, foi como uma facada penetrante na carótida. Eu tinha naquela época um envolvimento muito forte com Maria Zilda, a Zildinha. Namorávamos escondido, por sermos primos – e a gente do interior não aprovava muito naqueles tempos.

Lembro que nos encontrávamos para o banho no açude, nus. Descobrimos e mantivemos por longos tempos, um local só nosso. Nos beijávamos, nos acariciávamos – mas nunca ultrapassamos os limites que a criação daquela época nos impunha.

Vovó decretou silêncio e luto total na casa. Fomos ao velório na mesma noite, e permanecemos para o dia seguinte.

Foi aquela, a minha primeira grande emoção na vida. Passava dias e noites relembrando os bons momentos, as carícias que trocávamos. Zildinha se desenvolvia fisicamente. Ainda não era “uma mulher feita”. Seios crescendo, coxas longas ficando arredondadas e pelos começando aparecer nos devidos lugares do corpo.

Passados todos esses anos, graças à Deus, sem sequelas, recorro à Psicologia dos que lêem essa “gazeta escrota” (fala do próprio Editor), para uma explicação. Se possível pedagógica.

Qual é o comportamento do cérebro e dos demais órgãos que compõem as emoções humanas, numa situação que começou com o descanso conciso e necessário a partir do sentar no cambito; no olhar a emoção do cachorro em dois momentos e com ele compartilhar; no ouvir e participar do anúncio do indesejado da morte da prima amada; no féretro, onde foi enterrada parte emocional de mim; e na volta solitária aos banhos no local onde vivemos bons momentos.

12 pensou em “RECORRENDO À PSICOLOGIA

  1. Ramos, narrativa interessante. Quanto a pergunta nem me aventuro a ensaiar uma explicação. A gente sabe a potencialidade do cérebro, mas a dimensão e os mecanismos de funcionamento ainda são objetos de estudo.

    • Professor, me referi à potencialidade de comportamento do cérebro humano. Sair em frações de segundos de uma situação de alegria para a total absorção da tristeza. As lágrimas, poderiam ser uma forma de expressão dessa situação?

  2. RAMOS ALEGRO-ME EM REVELO
    EM NARRATIVA SERTANEJA
    EMBORA QUE NELA ESTEJA
    O SEU GRANDE PESADELO
    E MESMO ENXUGANDO GELO
    ZILDINHA TODA SEMANA
    SUA PRIMA, QUASE MANA
    TINHA NAMORO DE BICO
    E ASSIM TORNA MAIS RICO
    A NOSSA BESTA FUBANA

    • Valdeir: pois num é primo?! Será que foi melhor o que aconteceu? Não a passagem de Zildinha. Falo da interrupção do que poderia ter acontecido.

  3. Bom dia ZéRamos! Em tempos de quarentena,, parece que nosso passado aflora, trazendo consigo nossas emoções sentidas, umas boas, outras ruins e aquelas que tem os dois sentimentos, esta “coisa” chamada emoções é um bicho que nossos cientistas ainda não conseguiram explicar, mas existem alguns pensamentos que nos ajudam:”não somos responsáveis pelas nossas emoções, mas sim, com o que fazemos delas”. Bom domingo de “RAMOS”,amigo!

  4. Caro José Ramos,

    Obrigado por compartilhar conosco suas belas e tristes recordações.

    Muito bonito, apesar de profundamente sentido.

    Fez-nos todos recordar nossas situações similares da adolescência.

  5. RAMOS EU SOU DO CARIRI
    DO SOLO PARAIBANO
    SEI QUE VOCÊ É NORDESTINO
    DO REDUTO PERNAMBUCANO
    MEU AVÓ FOI POETA DE PRIMEIRA
    ZÉ BERNARDINO DE OLIVEIRA
    JUNTO A AMARO SEU MANO

    • Waldeir: amigo não sou pernambucano. Mas não haveria problema, se fosse. Tanto que Xico Bizerra, do Crato, trocou por Recife e ali vive bem e feliz. Sou mesmo é de Pacajus, terra ao lado de Messejana, de José de Alencar.

  6. O pensamento parece uma coisa à toa
    Mas como a gente voa quando começa a pensar. (Lupicínio Rodrigue) Feliz domingo de RAMOS, meu companheiro.

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