CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

Devorando o Sardinha

Agora em 2020 vão fazer 464 anos que o bispo Pero Fernandes Sardinha foi devorado pelos Caetés na Costa de Alagoas. Inimigo de Álvaro da Costa – filho do governador-geral, Duarte da Costa – que passava a pajaraca nas índias aqui da terra brasilis, e Sardinha ficava emputiferado da vida com isso, o sacerdote resolveu ir a Portugal dar queixa diretamente a El-Rei D. João III. Deu azar, o navio fi a pique apenas a 24 km da costa e, azar duplo, caiu nas mãos dos Caetés que o jantaram.

Oswald de Andrade, no começo do século XX, mais especificamente na década de 1920 publicou o Manifesto Antropofágico, saudando a deglutição do Sardinha como uma forma de criação da brasilidade, pelo ato de comer, metaforicamente, por certo, a cultura européia e Graciliano Ramos, na década de 1930, ao publicar o romance Caetés traz essa nostalgia antropofágica também.

Mas isso é tudo fuxico. O que eu quero mesmo debater é o fato de que, desde o churrasquinho do Sardinha, ainda permanecemos ao redor da fogueira lambendo os beiços e saboreando o bispo. Um aqui do lado se delicia com o mocotó do bispo. Outro ali, prefere uma carne mais nobre e ataca o coxão duro do sacerdote, isto é, a carne da bunda. Uma caeté velha, desdentada ao meu lado prefere chupar o tutano do fêmur do religioso, e por aí vai. Lá adiante dois caetés de colo brincam com os ossos da mão esquerda do bispo.

Mario de Andrade, em Macunaíma revelou o caráter da brasilidade a partir de uma palavra chave dita pelo herói sem caráter de seu romance: “Ai, que preguiça”. Tem sentido de ser, levando em conta nosso amadorismo, aversão aos estudos, falta de capricho quando fazemos as coisas e ligeireza em buscar uma sombra para nos “escarrapacharmos”, enquanto outros trabalham. Basta ver aquilo que é feito em matéria de obras e serviços. Uma estrada construída no Brasil já apresenta buracos antes mesmo dela ser entregue. Um carro começa a dar defeito ainda no primeiro ano de compra. Mandar fazer uma reforma em casa? Esquece. É melhor deixar a coisa como está e dizer aos demais caetés que é “vintage”.

“Essoutro dia” estava levando uma amiga para o serviço dela. Na volta, atrás de uma picape, dessas bem grandona, uma lata de cerveja voa da janela dela e passa triscando meu carro. Tive vontade de sair e chamar para a briga. Parei e pensei: lembre-se Roque… caeté não briga com caeté. E nesse 2019 vi muita gente na rua, em roda de amigos, fazendo comício que queria um país sem corrupção, que respeitasse as leis, que fosse ordeiro e honesto, que queria uma classe política sem ladrões e safados. Mas, também vi essas mesmas pessoas furando o sinal vermelho em pleno meio dia, tentando enganar o garçom na hora de pagar a conta da cervejada, tentando dar um passa-moleque em idosos, e bajulando aqueles mesmos safados que eles dizem combater.

Vi gente jogando casca de fruta, papel de bala, palito de pirulito, fralda suja, cadáver de cachorro nos “corgos” aqui da gloriosa Campo Grande que formam o rio Anhanduí. Tudo bem…. aqui no perímetro ele não é bonito, é raso e estreito, mas uns 100 km abaixo se torna um rio lindo, tributário do rio Dourados que deságua no poderoso rio Paraná. E esse lixo todo vai para lá, quando também não entope bocas de lobo, galeria de águas pluviais e acaba por inundar as casas daqueles mesmos que jogaram o lixo em local inapropriado.

464 anos após a morte do Sardinha, ainda continuamos jantando o coitado, em um processo anti-civilizatório, anti-social, anti-humano. Basicamente, cotidianamente nós teimamos em apresentar a faceta mais selvagem dos caetés, sob o manto de uma hipocrisia bem vagabunda. Falamos alto, somos inconvenientes, não respeitamos os brancos cabelos de um senhor, ou senhora já curvados pelo tempo. Sempre estamos buscando a melhor parte do Sardinha para devorar com cupidez e pressa.

Aí, quando ouço alguém falar que precisamos chegar ao primeiro mundo, rio para não chorar. Não dá para chegar ao primeiro mundo com um pedaço do fígado do Sardinha nos dentes. Não dá para ser uma nação civilizada se não nos levantarmos de perto dessa fogueira, cuspir a carne do Sardinha, apagar o fogo antropofágico e começar a tirar a essência caeté de dentro de nós. Conta a história que os portugueses, ao dizimar os caeté conseguiram tirar o Brasil dos Caetés. O que nos falta é tirar os caetés de dentro do Brasil.

Ei, moleque…. larga essa tíbia do Sardinha…. estou assando ela para a janta!

7 pensou em “ROQUE NUNES – CAMPO GRANDE-MS

  1. Roque, muito bom. É exatamente esse combustível da hipocrisia que nos impulsiona. O cara que compra maconha nos morros, participa das passeatas pela paz, contra a violência e tudo mais; o cara defende uma tese criticando ministros do STF que faziam parte do governo e ele próprio é indicado pra o STF quando era ministro; o cara é candidato a prefeitura defendendo o direito das mulheres até que a esposa mostra o olho roxo de um murro que levou; o cara é eleito pra governo do estado prometendo educação e saúde de qualidade e desvia R$ 3 bilhões da educação e da saúde e aí vem um ex-presidente que foi preso porque roubou e diz que esse cara é inteligente, honesto, trabalhador e que deveria ser senador pra ajudar o Brasil
    Traga mais Sardinha que aquele foi pouco.

  2. fui convidado para asistir uma queima de fogos na virada do ano,numa cidadezinha de bosta aqui perto onde moro, palanque armado e o locutor ficou berrando o nome do prefeito, da primeira dama , dos vereadores por quase hora e meia,contrataram uma empresa de segurança com quase 50 integrates sendo que não tinha nem 500 pessoas no local,na hora da queima de fogos por algum motivo , os fogos não explodiram. tudo isto com dinheiro publico . estes municipios pequenos é uma mina de ouro para os espertos politicos que os administra.uma verdadeira bosta.voltei para casa p. da vida.

  3. Roque Nunes, você fotoescreveu a realidade do Brasil e do povo brasileiro.
    Quem já viajou alguma vez ao exterior, fica pasmado com o contraste entre
    o comportamento brasilis e os mais civilizados de além mar.
    Claro que estupidez e ignorância lá também existe , mas os nossos
    níveis são olímpicos e não vemos nenhuma possibilidade de
    melhorar o nível civilizatório do nosso povinho. Eta povinho crú e atrazado !
    Os Caetés brasilienses não mais estão comendo sardinhas. O seu apetite
    cresceu em proporções gigantescas e agora devoram uma baleia diáriamente
    e arrotam na nossa cara o bafo podre da sua natureza incivilizatória.
    Como disse o professor Adonis no comentário acima, o seu
    artigo fecha o ano com lauda de ouro.

  4. Roque, meu conterrâneo:i Você é “porreta”. Seus artigos são sempre tri-legais.”OMEDETÔ” (PARABÉNS em “japa”) para o Editor Berto e JBF por contar com articulista do seu quilate .

  5. O ritual dos “canibais”tinha o intuito de adquirir as qualidades do “comido.”Como o referido bispo era um pilantra, foi o que adquirimos;

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