Nosso país tem estado muito voltado para seus problemas internos e para a política local. Sendo assim, é possível que muita gente nunca tivesse ouvido falar de Javier Milei até o último fim de semana, quando ele foi o pré-candidato mais votado nas prévias argentinas. A surpresa ficou maior quando as pessoas buscaram descobrir quem era afinal o tal Javier e encontraram alguém que contraria a atual moda de atribuir ao estado todas as virtudes e esperar dele a solução de todos os problemas. Milei é um representante da escola libertária, que diz que o cidadão deve estar acima dos políticos, que a liberdade é mais importante que a burocracia estatal e que o governo cria mais problemas do que resolve.
A imprensa mundial, que não sabe falar de nada novo sem antes colar um rótulo, correu para designar Milei como “extrema-direita” ou “ultra-direita”. São definições que não definem nada, porque se baseiam em conceitos que já não existem mais, e que se tornaram meros auto-elogios para as diferentes torcidas organizadas que formam a política de hoje. Não importa, porque o programa de Milei não tem nada a ver com o que se costuma chamar de “extrema-direita”, e provavelmente vai escandalizar por igual aos simpatizantes tradicionais da “direita” e da “esquerda”.
O programa de Milei é ousado, embora para a teoria libertária ele ainda seja tímido, abrindo concessões em vários pontos. Mas é preciso reconhecer que passar subitamente de um sistema onde o governo controla tudo para outro onde o governo não controla nada é algo extremamente difícil de realizar na prática. De forma resumida, os pontos principais do programa são os seguintes:
1 – Reforma organizacional do governo, passando de 18 para 8 ministérios. Nenhum burocrata de carreira deve ser demitido inicialmente, mas eles serão realocados. Os nomeados políticos não serão renovados e serão reduzidos ao mínimo. Todos os privilégios de funcionários públicos, como guarda-costas e motoristas, serão eliminados, exceto nos casos em que forem absolutamente necessários por questões de segurança. Esta medida inclui também o início do processo de privatização ou fechamento de todas as empresas estatais.
2 – Redução dos gastos públicos. Para o primeiro orçamento, o objetivo é uma redução de 15% do PIB, eliminando o déficit. Do lado das receitas a idéia é simplificar, eliminando 90% dos impostos.
3 – Flexibilização da regulamentação trabalhista. A medida visa reduzir o custo e o risco de litígio nas contratações, além da implementação de um regime privado de seguro-desemprego. A expectativa é aumentar o número de empregos formais no setor privado de 6 milhões para 14 milhões.
4 – Liberalização do comércio. Isso inclui a eliminação de todas as tarifas de importação e exportação e a redução das restrições regulatórias, ao estilo do Chile.
5 – Reforma monetária. Esta medida inclui permitir o uso de qualquer mercadoria ou moeda estrangeira como moeda legal e o fim do Banco Central, o que resultaria na eliminação do peso argentino. Ainda existem detalhes não resolvidos em função dos passivos atualmente existentes no Banco Central, que precisariam ser honrados.
6 – Reforma energética. Esta medida pretende eliminar todos os subsídios aos fornecedores de energia, talvez substituindo-os por um subsídio do lado da demanda para famílias vulneráveis. Também se busca melhorar a infraestrutura energética através de incentivos a investimentos privados no setor.
7- Fomento ao investimento. Isso será feito por meio de uma legislação especial para investimentos de longo prazo, com foco em mineração, combustíveis fósseis, energia renovável e silvicultura, entre outros. Isso inclui eliminar restrições cambiais e taxas de exportação.
8 – Reforma agrária. Isso inclui a liberação do câmbio, a eliminação de taxas e retenções de exportação, a eliminação do imposto sobre a receita bruta, a eliminação de todas as restrições ao comércio exterior incluindo cotas e autorizações, uma nova lei de sementes e a melhoria da infraestrutura rodoviária por meio da iniciativa privada.
9 – Reforma judicial. A medida visa separar o judiciário da política promovendo, entre outras coisas, a independência orçamentária. Além disso, haverá incentivos para aumentar julgamentos por júri e procedimentos orais.
10 – Reforma previdenciária. Prevê avançar a longo prazo para um sistema privado no qual os usuários pagam pelos seus serviços de saúde. A curto prazo, visa oferecer programas de proteção de renda para mitigar a pobreza extrema, programas nutricionais, programas de educação parental sobre estimulação cognitiva, maior cobertura para pré-escola, incentivos à graduação, programas de integração de pessoas com deficiência, promoção de acesso a crédito privado e a eliminação de todos os intermediários na provisão de bem-estar social. Em paralelo, haverá um programa piloto de prestação de serviços via vouchers, a fim de estimular a concorrência entre os prestadores de serviço.
11 – Reforma educacional. Visa um maior grau de liberdade para escolha de currículos, métodos e educadores. Haverá um programa piloto de vouchers escolares, como na saúde, e um sistema de avaliação das escolas para que possam concorrer aos incentivos.
12 – Reforma da segurança. Essa medida inclui reformas nas leis de segurança interna, defesa nacional e inteligência, bem como uma reforma no sistema penitenciário para incorporar híbridos público-privados e intensificar a repressão ao narcotráfico.
Quais as chances de termos um país vizinho governado em moldes libertários? Sobre a eleição, eu não arrisco prognóstico, principalmente em função do segundo turno, onde as alianças mais estranhas podem acontecer. Mas me arrisco a dizer que, caso vença, a vida de Milei não será nada fácil, por vários motivos:
– Ele não terá uma base sólida no Congresso, o que pode inviabilizar a implantação de muitas das propostas.
– O apoio popular no momento do voto pode não se manter quando as mudanças começarem a abalar privilégios e direitos adquiridos.
– Haverá forte pressão da imprensa e da comunidade internacional, viciadas em estatismo, que sentem muito medo de qualquer possibilidade de sucesso de um modelo alternativo.
– Como a produtividade argentina é baixa, o processo de ajuste a um novo modelo econômico pode ser demorado e doloroso.
Por tudo isso, eu me mantenho cético em relação ao sucesso de Milei. Poderemos ter uma acomodação “pragmática” ao velho estilo da política, criando exceções e limitações ao plano até esvaziá-lo, ou poderemos ter mais um turno de caos, golpes, renúncias e deposições, o que parece ser algo cíclico na Argentina.
Gostaria que o programa do Milei desse certo. Mas a cara dele parece ser muito de populista. E os hermanos terão que pagar pra ver, porque a Argentina já está quebrada mesmo, então vale a pena tentar qualquer opção.
Também torço pelo Milei, Flávio. Meu medo é que os argentinos votem nele apenas por falta de opção mas fiquem contra quando ele mexer em certos interesses. Seria uma pena desperdiçar a oportunidade de testar na prática as idéias libertárias.
Gostei das propostas contidas no programa de governo de Javier Milei.
Excelente análise!