Roberto Motta
Moro em uma das cidades mais lindas do mundo. É também uma cidade que sofre, há muitas décadas, com uma infestação de crime, organizado e desorganizado. Eu amo minha cidade, o Rio de Janeiro. Obviamente, não a amo por causa do crime; amo apesar do crime. Parece óbvio, mas o óbvio escapa a muita gente.
Minha família se mudou para o Rio de Janeiro em 1973. A primeira impressão que tive, de uma cidade absurdamente bela, permanece até hoje. A geografia do Rio combina mar e montanha, rocha e floresta, céu, lagos e ilhas como nenhuma outra cidade que conheço. Me dizem que o Havaí é assim, mas eu nunca fui ao Havaí. Para mim, o Havaí é aqui.
Como qualquer pessoa apaixonada, vivo postando elogios e fotografias do objeto do meu amor. Tenho milhares de fotos do Rio e faço dezenas de novas imagens todos os dias. Inevitavelmente, quando posto as fotografias, há sempre alguém que faz um comentário do tipo: “de que adianta essa beleza se a cidade está infestada por bandidos?”
A resposta é: adianta muito. A lógica diz que é melhor viver em uma cidade linda infestada por bandidos do que em uma cidade feia infestada por bandidos. A beleza é necessária para a sobrevivência da alma. Percebam: eu não escolhi o domínio do crime para o Rio de Janeiro. Na verdade, há mais de uma década eu me dedico a combater o crime através da disseminação de conhecimento e da ação política. Cheguei até a assumir por um curtíssimo período o cargo de Secretário de Segurança.
Não vejo contradição entre apreciar – e divulgar – a beleza do Rio de Janeiro e reconhecer os graves problemas de segurança. São problemas que afetam a maioria das grandes cidades do país; muitas estão em situação mais grave do que o Rio. O crime não fecha meus olhos à beleza e nem embota meu espírito. Tenho a mesma rotina tensa e preocupada da maioria dos brasileiros, mas moro em um lugar cuja natureza foi dotada por Deus de uma beleza singular. Todos os dias eu observo e louvo essa beleza. Ela eleva meu espírito e torna a minha vida melhor. Eu compartilho essa beleza com os outros.
Aplico meus sentidos ao reconhecimento diário das maravilhas que me cercam. Observo como a posição aparente das ilhas Cagarras muda à medida que caminho pela areia de Ipanema. Admiro os aviões da ponte aérea fazendo uma curva sobre a Urca e quase tocando a água da Baía de Guanabara, quando pousam no Aeroporto Santos Dumont. Fotografo os mergulhões, aves marítimas de asas enormes, que voam alto sobre Copacabana em dias de vento sudoeste, uma ave tentando tirar o peixe do bico da outra. Torço pelos surfistas que descem montanhas de água no Arpoador. Coleciono fotografias do Cristo Redentor visto da Marina, da Igreja da Glória, da curva da Praia de Botafogo ou iluminado sobre a lagoa Rodrigo de Freitas.
Estou voltando para casa, em um carro de aplicativo, quando olho pela janela e vejo o céu chuvoso com as ilhas Cagarras ao fundo. Dá uma foto linda. Quando publico a foto uma moça comenta: “Motta, pena que só na foto. Ao vivo é uma linda cidade abandonada, enferrujada, corrompida e sitiada”. Claro, muita coisa no Rio tem piorado depois que a capital mudou para Brasília. A simbiose entre crime, esquerdismo e populismo faz o possível para destruir a cidade – sua última conquista foi a ADPF 635, que suspendeu durante cinco anos as operações criminais. Traficantes dominam centenas de territórios. Tudo isso é verdade. Mas a postagem era uma fotografia das ilhas Cagarras.
Se os criminosos nos roubaram a capacidade de perceber e apreciar a beleza que nos cerca – se eles nos tornaram cegos para tudo aquilo com que Deus nos presenteou nessa cidade – então, de verdade, eles já nos roubaram tudo.