Na praça de Casa Forte, no Recife, onde o meu já eternizado e saudoso pai nasceu em 1918, há uma livraria de muito boa qualidade, com uma lanchonete de atendimento primoroso. No final do ano passado, lá encontrei um primo querido que andava meio desaparecido do cotidiano familiar, após ter sido contaminado pela Covid-19, em 2021, ficado curado e hoje plenamente vacinado com a bivalente para os sessenta +.
Conversa vai, conversa vem, ele me perguntou qual deveria ser o princípio fundamental de toda igreja, seja ela de que denominação fosse, cristã ou não.
E de pronto, após um lanche de ótima qualidade, acompanhado da Sissa, minha inspiração, um presente que Deus me deu no final de minha caminhada terrestre, combinamos um novo encontro, desta vez na residência dele, com alguns amigos espiritualistas, para debater um livro de quem muito admiramos desde o Vaticano II: VERACIDADE: O FUTURO DA IGREJA, Hans Küng, São Paulo, Editora Herder, 1969, 189 p.
Segundo disse o notável teólogo suíço Küng (1928-2021) em seu livro, “o século XX está cheio de toda espécie de inveracidade, de insinceridade, de mentira, de hipocrisia.” Lembrando até o Ministério da Verdade, criado por George Orwell, em seu romance famoso 1984, cuja tarefa única consistia em falsificar verdades históricas, tal e qual como nas nossas atuais democracias, que estão se especializando na “manipulação das verdades” na política, nos noticiários e nas propagandas comerciais e eleitorais. E por que não dizer, também nas áreas religiosas, judiciárias e militares.
Segundo Küng, entretanto, o que sempre persistiu no mundo pensante cristão foi uma OPV – Obsessão pela Veracidade, pela autenticidade e por uma originalidade audaciosa, objetiva e desapaixonada, toda sempre edificada por resultados de ótimos calibres analíticos. E foi mais além, o famoso teólogo, que tantos incômodos causou na sempre modorrenta burocracia vaticana, que nunca deixou de explicitar uma repulsa instintiva a tudo que favoreça o desabrochar das verdades. E Küng enumerou os três descuidos da veracidade, todos embasado nos bastidores da história. São eles:
a. Descuido da veracidade na teologia moral, quando, no sistema tradicional das virtudes, a veracidade emerge apenas num cantinho, sem integrar as virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade). Tampouco a veracidade integrando as virtudes cardeais (Justiça, Fortaleza, Temperança e Prudência).
b. Descuido da veracidade na teologia em geral, quando em vez de nos apegar a substância da fé, apegamo-nos às suas vestes, sem atentar para a recomendação paulina (1Cor 13,9-12).
c. Uma visão distorcida da Igreja, que ressalta a inveracidade sob dois aspectos: uma mentalidade de cerco, nada se concedendo ao inimigo; e erguer barricadas, destacando as partes fortes, camuflando as vulnerabilidades, pintando de branco ou cinza o que for tipicamente enegrecido.
No encontro acontecido na residência do primo muito querido, quatro horas de muita reflexão sempre afetivas, com guaranás e bolinhos, já se marcou outra reunião, no período próximo junino, quando deverão ser debatidos dois livros que muito incomodaram os cristãos menos pensantes. O primeiro: O CRISTIANISMO AINDA NÃO EXISTE: ENTRE PROJETOS INEXISTENTES E A PRÁTICA DO EVANGELHO, Dominique Collin, Petrópolis RJ, Vozes, 173 p. O lema principal do livro é um prensar célebre de Tertuliano (“O ser não nasce cristão, ele se torna cristão”), juntamente com um desabafo feito por Kiergaard (“É uma enorme ilusão da Cristandade, quando tem a pretensão de proclamar que todos os habitantes de um país são igualmente cristãos”).
O segundo texto para estudo, análise e debate: “JESUS: A HUMANIZAÇÃO DE DEUS, José M. Castillo, Petrópolis RJ, Vozes, 2015, 580 p.
Os livros acima, escritos por autores cristãos, um de frade dominicano, o outro de teólogo mundialmente reconhecido, buscam, com suas reflexões, salvar o Cristianismo das religiões contemporâneas, favorecendo uma veracidade eclesiástica que responda libertadoramente aos desafios de um rapidamente emergente novo mundo, que se consolidando diante de todas as contradições, pugnando sempre pelo ideário apocalíptico do apóstolo João: que todos saibam cada vez mais sobre Jesus e creiam intensamente na efetividade da Sua Mensagem.