Terminou o feriadão do Carnaval, e só restaram as cinzas. O tempo não parou para ver a “Banda” passar. Simplesmente, a Banda, mais uma vez, foi proibida de passar.
Saudade da composição de Chico Buarque de Holanda A Banda:
A “minha gente sofrida” ainda não pôde se despedir da dor, “pra ver a Banda passar, cantando coisas de amor.. “
“O homem sério que contava dinheiro” não parou; “o faroleiro que contava vantagem” não parou; “a namorada que contava as estrelas” também não parou, para ver, ouvir e dar passagem à Banda, que mais uma vez, neste carnaval, foi proibida de sair às ruas.
“A moça triste que vivia calada” não teve motivos para sorrir…”A rosa triste que vivia fechada” não se abriu…
“A meninada” nem ao menos se assanhou, pois não havia banda a passar, tocando coisas de amor.
“O velho fraco” não se esqueceu do cansaço, nem pensou que ainda era moço pra sair no terraço e dançar…
“A moça feia” não se debruçou na janela, pensando que a banda tocava pra ela, pois, simplesmente, não havia banda.
“A marcha alegre” não se espalhou na avenida, nem “a lua cheia”, que vivia escondida, surgiu.
E a minha cidade não se enfeitou, pois não havia banda a passar, cantando coisas de amor.
O carnaval do fatídico mês 2 do ano de 2022 foi um desencanto total e “a Banda”, mais uma vez, não passou.
Há mais de dois anos, o povo não sabe o que é alegria nem liberdade de brincar o Carnaval. Nada mudou de lugar, nem a banda passou cantando coisas de amor.
Lembrei-me do personagem de Carlos Heitor Cony, na crônica “Cinzas e Nada Mais”. Trata-se de um religioso, que atendia pelo nome de Monsenhor Cinzas, como fora apelidado. Ao contrário do que o apelido sugeria, não era incolor nem apático, e sim um homem sanguíneo, dono de inúmeras frustrações e revoltado contra as pessoas bem sucedidas. Um pasto de “imensas cóleras contra a iniquidade do homem”.
Não tinha nada de cinzento, a não ser a alma.
Seu comportamento amargo afastava as pessoas que dele se aproximavam. Destruía as amizades, com sua curiosidade mórbida e sua inveja gritante. Sua revolta e seu mau humor deram origem ao apelido, que o acompanhou por toda a sua vida.
O apelido vinha do fato dele sempre gostar de lembrar que tudo na “humana lida” termina em cinzas.
Seu dia glorioso, seu grande dia, portanto, era a Quarta-feira de Cinzas (sua “finest hour”). “Cinzas e Nada Mais” era o seu bordão.
Ele passava o ano todo se lembrando de que toda a glória, toda a exultação e toda a formosura, mais cedo ou mais tarde, sem metáforas nem ressentimentos, acabam em um punhado de cinzas. E só se sentia feliz, quando tinha oportunidade de gritar o seu bordão: “Cinzas e Nada Mais”. Queria entristecer as pessoas que lhe ouviam e acabar com a alegria de viver de todos.
Contam os memorialistas que “quando o Fluminense foi tricampeão em 1938, Monsenhor Cinzas, que era Botafogo, invadiu a festa das Laranjeiras e ficou gritando: “Cinzas e Nada Mais!” Como quem diz: “Um dia, isto se acaba”…
Sua ferocidade era destruidora e desarticulava a alegria de quem estivesse feliz. Conta-se que ele agrediu um folião na terça-feira do Carnaval de 1944, que no bonde, cantava alto nos ouvidos dos passageiros:
“É hoje só, amanhã não tem mais! É hoje só, amanhã não tem mais!”
Deu-lhe um bofetão e ameaçou os demais passageiros, gritando:
“Cinzas e Nada Mais! Cinzas e Nada Mais!”
Monsenhor Cinzas terminou velho, desbotado e cinzento. Sofreu um AVC, sobreviveu, mas, mesmo assim, continuou revivendo “sua glória”, quando chegava a Quarta-Feira de Cinzas. Esse dia era para ele, ao mesmo tempo, a epifania, o Natal, a Páscoa e o triunfo. Era o dia das cinzas!!! Sua glória!
Ele era o verdadeiro “Corvo”, de Alan Poe. Uma figura macabra.
Foi professor de vários idiomas, mas a única frase que deixou gravada na memória dos alunos foi:
“Cinzas e Nada Mais!”
Pesquisando as marchinhas antigas, da coleção (Anos 30 a 84),organizada pelo produtor musical natalense, meu amigo José dias, encontrei essa bonita e significativa marchinha de Carnaval dos anos 30, “Rasguei Minha Fantasia”, do grande compositor brasileiro, Lamartine Babo: (Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1904 — Rio de Janeiro, 16 de junho de 1963).
Minha querida Violante!!! Que texto maravilhoso!!! Gostei de tudo, mas especificamente, das suas citações à música de um dos compositores mais incríveis deste país: Chico Buarque. Sempre gostei do Chico e de sua obra; Minha tese de Mestrado, foi estudando sua obra. Não me importa o que ele defenda politicamente. Isso não irá derimir sua composição. Sempre fui defensor que, música boa, cinema, Literatura e cultura de um modo geral, sejam livres de ideologias políticas. Sei que isso é impossível, mas, nesses dias que estamos vivenciando, dizer que gosta de Chico Buarque, de Vinícius ou de Tom Jobim, é um pecado impraticável e imperdoável. Isso pra mim, não faz o menor sentido. Não deixarei de ouvir Chico ou quem quer que seja, porque defendem o que defendem. E acredite: sempre achei Chico coerente, pois ele nunca se desviou do viés político que sempre defendeu. Só espero que as pessoas possam entender isso. A cultura agradecerá, certamente.
Obrigada pela gentileza do comentário, querido maurinojunior!
Fiquei feliz com suas palavras.
Sua tese de Mestrado, estudando a obra de Chico Buarque deve ser um primor.!!!
Admiro Chico Buarque desde a sua “aparição” nos festivais. Ele tinha 22 anos, quando estourou com “A Banda”, composição que ainda hoje agrada a “gregos e troianos”, velhos e crianças. Não importa o posicionamento político dele, nem sua fidelidade às antigas amizade do seu tempo de juventude. A personalidade forte que ele tem lhe dá direito a manter a autenticidade.
Concordo com você, quando diz:
“Não me importa o que ele defenda politicamente. Isso não irá derimir sua composição. Sempre fui defensor que, música boa, cinema, Literatura e cultura de um modo geral, sejam livres de ideologias políticas. Sei que isso é impossível, mas, nesses dias que estamos vivenciando, dizer que gosta de Chico Buarque, de Vinícius ou de Tom Jobim, é um pecado impraticável e imperdoável. Isso pra mim, não faz o menor sentido. Não deixarei de ouvir Chico ou quem quer que seja, porque defendem o que defendem. E acredite: sempre achei Chico coerente, pois ele nunca se desviou do viés político que sempre defendeu. Só espero que as pessoas possam entender isso. A cultura agradecerá, certamente”.
Eu também me declaro fã incondicional de Chico Buarque, independentemente de suas posições políticas.
Eu aprendi a somente render homenagem ao talento. E isso, ele tem “pra dar e vender”, como diz o ditado popular.
Grande abraço.
Queridíssima Vivi,
O “senhor” “Cinzas e Nada Mais” tinha um espírito amargurado, provavelmente nunca amou nem a si próprio, como o comprova sua excelente crônica. Carlos Heitor Cony era um craque em criar esses personagens controversos em suas maravilhosas crônicas publicadas nos jornais de todo o Brasil.
Quanto ao extraordinário compositor Chico Buarque, o que mais me impressiona nele é a atualidade de suas composições. Só se atendo em uma: Passados mais de 50 anos de composta “Quando o Carnaval Chegar” continua atualíssima e encantado a quem gosta de música inteligente.
Excelente final de semana a queridíssima cronista e a seus entes queridos.
Obrigada pelo carinho do comentário, querido cronista Ciço Tavares!
Você tem razão: O Sr. Cinzas, com certeza, “tinha um espírito amargurado, e, provavelmente, nunca amou nem a si próprio.”
Devia ser um homem extremamente infeliz, que odiava a vida..É estranho que tenha aguentado viver tanto!
“Quando o Carnaval Chegar” é profético. Assisti o filme, de Cacá Diegues (1972).A música foi composta para esse filme..
https://www.youtube.com › watch
Lançamento:
4 de julho de 1972 No cinema / 1h 43min / Comédia Musical
Direção: Carlos Diegues
Elenco: Hugo Carvana, Chico Buarque de Hollanda, Nara Leão e Maria Bethânia..
Roteiro: Hugo Carvana, Cacá Diegues, Chico Buarque.
SINOPSE
O empresário de um grupo de cantores sem sucesso, lhes consegue um contrato para que se apresentem em homenagem a um rei que chegará à cidade para o Carnaval. Discussões internas, romances inesperados e defecções impedem que o espetáculo se realize. Mas os artistas voltam a se juntar, apresentando-se em shows mambembes.
PS. O espírito da censura já estava no auge.
Grande abraço, e um excelente final de semana para você também e seus familiares!
Violante,
Parabéns pelo excelente texto. Muito boa a lembrança da composição de Chico Buarque de Holanda A Banda, iniciando a crônica. Ressalto que Chico, na época dessa famosa música, não era engajado politicamente ainda, ele só retrata a chegada de um circo em uma pequena cidade ociosa. Essa ausência política em suas musicas inicialmente, fez que ele recebesse diversas críticas a respeito de suas composições. Caetano chegou a falar mal de seus sambas, pois não condizia com o período vivido. Chico, foi se engajar politicamente bem depois, com Cálice e Apesar de Você.
Quanto a crônica de Carlos Heitor Cony “Cinzas e Nada Mais”, descreve o comportamento humano extraindo o máximo das diferenças psicológica de uma pessoa complexa como o religioso que atendia pelo nome de Monsenhor Cinzas, como fora apelidado.
Transcrevo o último parágrafo da referida crônica, pois demonstra todo o vigor desse talentoso cronista: “Foi meu professor de grego durante dois anos. Tenho um bom motivo para só ter aprendido uma única frase no idioma de Homero: cinzas e nada mais!”
Desejo um final de semana pleno de paz, saúde e felicidade
Aristeu
Obrigada pelo gratificante comentário, prezado Aristeu!
Chico Buarque, nascido em berço de ouro, teve seu período de posicionamento político contrário à situação, e sofreu muito com a censura das suas composições, nos chamados “anos de chumbo”, chegando a ser “convidado” a sair do País, o que aconteceu também com outros artistas da época.
A crônica de Carlos Heitor Cony, “Cinzas e Nada Mais”, retrata o que se passa na mente humana, os conflitos existenciais e os traumas consolidados no “eu profundo”.
As razões responsáveis por tanta amargura, na alma do Monsenhor Cinzas, continuam sendo uma incógnita. Ele devia ter suas razões para tanto desencanto diante da vida..
Você enriqueceu o meu texto, ao transcrever o último parágrafo da excelente crônica de Carlos Heitor Cony, “Cinzas e Nada Mais!”.
Um final de semana pleno de paz, saúde e felicidade, para você também!
Eu, muito vivo, vivi e vi Vivi,
Cenas do Caminho? “É hoje só, amanhã não tem mais! É hoje só, amanhã não tem mais!”. Ou melhor, tem sim, é só ir no cantinho direito do JBF e acessar a coluna Cenas do Caminho da encantadora Vivi e se deleitar, pois ali, reunidinhas, tem crônica pra mais de metro. E Sancho garante que cada uma melhor do que a outra…Vida longa à dona de nossas sextas, sempre um prenúncio de finais de semana maravilhosos. Beijão, Vivi!!!!!!
Obrigada pelo carinho do comentário, querido Sancho.
Adorei o trocadilho!
Você me reportou ao excelente livro “Confesso que Vivi” , do autor chileno Pablo Neruda.
Um livro “quase” autobiográfico, escrito ao longo de vários anos e publicado postumamente no ano de 1974.
Ao longo de mais de 400 páginas, o laureado com o Prêmio Nobel da Literatura de 1971 descreve o trajeto da sua vida, recorrendo a uma prosa repleta de imagens poéticas, que prende facilmente a atenção do leitor.
As últimas páginas do último capítulo desse livro foram escritas no curto intervalo de tempo de apenas doze dias, entre o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 e a morte de Neruda em 23 do mesmo mês.
Nessas linhas, o poeta fala de forma amargurada das esperanças derrubadas pela violência dos militares e das memórias do seu amigo, o então Presidente do Chile, Salvador Allende.
Vale a pena ler (ou reler) “Confesso que Vivi”, de Pablo Neruda!
Grande abraço!
Maravilha de crônica, Violante!
Bons tempos quando o Chico Buarque não era contaminado pelo ideologia da grana fácil nem advogado de ladrão. Sua profética composição “vai passar”, é uma ode a passagem do PT pela presidência do pais.
Quanto ao Monsenhor Cinzas, foi fácil matar a charada. Na verdade ele não gostava de mulher.
Seu sacerdócio foi impositivo, não havia vocação, era de fachada. Daí tanta amargura.
Fico imaginando quando ele lia a parte de Provérbios 21:10: ” A alma do ímpio deseja o mal; o seu próximo não agrada aos seus olhos”. Ele era ímpio por natureza.
Um excelente fim de semana.
Obrigada pelo comentário gentil, prezado Marcos André!
Na verdade, quando Chico Buarque ainda não havia se contaminado pela “ideologia da grana fácil” nem se entrosado com a esquerda, os tempos eram bem melhores.
Ele iniciou sua carreira de compositor, quando “a maldade nem tinha nascido.”.
Lançou “A Banda aos 22 anos,(1966), no Festival de Música Popular Brasileira, da Record..
Sua composição “Vai Passar”, realmente, foi profética, parecendo mesmo uma ode à passagem do PT pela presidência do pais.
Seu talento nato, por se tratar de um dom divino, permanece o mesmo.
Quanto ao Monsenhor Cinzas, você matou a charada mesmo. “Seu sacerdócio foi impositivo, não havia vocação, era de fachada”.
Um excelente fim de semana para você também.