Cada sociedade tem seus gostos. Coisas que quase todo mundo gosta e coisas que quase ninguém gosta. Uma coisa que no Brasil pouca gente gosta é a tal da privatização. Até mesmo os que não sabem do que se trata são contra. Aliás, principalmente estes.
A cultura de nossa sociedade e de nosso estado veio do reino português. É uma cultura fortemente centralizadora, que concentra o poder nas mãos do governo central e reprime qualquer iniciativa que não seja submissa a ele. Nossa história como país independente passou por uma monarquia onde o imperador exercia o “poder moderador” e “não estava sujeito a responsabilidade alguma”, por uma república guiada pelo positivismo e por uma ditadura que admirava a Itália de Mussolini. Foi esta ditadura, que durou de 1930 a 1945, quem solidificou as bases do domínio estatal sobre praticamente todos os setores da vida nacional. Outra ditadura, nos anos 1960/1970, reforçou o processo.
Sempre foi usual por aqui o governo “brincar de empresário”, criando empresas que se intrometem em coisas que em outros países (em especial os mais bem sucedidos) pertencem à iniciativa privada. Sempre foi visto como normal o governo fabricar aço ou vender bujões de gás, ser dono de banco, seguradora ou hotel, transportar pessoas e mercadorias por ar, mar e terra. As grandes obras, então, sempre foram privilégio exclusivo: construir refinarias, aeroportos, hidroelétricas, ou mesmo uma simples ponte, é proibido aos reles mortais. Interessante ver que essa exclusividade do estado nunca é exercida “em pessoa”: a execução das obras é privilégio de um grupo de empresas privadas, genericamente chamadas “empreiteiras”, escolhidas para a tarefa através de um procedimento chamado licitação. A melhor definição que já vi para essa palavra foi em uma antiga revista dos anos 60, feita por um jornalista mexicano: “Licitação é um processo pelo qual os governantes repassam o dinheiro público para as empresas de seus amigos e parentes de forma legal e transparente”.
Tão certo quanto o verão sucede à primavera, empresas estatais adquirem um quadro de funcionários inchado, inoperante e de certo modo ingerenciável. Existe o organograma oficial. Existe também o parentograma, que mostra quais os funcionários que gozam de privilégios especiais por relações familiares, sexuais ou afetivas com funcionários de escalões superiores. Existe ainda o politicograma, que indica os funcionários que estão a serviço não da empresa em questão, mas de um partido ou de um político interessado no uso eleitoral da dita empresa. Administrar os conflitos de interesse dá tanto trabalho que não sobra muito tempo para as tarefas para as quais a empresa foi criada. Às vezes a coisa fica tão feia que os políticos decidem que a única saída é privatizar.
Quando ouve a palavra “privatização”, o brasileiro médio tende a reagir como se tivesse sido xingado. Anos de doutrinação que começam na escola primária e prosseguem todos os dias pela imprensa, fazem com que ele automaticamente pense em expressões como “dilapidar o patrimônio público”, “abrir mão dos interesses nacionais” e outras, incluindo até algumas com aquele horrível palavrão que começa com “L”: lucro. Empresário tendo lucro é algo que dói fundo na alma do brasileiro. As raízes disso vêm de séculos atrás, quando os reis perceberam que empresários que ganhassem seu próprio dinheiro não precisariam ser subservientes ao poder, e ordenaram que o povo fosse instruído a não gostar disso. As ordens foram cumpridas com absoluto sucesso.
Mas na verdade, o que se chama de privatização no Brasil quase nunca é privatização de verdade. É apenas uma transferência da administração para mãos privadas, mas com a empresa continuando a funcionar “como se fosse” estatal: com regras estabelecidas pelo governo, em um mercado regulado pelo governo, e muitas vezes com preços determinados pelo governo.
Exemplo: falou-se muito das privatizações dos aeroportos. Pelos planos atuais, praticamente todos os aeroportos brasileiros passarão para mãos privadas até 2024. Mas o que é exatamente essa privatização, que aliás é tecnicamente chamada de concessão? As empresas vão operar o aeroporto de acordo com as regras do governo, cobrando tarifas estipuladas pelo governo. No contrato, o governo se compromete a não autorizar a construção de outro aeroporto que possa fazer concorrência ao concedido. Ou seja, a empresa concessionária não precisa mover um dedo para agradar o cliente, porque têm a garantia do monopólio. E como ela sabe que a concessão é temporária (normalmente 30 anos), ela fará apenas as obras necessárias para manter tudo em funcionamento até o fim do prazo e devolver o negócio tão judiado como um carro alugado.
A privatização do momento é a da Eletrobrás, comemorada com foguetórios e fanfarras. Infelizmente é a mesma coisa, talvez até pior. Como assim? O que aconteceu é que o governo colocou à venda a chance de ser sócio de uma empresa que continuará, na prática, fazendo parte do estado. O governo não terá mais o controle administrativo, o que permite que a empresa seja mais funcional e lucrativa. Mas ela não atuará no mercado: continuará a serviço do estado, obedecendo às ordens do estado, seguindo o planejamento do estado. Liberdade para decidir onde ou como investir? Praticamente nenhuma. Aliás, quem se der ao trabalho de ler, por exemplo, um edital de licitação de uma subestação poderá constatar que a ANEEL e o Ministério de Minas e Energia literalmente especificam até o tamanho dos parafusos. Isso não é privatizar, é simplesmente delegar a execução dos trabalhos.
Porque a privatização da Eletrobrás foi um sucesso? Ora, para a iniciativa privada, todo investimento é um risco, algo que pode trazer lucro ou não. Mas comprar ações de uma empresa estatal que funcionará, sozinha e sem concorrência, sob as ordens do governo, é lucro certo, porque o lucro da Eletrobrás será aquele que o governo determinar que seja, e o governo não costuma ser ingrato com os empresários que o apoiam em suas iniciativas.
Como exemplo oposto, talvez o único, temos a Embraer. Como fabricar aviões só é viável visando o mercado externo, a Embraer teve que virar empresa privada de verdade e enfrentar a concorrência. Mostrou que é possível. Talvez seja o caso de dizer que além de privatizar uma empresa, é preciso desestatizá-la, ou seja, tirá-la da área de influência do governo. Mas ninguém por estas plagas gosta da idéia, então o mais provável é que continuaremos a ter empresas que são privatizadas mas continuam, na prática, estatizadas.
Sobre a privatização da Eletrobras (é sem acento, pois o bras vem de Brasil, que não possui acento).
1 – Estava há 27 anos parada e só agora, com o governo liberal de PG na economia a coisa andou.
2 – Em 2013 a empresa valia 7,4 bi de reais e hoje, após a privatização seu valor é de 98 bi.
3 – Não é a única empresa de energia elétrica do país. Há outras, que já foram privatizadas e que estão indo muito bem.
4 – Há a necessidade de investimento de 100 bi de reais por ano em modernização do sistema, algo que o governo não poderia fazer, mas com dinheiro da iniciativa privada, é possível, tornando possível o crescimento econômico sem amarras.
5 – É uma empresa estratégica, então antes de fazer qualquer mudança que possa atingir o país, o governo deve ser ouvido.
6 – A Embraer foi privatizada dividida em duas; uma voltada para a aviação civil e outra para a militar. Nesta última, o governo pode interferir, ou seja sua ação depende dos interesses do governo.
A privatização da Eletrobras foi a maior em mais de 20 anos, desde a época das teles e das outras empresas de energia.
No próximo governo com Bolsonaro provavelmente haverá a privatização da Petrobras.
3 – As “outras, que já foram privatizadas e que estão indo muito bem.” estão sujeitas às regras do mercado e concorrendo entre si ou estão, como a Eletrobras, operando um monopólio regulado pelo governo? Complementando a pergunta, já que as empresas estão “indo muito bem”: a conta de luz está barata?
6 – A Embraer civil também vai muito bem, faz sucesso no mundo inteiro. A Embraer militar se arrasta na burocracia estatal, está com o pepino do KC-390 na mão porque o governo não quer cumprir o combinado.
s/n – E a privatização da Petrobras será como essa? A empresa vira privada mas continua regulada pelo governo fazendo o que o governo manda? Como disse Einstein, insanidade é fazer repetidamente a mesma coisa e esperar resultados diferentes.
Cia elétrica é complicado ter concorrência. Não dá para escolher de qual Cia elétrica iremos receber energia no poste que alimenta nossa residência. O mais próximo de concorrência que há é ter painéis solares no telhado de casa e não precisar da Cia. Mas quando há excesso de geração, usa-se o poste da Cia para vender sem pagar pelo poste ou impostos. Uma situação que precisa ser regulamentada.
Houve duas situações de crise com energia elétrica nos últimos 10 anos. A primeira em 2012, quando a Dilma resolveu baixar as contas na canetada e desarrumou todo o sistema. A Segunda é a maior crise hídrica dos últimos 100 anos, que também levou a um desequilíbrio para as fornecedoras. Cada uma destas causas é muito complexa e independem do atual governo, que teve que arcar com as consequências.
A Embraer civil esteve para ser vendida à Boeing há alguns anos e o governo teve que dar aval à venda (ou seja, ele pode interferir sim), que acabou não ocorrendo.
Quanto ao KC-190, a Holanda acabou de fazer um pedido de 5 unidades desta aeronave. Ela hoje é considerada a melhor dentro da sua categoria. As vendas não são feitas de uma hora para outra e dependem de muitos fatores. O Super Tucano demorou para emplacar e hoje é uma referência na categoria. O importante é que o Brasil está de volta ao comércio de aeronaves militares e armas, o que é importante para nossa soberania.
Excelente artigo.
O colunista defende, com razão, que “além de privatizar uma empresa, é preciso desestatizá-la, ou seja, tirá-la da influência do governo”.
Mas, como se vê de tudo neste país (aqui tem até coqueiro que dá coco, como dizia o Goiano nesta gazeta escrota), até Organização Não Governamental passou a depender dos governos. Trata-se, nesse caso, das esdrúxulas ONGs chapa branca (ou Organizações Não Governamentais Governamentais), muito comuns durante o governo petista.
Pois é, Jairo, é estatal, é concessionária, é ONG, é fundação, é tudo nas costas do governo, e o povo pagando a conta. De certa forma, a rejeição popular à privatização tem sua razão de ser, já que geralmente são maracutaias.
Sobre o coqueiro que dá côco, invenção do Ari Barroso, ouvi dizer que o Ari uma vez mostrou a música ainda não terminada para uns parentes que o visitavam. Um cunhado disse “Ari, não leve a mal, mas essa coisa de coqueiro que dá côco é muito esquisita”. Consta que o Ari ficou mais de um ano sem falar com o tal cunhado.
Passo por aqui semanalmente e vejo a prática de esgrima entre o homem curitibano e o ribeirão-pretano e vou ao meu armário de quinquilharias em busca de meu enferrujado florete. Antes de entrar na pista de esgrima dou uma olhada no texto. Não é combate adequado para este que, para não falir, teve que deixar a administração da cocolândia nas mãos de uma velha caduca e nem um pouco fã de Sancho.
Sempre revezando os pés à porta da falência, buzino para o frio e vamu qui vamu, que o frete anda escasso… kkkkkkk
Touché, meus caros…
Me representa ai, João Francisco!!!!!
Abração, Marcelão!!!!!
Desculpe-me por decepcioná-lo, Sancho, mas não sinto a menor motivação para “esgrimir” com quem ignora os temas que proponho em meus pitacos, enxerga em tudo a mesma disputa política e já afirmou, reiteradamente, que seus comentários têm o objetivo de me irritar. Respondo ao primeiro comentário por uma obrigação profissional de colunista, mas, em princípio, ignoro as réplicas para evitar que a coisa desande, como já aconteceu.
Agradeço a parte que v. fala que eu o represento, caro e velho amigo Sancho, isso significa muito para mim.
Não faço meus comentários para irritar ninguém, são feitos com observações que podem ser contestadas. Por vezes o articulista se refere a mim como um “bolsonarista doente”. Eu não ligo e o chamo de “isentão”, pois age como se fosse, mas não sabe diferenciar o atual governo daqueles que o antecederam.
É como eu e v., caro Sancho, sempre dissemos nos últimos 3,5 anos. Bonoro não é perfeito, mas é o que temos para o momento. Se ele está irritando esquerdistas e isentões a pondo de se notar o desespero, é que está no caminho certo.
https://luizberto.com/divagacoes-sobre-o-poder/
João Francisco,, em 1 de abril de 2022 às 14:24 disse:
“Se meus comentários te incomodam […] acho que estou atingindo meus objetivos.”
https://luizberto.com/protecionismo-de-novo/
João Francisco em 12 de maio de 2022 às 19:21 disse:
“É óbvio, menos para v., que […] eu o estava provocando”
Vou deixar bem claro aqui, quase que desenhando..
Meus comentários são sempre para incomodar sim, para provocar quem pensa diferente, senão não há debate; o que é diferente de irritar. Para irritar é só quando o chamo de “isentão” e parece que atingi meus objetivos em cheio.
Jamais ofendi ou xinguei, fora quando fui chamado de forma injusta de covarde, mas isso para mim já é passado e já relevei. Me envergonho pelos demais leitores do JBF de ter usado de palavra de baixo calão naquela ocasião, pois eles não mereciam este nível de debate.
No mais, tenho um costume, quando não gosto, digo que não gosto e quando gosto, digo que gosto. Uso meus argumentos e aceito críticas justas.
Marcelo, sei que é um conhecedor do assunto e proponho a desvendar uma dúvida. A incidência da base de cálculo do ICMS sobre energia está correta? Segue a Nota Fiscal aqui do ES para análise:Detalhamento de faturamento – MAIO/2022 EDP (VITÓRIA/ES)
Descrição Quantidade x Tarifa (R$) Total R$
Fornecimento de Energia elétrica 197.54
Consumo ativo kWh 228 kWh x 0,610510000 139,20
Tributos B. Cálculo x Alíquota
PIS 148,15 x 1,08% 1,60
COFINS 148,15 x 4,96% 7,35
ICMS 197,54 x 25,00% 49,39
Contribuição de ilum. Pública 13,67
Detalhes do valor faturado(R$)
Energ. Elétrica 71,07
Transmissão 10,35
Distribuição 38,45
Enc. Setoriais 19,33
Impostos/tributos 58,34
Total 197,54
Valor total a pagar 214,93 Vencimento 02/06/2022
Um grande abraço.
Luiz, em termos de ICMS os governos estaduais fazem o que querem. Os conceitos básicos do nosso sistema tributário para eles são como sinal vermelho de madrugada: apenas uma sugestão.
A coisa já começa errada porque os impostos são calculados sobre o preço de venda que inclui estes mesmos impostos (é o que se chama “calcular por dentro”). Então, se a empresa quer cobrar 100 mas tem que pagar 20% de imposto, ela cobra 125, repassa para o governo 25 (que é 20% dos 125) e fica com os 100. Mas se vc olhar bem, se o preço é 100 e o imposto é 25, a aliquota não é 20%, é 25%. Quando tem mais de um imposto, tipo PIS e COFINS, é pior ainda, porque a aliquota de cada imposto incide sobre o preço total que já tem os outros impostos embutidos. É uma gatunagem monumental, que fica por isso mesmo porque nossas escolas não ensinam matemática.
Se a sua dúvida é sobre o que deveria fazer parte da base de cálculo, a resposta do governo é a seguinte: na dúvida, tudo faz parte, e se vc acha que não procure a justiça.
Só para ilustrar: aqui no PR uns dez anos atrás passou um projeto de lei dizendo que nas contas de luz o valor da demanda contratada não deveria integrar a base de cálculo. O governador deve ter assinado sem ler. A COPEL continuou cobrando como se a lei não existisse. Uns dois anos depois, quando perceberam, editaram uma lei revogando a anterior e PROIBINDO que os consumidores fossem à justiça para pedir a devolução do que havia sido cobrado ilegalmente durante esse tempo.
Valeu pela resposta. Obrigado