MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Aconteceu de novo. Alguém do governo mexe no que não devia, talvez achando que “ninguém vai perceber”, a oposição percebe, faz uma gritaria com “Bolsonaro vai privatizar o SUS”, o governo se apavora e corre para voltar atrás e dizer que não é nada disso. Além de mostrar mais uma vez um governo inseguro, “perdido” e inábil em se comunicar com a população, o caso traz duas constatações:

1 – O povo não sabe o que é privatização, mas acha que é algo ruim.

2 – Os políticos preferem ser acusados de bater na própria mãe do que de ser a favor de privatização.

Dentro de uma visão de livre mercado, privatizações no Brasil são mais raras que eclipses. Podemos citar a Embraer, que como estatal se arrastava com projetos intermináveis e depois de privatizada se tornou a terceira maior empresa do ramo no mundo. A Embraer foi privatizada de verdade, o que significa estar exposta à concorrência, ter liberdade para decidir e arcar com as consequências destas decisões.

O que tem muito no Brasil é aquilo que a esquerda chama de privataria (um trocadilho entre privatização e pirataria, creio eu). Significa pegar uma empresa pública e monopolista e entregar para algum amigo, que na maioria das vezes não precisa nem botar a mão no bolso, o BNDES paga tudo. A empresa, sendo “privada”, está livre para fazer os negócios que quiser e da maneira que quiser. O lucro está garantido porque o governo garante o monopólio e “regulamenta” as operações, definindo inclusive qual vai ser a margem de lucro. É bom para o novo dono, que ganha uma boa grana (dividida com seus amigos do governo, claro). É bom para o político, que pode fingir que não têm culpa dos serviços ruins e reafirmar a velha falácia do “se não fosse o governo, as coisas estariam muito piores”. Na próxima eleição reestatiza-se a empresa, o antigo dono embolsa uma fortuna, os novos governantes abaixam demagogicamente as tarifas (e cobrem o rombo com subsídios), e o povo continua mal-atendido.

A coisa chega ao nível do fanatismo religioso quando se fala a palavra mágica “direito à saúde”. Para insistir na metáfora, acusar um político de defender privatização na saúde é como dizer que o político surrava a mãe com um rabo de tatu. A opinião do brasileiro médio se baseia nas seguintes “verdades” que ele leu no tuíter e no feicebúqui:

1 – Empresas privadas só pensam no lucro e tratam mal os seus clientes.

2 – Nos Estados Unidos malvados e capitalistas o governo deixa a saúde a cargo do mercado e portanto só os milionários tem direito à saúde e os pobres morrem jogados na porta dos hospitais.

3 – A Suécia e a Inglaterra tem o melhor atendimento do mundo porque é feito pelo estado.

Para acreditar no ítem 1, o brasileiro ignora alegremente o fato de que ele todo dia é atendido (e bem atendido) por empresas privadas, cada vez que compra pão, leite, carne, roupa ou jornal. É a iniciativa privada quem corta o cabelo, conserta a lavadora, abastece o carro e faz balanceamento nos pneus. O jardineiro, o serralheiro e o pintor são iniciativa privada. Em todos estes casos, o atendimento é bom porque existe concorrência: quem não gostar do atendimento, vai para o concorrente. É fácil notar que quando um setor é regulado pelo governo, a concorrência diminui e a qualidade do atendimento também; é o caso do setor de telefonia e internet (quatro empresas) e dos bancos (dois estatais e três privados). Sobre a qualidade do atendimento no setor público, nem vou falar. Mas o brasileiro continua repetindo que se um setor for privatizado, “a qualidade vai piorar” e “os preços vão subir”.

O ítem 2 é apenas uma “ficção conveniente”, para não dizer “mentira deslavada”. Nos EUA, o setor de saúde é rigidamente controlado pelo governo e não tem nada de livre mercado. As regras restringem a concorrência e protegem as empresas ineficientes, uma das razões para os planos de saúde privados serem caros – as outras são a insegurança jurídica e, mais recentemente, a maluquice do Obamacare. Mas ninguém fica sem atendimento médico por não ter plano de saúde: um sistema estatal constituído pelos programas Medicaid e Medicare fornece atendimento a qualquer pessoa pobre (a um custo anual para os contribuintes de 1,4 TRILHÃO de dólares). O atendimento não é tão bom quanto o das empresas privadas? Claro que não, nenhum serviço do governo é. Mas os brasileiros fingem não ver a contradição e continuam falando (gritando, na verdade) que os EUA são a prova que nosso SUS deve continuar estatal.

O ítem 3 já é algo mais complexo. Suécia e Reino Unido são sempre citados aqui no Brasil como modelos, provavelmente porque são os mais estatizados: todos os hospitais são públicos, todos os médicos são funcionários do governo. Por lá, não são bons modelos. São vistos como burocratizados e ineficientes, com longas filas de espera e todas as coisas esquisitas e sem explicação que são típicas de sistemas estatais. Por outro lado, os países mais bem avaliados na Europa têm a operação do sistema de saúde totalmente (ou quase) privada, com livre concorrência.

Como não gosto de argumentos não-embasados, fui pesquisar sobre avaliações sérias sobre os sistemas de saúde na Europa. Encontrei o Euro Health Consumer Index, produzido pela ECP, uma organização da Suécia (que não recebe dinheiro do governo, ao contrário das ong´s daqui). Dá para fazer um artigo inteiro sobre o assunto (talvez na semana que vem), mas aqui vão alguns fatos só para encerrar a questão. (Os dados são do último relatório, de 2018)

– A Suécia ficou em 8º lugar. Motivo: longas filas de espera, causadas pela burocracia.

– O Reino Unido ficou em 16º, atrás da Estônia e da República Checa. Motivo: longas filas de espera e um sistema administrativo descrito como “caótico”. O NHS, equivalente ao nosso SUS, têm um milhão e meio de funcionários, e a ECP “suspeita” que uma estrutura estatal deste tamanho pode acabar se preocupando mais com seus próprios interesses do que com o interesse dos pacientes.

– O melhor colocado, Suíça, é baseado em planos de saúde privados e obrigatórios. As seguradoras operam com livre concorrência, não tendo qualquer “garantia” de mercado por parte do governo. Existem subsídios para pessoas de baixa renda, mas basicamente todo suíço paga pelo seu serviço de saúde.

– O segundo melhor colocado, Holanda, foi o vencedor nos três relatórios anteriores da ECP. Assim como na Suíça, o sistema é totalmente privado. Cada cidadão escolhe uma seguradora e paga um plano de saúde, com o governo subsidiando os mais pobres. As seguradoras competem entre si, porque as pessoas que estiverem insatisfeitas podem mudar para outra empresa a hora que desejarem. O relatório enfatiza que o governo não tem interferência nenhuma na administração das seguradoras de saúde.

Em resumo, os países da Europa com os melhores sistemas de saúde fazem exatamente o contrário do que os brasileiros querem: entregam a execução dos serviços de saúde a empresas privadas, e o papel do governo é apenas definir as regras básicas e operar alguns subsídios. Deveríamos estar todos pedindo a “privatização do SUS”, mas, como sempre, estamos na contramão do progresso.

5 pensou em “PRIVATIZAÇÃO

  1. Marcelo, brilhantemente constatas,

    o caso traz duas constatações:

    1 – O povo não sabe o que é privatização, mas acha que é algo ruim.

    2 – Os políticos preferem ser acusados de bater na própria mãe do que de ser a favor de privatização.

    Pitaqueio:

    1 – Como partidos de direita não há… Partidos de esquerda e de extrema-esquerda sempre “demonizaram” qualquer tentativa de tirar empresas das mãos do ESTADO; a mídia sempre “desconversou” quando a tema é privatizar; os políticos não querem que se mexa nos tais “cabides de emprego” que nossas estatais geram aos milhares; os EEUU, que são modelo de NÃO ESTATAIS sempre foi um país que as “cabeças pensantes” brasileiras não querem como modelo.

    2 – Políticos raramente são a favor da modernização do PAÍS, mesmo que o discurso seja este.

    É uma pena que o brasileiro tenha ao longo dos anos perdido o hábito de ler, pois adquiriram ojeriza a textos longos (e os de sua lavra sempre o são, pois comportam dados que requerem serem esmiuçados). Caso retornasse tal habito, nossos jovens aprenderiam muito frequentando sua coluna e colocariam na área de comentários perguntas pertinentes sobre os assuntos que tratas.

    Pobre Brasil onde não me lembro de ter lido nenhuma manchete onde alguém escreveu: bandidos entram em livraria e roubam livros.

    Triste Brasil onde o consumo anual de livros é mínimo (menos de dois livros entre os que dizem ter o hábio de ler).

    Paupérrimo Brasil onde a cidadão perde horas vendo reality show, mas (cultural mas), dizem não ter tempo para os textos didáticos e fantásticos, como os de suas colunas.

    É de dar dó o futuro do “gigante” Brasil…

    • Encerras com:
      Deveríamos estar todos pedindo a “privatização do SUS”, mas, como sempre, estamos na contramão do progresso.

      Se o amigo observar é só ver quem estar a favor ou contra algo aqui no Brasil para que possamos saber qual a melhor solução para o problema que se apresentar. Nunca falha.

  2. Matas a charada quando escreves:

    uma estrutura estatal deste tamanho pode acabar se preocupando mais com seus próprios interesses do que com o interesse dos pacientes.

    Este sempre é o problema brasileiro: estrutura estatal gigantesca.

    E não há no mundo país com competência para gerar empresas e negócios sem que tais empresas e negócios estejam nas mãos da inicitativa privada. Político não sabe administrar.

    Sempre que me é possível, emito uma frase que sempre lanço: Privatiza saporra toda, Bolsonaro!!!!

  3. Retirado de seu texto: Em todos estes casos, o atendimento é bom porque existe concorrência: quem não gostar do atendimento, vai para o concorrente.

    Só a massa de manobra manipulada por “certos” políticos não entende isso. É por essas e outras que “certos” partidos detestam escolas onde o aluno pode pensar por si mesmo…

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