MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Você sabe o que é Lenalidomida? Eu desejo que você nunca precise saber: lenalidomida é um medicamento usado para combater um tipo de câncer chamado mieloma múltiplo. Foi aprovado nos EUA em 2005, e é utilizado em mais de 70 países, mas não no Brasil: a ANVISA negou duas vezes o pedido de registro. Não deixa de ser interessante notar que a OMS, que muitos hoje consideram uma fonte de sabedoria divina (pelo menos no que diz respeito ao COVID), não apenas reconhece a eficácia da lenalidomida como a inclui em sua “Lista de remédios essenciais”, considerada referência para políticas públicas de saúde em todo o mundo. Mas por aqui quem têm mieloma múltiplo precisa recorrer a um contrabandista que traga o medicamento do exterior ou tentar conseguir uma liminar na justiça que permita importá-lo legalmente.

A lenalidomida é apenas um exemplo aleatório entre as centenas ou talvez milhares de casos de remédios que são utilizados por todo o mundo, mas são proibidos no Brasil por essa entidade chamada ANVISA. Para citar uma situação mais genérica: se você precisa de um exame de raio-x, tomografia, ressonância magnética ou outro qualquer, você gostaria de usar o equipamento mais moderno e avançado possível, certo? Errado: o prazo médio para a ANVISA aprovar a venda de equipamentos médicos no país é de quatro anos. Em outras palavras, um hospital ou clínica no Brasil só consegue comprar um equipamento quando ele já está quase fora de linha em outros países.

Por que uma aberração como essa existe? Pelo mesmo motivo que existem todas as outras aberrações criadas pelo governo: as pessoas acreditam cegamente que órgãos criados pelos políticos e que empregam pessoas indicadas pelos políticos são perfeitos, honestos, imaculados e existem para nos proteger dos empresários malvados e do capitalismo selvagem. Claro que a realidade é exatamente o contrário: a ANVISA, assim como as demais agências e órgãos reguladores do governo, zela pelo interesse das empresas amigas e do próprio governo, e não dá a mínima para o interesse da população.

A população também não ajuda: qualquer político que defender a redução do poder da ANVISA será xingado e escrachado como “inimigo do povo”. O povo brasileiro adora que existam órgãos do governo proibindo-o de ter acesso às coisas que existem em outros países. Essa adoração não vê problema nenhum em ser contraditória, como aconteceu quando nossos deputados decidiram passar por cima da ANVISA e liberar na marra um medicamento duvidoso chamado fosfoetanolamina, que foi carinhosamente apelidado pelo povo de “fosfo”. Neste caso específico, a maioria da população defendia que o remédio fosse liberado, mesmo sem nenhum estudo científico que mostrasse sua eficácia, mas ninguém lembrou de expandir o argumento para os outros medicamentos que a ANVISA proíbe. Aliás, arrisco dizer que a maioria dos defensores da “fosfo” acha certo que a ANVISA proíba os outros remédios – mas não peça uma explicação racional.

Duas políticas orientam as decisões da ANVISA: a primeira, como já disse, é defender as grandes corporações amigas do governo, bloqueando a concorrência. Ao impedir a venda dos remédios mais modernos, ela obriga a população a usar os remédios mais antigos, menos eficazes, mas que trazem lucros muito maiores para os seus fabricantes. O maior custo de um remédio é a fase de pesquisa. Depois de aprovado e lançado, boa parte do preço de um remédio serve para repor o dinheiro investido em seu desenvolvimento, e depois que este desenvolvimento está amortizado, a margem de lucro cresce muito.

A segunda política que norteia a ANVISA serve como remendo para outra política infeliz do governo: a idéia que remédios devem ser pagos com dinheiro público. Dizer que o governo deve bancar (com nosso dinheiro) qualquer tratamento que alguém necessite é música para os ouvidos das indústrias farmacêuticas. Como o governo não têm a coragem ou a inteligência de explicar que o dinheiro público não é infinito nem nasce em árvores, usa-se o quebra-galho de alegar que o medicamento não está aprovado como desculpa para não pagá-lo. Claro que tudo acaba na justiça, e como não podia deixar de ser, os pobres é quem saem perdendo. Os ricos podem pagar advogados caros, que têm acesso aos tribunais superiores, sempre mais generosos, e conseguem que os impostos de todos banquem seus tratamentos superfaturados.

Para encerrar, volto à lenalidomida com uma informação interessante, vinda do sistema de saúde britânico, que é totalmente estatal e consequentemente adorado por todos os brasileiros fãs de governos grandes: Em 2013, o NICE, órgão do ministério da saúde inglês, vetou o seu uso em casos de síndrome mielodisplásica da medula (MDS), argumentando que (tradução literal) “o fabricante não apresentou evidências suficientes que justifiquem o custo de 3780 libras por mês da lenalidomida para o tratamento de MDS”. Repetindo: o governo inglês não disse que o medicamento não funciona, ou que têm efeitos colaterais. Disse, com todas as letras, que o remédio “não justifica o custo”.

Convém lembrar disso sempre que ouvirmos o governo (ou a ministra Carmem Lúcia) dizendo que “saúde não é mercadoria” e que o SUS protege os pobres dos capitalistas malvados.

4 pensou em “PARA QUE SERVE A ANVISA?

  1. Eis um parágrafo que a pessoa atentamente faz leitura e releitura para ver se entendeu direito. Depois de ler e entender que não há margem para enganos, o sujeito se pergunta se está na hora de comprar uma metralhadora para eliminar filhos da puta ou usar a “metranca” para acabar com a própria existência. Ei-lo: Por que uma aberração como essa existe? Pelo mesmo motivo que existem todas as outras aberrações criadas pelo governo: as pessoas acreditam cegamente que órgãos criados pelos políticos e que empregam pessoas indicadas pelos políticos são perfeitos, honestos, imaculados e existem para nos proteger dos empresários malvados e do capitalismo selvagem. Claro que a realidade é exatamente o contrário: a ANVISA, assim como as demais agências e órgãos reguladores do governo, zela pelo interesse das empresas amigas e do próprio governo, e não dá a mínima para o interesse da população.

    No mais, apenas aplausos para Bertoluci, um cara que é biblioteca pensante (e bem pensante), daquelas que dá imenso prazer a Sancho visitar e revisitar.

    • Grato pelas palavras carinhosas, Sancho. Mas confesso que vendo o andar das coisas me sinto cada vez mais quixotesco (trocadilho intencional).

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