MAGNOVALDO BEZERRA - EXCRESCÊNCIAS

No final do ano de 1967, terminando o quinto ano de Engenharia, fui “trainee” em uma empresa petroquímica belga pertencente ao grupo Solvay, que tinha suas instalações industriais em Ribeirão Pires, nas imediações de São Paulo. A sede da Solvay fica em Bruxelas, capital da Bélgica.

Estava em construção uma nova unidade de produção de polímeros, matéria prima para a produção de PVC, e as atividades seguiam a todo o vapor.

Um dos equipamentos essenciais eram as torres de destilação, estruturas cilíndricas com cerca de 50 metros de altura e 7 metros de diâmetro. No topo de cada torre deveria ser instalada uma complexa estrutura de forma semi-esférica, chamada de “cabeça da coluna”, produzida com um tipo de material conhecido como Liga Monel, uma liga especial à base de níquel, com adição de 30% de cobre e ainda certas porcentagens de titânio e alumínio. À época esse tipo de material não era produzido no Brasil, e as cabeças de monel foram importadas da Bélgica, sede da companhia, evidentemente a um altíssimo custo.

Cada cabeça de monel, com mais de 3 toneladas, deveria ser colocada com precisão no topo das colunas já eretas e aí fixadas com soldas especiais, sendo o manuseio e o posicionamento conduzidos por um gigantesco helicóptero especializado em manejar cargas pesadas. A tarefa, portanto, requeria uma atividade logística complexa e os custos envolvidos eram bastante elevados.

A colocação das cabeças em três colunas foi marcada para uma segunda-feira. Foram contratados o helicóptero, a empresa de transporte pesado para trazer as cabeças até ao lado das colunas, os soldadores especializados e seus respectivos materiais e equipamentos, o pessoal da segurança, os Engenheiros de processo, e assim por diante.

Quando, na quinta-feira que antecedia as operações, se repassaram as instruções de montagem das cabeças uma dúvida muito duvidosa atormentou o grupo de Engenheiros: os desenhos não eram totalmente claros em definir corretamente a posição delas, já que havia outra alternativa possível, com as cabeças também podendo ser montadas a 1800 da prevista originalmente. E agora? O risco de se montarem as peças de maneira incorreta era de 50%. Os custos em dinheiro e tempo ocasionados por um eventual êrro desse tamanho eram incalculáveis e totalmente inaceitáveis.

Bem, a solução era trazer urgentemente os peritos de Bruxelas para esclarecerem a questão.

Houve então uma correria desenfreada para buscar os entendidos no assunto e enviá-los ao Brasil ainda no final da semana. Para piorar a situação, naquele momento, devido à diferença de fusos horários, já era noite na Bélgica. As ligações internacionais eram complicadas e problemáticas (não havia sequer DDD, quanto mais DDI), e a única maneira encontrada foi o uso do telex (vosmecê se lembra dele?).

Depois de acordarem meio mundo em Bruxelas, conseguiram entrar em contato com os dois Engenheiros que já tinham experiência nesse tipo de equipamento. Chamá-los-emos (êta língua a nossa!) “Monsieur” Jean e “Monsieur” Paul, à falta dos nomes verdadeiros. Cada um estava em uma cidade diferente naqueles dias. Arrumaram um visto de emergência com o embaixador do Brasil (quebrar galhos é uma especialidade tupiniquim) e despacharam os dois em voos distintos para Frankfurt, na Alemanha, de onde tomaram no domingo, agora juntos, um vôo da Lufthansa para o Brasil.

Chegaram ao aeroporto de Viracopos em Campinas na manhã da segunda-feira. Ainda meio dormindo, foram enfiados em um carro da companhia para Ribeirão Pires, a tempo de participar das operações. (Imagine vossuncê, por um momento, o bodum desses dois, que já não tomam banho nem em dias normais, quanto mais em dias de meses frios na Bélgica!).

E aí aconteceu a rápida e involuntária desobstrução das tripas.

“Monsieur” Jean, o mais experiente, tomou pé da situação e sossegou a patota:

– Isso não é difícil de resolver. O desenho de montagem que vocês têm é genérico, e por isso a dúvida. Há um desenho específico mostrando a posição exata para a versão particular destas colunas e que não está aqui, desenho este que certamente está com Monsieur Paul.

“Monsieur” Paul, por sua vez, replicou:

– Sim, eu sei qual é o desenho, mas não o tenho comigo porque ele é de sua área e, portanto, você é que deve estar com ele. Os desenhos que tenho são relativos à tubulação, válvulas de controle e instrumentos da cabeça de monel, que são pertinentes ao meu trabalho.

A patota então se desassossegou quando “Monsieur” Jean, vermelho como uma acerola madura, replicou:

– Não, comigo não está. Deveria estar é com você!

E ficaram trocando gentilezas verbais, com as boquinhas apropriadamente bicudas como devem ficar quando se pronuncia a simpática e harmoniosa língua francesa. A galera quieta, só prestando atenção.

A operação foi suspensa, mas os pagamentos do helicóptero, da transportadora e do pessoal técnico tiveram que ser feitos mesmo sem o trabalho realizado.

Três dias mais tiveram que ser perdidos até que chegassem os desenhos da Bélgica na quinta-feira, quando tudo recomeçou. Os dois Engenheiros belgas aproveitaram o incidente para se recuperarem da longa viagem e das atribulações. E já que estavam por aqui, ficaram de bem novamente um com o outro e esticaram a estadia brasileira até o final de semana para conhecerem pontos turísticos da paulicéia, incluindo aí umas boas churrascarias e alguns alegres conventos de noviças espertas e sacudidas, para onde foram aprender a rezar piedosas orações em nossa vibrante língua.

Um comentário em “OS ENGENHEIROS BELGAS

  1. Monsieur Jean e Monsieur Paul fizeram concurso público? Um amigo solicitou transferência de uma universidade federal para outra rural. Departamento de matemática. Naquela época assinavam a carteira do cabra, hoje pedem apenas para atestar que você não tem vínculo empregatício. Lá se foi meu amigo pegar a documentação para a devida remoção, quando….. teve início o seguinte diálogo começando pela atendente:
    – Tem um erro na sua documentação
    – Qual?
    – Aqui. Tá vendo? O sr. foi contratado no dia primeiro de janeiro primeiro de janeiro é feriado universal.
    – E agora?
    – Eu vou lhe pedir para o sr. trazer essa relação de documentos. Todas as cópias devem ser autenticadas em cartório.

    Lá se vai Caetano com a danada da relação. Levou um mês e meio para juntar tudo porque alguns eram emitidos por órgãos estaduais e municipais. Depois desse tempo, voltou lá.

    – Moça, tudo bem? Lembra de mim?
    – Lembro sim. O sr trouxe a documentação?
    – Trouxe. Você pode conferir para ver se está tudo certo?

    Conferiu. Depois da conferência pediu a carteira de Caetano e escreveu: Onde se lê 01 de janeiro leia-se 02 de janeiro.

    Eu perguntei a Caetano como seria se o dia 02 de janeiro tivesse sido um sábado ou domingo. Ele disse que nem imaginava e foi embora para universidade rural

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