JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

Segunda passada foi Finados. O dia de chorar nossos mortos. E lembrei de fazer, aqui, uma comemoração torta dessa data. Relatando, ao amigo leitor, como será meu triste fim. Cemitério de Santo Amaro, em frente ao túmulo do avô (ex-governador Agamenon Magalhães). Maria Lectícia olha para mim, com ar inocente, e diz: “Quando o primeiro de nós dois morrer, EU vou lhe enterrar aqui”. Fiquei preocupado. Não pelo fato da morte certa, um dia. E antes dela, claro. É o que desejo. Imitando Machado de Assis, com sua Carolina. Embora não tenha planos de que isso ocorra tão cedo. A preocupação era porque à direita do mausoléu, sob a inscrição HISTÓRIA, o sol da tarde é forte. E deve ficar muito quente, lá dentro. Desagradável, para os hóspedes. Por isso perguntei “De que lado?”. E ela, “Escolha”. No lado esquerdo, sob a inscrição VIRTUS, vi que havia pequena mangueira sombreando. Seria bem mais agradável. E disse, apontando, “Aqui”. Sei, portanto, até onde serei enterrado. Um privilégio.

Na lápide, prometeu por frase que vivo repetindo, “Ai, que vida boa”. Se achasse ruim, poderia usar Poe, “Nunca mais”. Ou Sinatra, “O melhor ainda está por vir”. Ou Jimi Hendryx, “Nos veremos na próxima, baby. Não demore”. Ou, mesmo, Evita, “Cumpri minha humilde imitação de Cristo”. Só não a maldição que Shakespeare deixou para a dele, em Stratford-upon-Avon, “Maldito será aquele que mover meus ossos”. Ou a que Jô Soares deseja para o seu, “Enfim, magro”. Mas estou em dúvida. Ari Barroso, antes de partir, deixou no papel sua derradeira vontade. De que, no túmulo, estivesse a frase “Aqui jaz um homem que odiava jazz”. E a mulher não cumpriu. Desconfio que assim também será, comigo.

Para completar, fiz três pedidos. Primeiro. Não acredito em Deus, mas vai ver que ele existe. Nem que haja um céu, ou que mereça ir para lá. Só que se acaso for, com a enorme hipermetropia que tenho, não vou ver nada. “Como vai José?”. E, eu, “Quem fala?”. “É J. Cristo, rapaz, não estás me reconhecendo?”. Um vexame. O padre Sérgio Absalão, da Igrejinha dos Aflitos (na Rosa e Silva), garantiu que no céu todos seremos perfeitos. Sem precisar usar os tais óculos. Mas prefiro não confiar nessa tese. E pedi, então, para ser enterrado com eles. Lectícia prometeu. Mas estou quase certo de que não vai por no rosto, como pedi. Talvez, no bolso do paletó. Seja. Melhor que nada. Segundo pedido, isso acredito fará, que pusesse junto um charuto Montecristo. Pelo sim, pelo não…

Por fim, ninguém sabe, fui honrado com a mais importante comenda concedida pelo governo brasileiro, a Ordem do Rio Branco. Tanto que só pode ser entregue pelo Presidente da República. Quando o diplomata do Itamarati ligou, para combinar a cerimônia, pedi que mandassem pelos Correios. O homem disse que nunca ocorreu algo assim, antes. O normal é receber com pompas e bater fotos, para sair nas colunas sociais. Mas acabou aceitando. O terceiro pedido era de que Lectícia me enterrasse com ela. Pelo menos os amigos, que fossem ao velório, iriam saber que fui. Não teve conversa. “Faço não, é muito cafona”. Danou-se. Morto, no calor, sem ver direito, sozinho e descondecorado. A sorte é que isso vai acontecer apenas em 2.500. Ou ainda mais tarde, espero.

12 pensou em “QUASE FINADO

  1. Genial! Dizer mais o quê? Dr. José Paulo?

    A morte, que é certa! Deus, que não existe!

    E o que somos? Poeira das estrelas!

    Somos passageiros da Terra!

    E fim de papo, dizia Raul!

  2. Sr. José Paulo, se não acreditas em Deus, deves mesmo se preocupar se seu corpo ficará do lado da sombra ou do sol no cemitério, depois de enterrado. É o que lhe resta.

  3. Meu caríssimo doutor,
    esqueceu o nobre amigo de combinar com Dona Lectícia incluir um pedido para fazer -lhe a companhia última e íntima: um livro. Não um livreto qualquer, mas um Livro. Que tal Pessoa? De que valerão o MonteCristo e os óculos se livro não houver para ser lido à sombra da mangueira do lado esquerdo, sob VIRTUS? E de papel. Nada de e-book. Tomara que no ano 2600 livro de papel ainda haja.
    No mais, lamentarei não poder ir ao féretro, pois o meu terá sido em 2599.

  4. Muito bom. Bem bolado. Esse quadro mental vai lhe permitir ser identificado por ele. Óculos, charuto, paletó, a comenda, mas cadê vá palavra articulada?

  5. Mestre

    Procure convencer Dona Lecticia a botar os óculos na cara e não no bolso. Diga para ela que Paulo Francis foi assim, e ficou muito bem apresentado. Diga mais, que sem ele pode ser que o porteiro (São Pedro) não o reconheça e pode até vedar sua entrada, né não? .

  6. O pedido é inusitado, mas não é inédito.
    Por aqui, nas terras tabajaras, já tivemos um caso semelhante, que envolveu famílias de escol e causou muitos comentários nas rodas chiques da cidade, por bastante tempo e até se faz lembrado nos tempos atuais.
    Faleceu o advogado e poeta localmente prestigiado Celso Octávio de Novais e sua família o levou para o inadiável velório exibindo o complemento de sua personalidade, que eram os óculos marcantes de uma miopia em alto grau, complemento fisionômico que a sociedade paraibana que a muito se integrara ao perfil do pranteado e agora o acompanhava na caminhada final.

  7. E amamos mais o jbf por causa disso.

    Eita texto primoroso…

    Retiro do comentário de Cícero: E o que somos? Poeira das estrelas!

  8. Não acredito em Deus, mas vai ver que ele existe. ( … e no creo en brujas, pero que las hay, las hay origem)

    Há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar…

    Fantástico, Dr. Paulo.

  9. Pingback: LEITORES RE-FINADOS | JORNAL DA BESTA FUBANA

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