DALINHA CATUNDA - EU ACHO É POUCO!

1
Eu sou mulher sertaneja!
Feminina e singular
O agreste me batizou
Mas fiz do mundo meu lar
Açoites patriarcais
Não me podaram jamais
Lutei pra me libertar.

2
Nunca fui igual a tantas
Aceitando imposição
Tinha o olhar aguçado
Tinha rumo e direção
Do meu jeito nordestino
Sem drama sem desatino
Segui cheia de razão.

3
Não fui mulher de ficar
Debruçada na janela
Eu queria muito mais
Vi que a vida dava trela
Na janela não fiquei
A porta eu escancarei
E joguei fora a tramela.

4
Uma estrada desenhei
Do jeitinho que eu queria
Nela pisei com firmeza
Distribuindo alegria
As veredas da tristeza
Enfrentei sem ter moleza
Recorrendo a rebeldia

5
Receio de ser feliz
Não provei no meu caminho
Fui ave de ribaçã
Trocando às vezes de ninho
longe do velho rincão
Eu desbravei novo chão
Sem sumir no torvelinho.

6
As pragas que me jogaram
Voltaram pra quem jogou
Eram tantas profecias
Nenhuma se confirmou
E hoje vou lhes dizer
Não parti pra me perder
Quem me viu depois notou.

7
Nunca fui desatinada
Era desobediente
A cruel hipocrisia
Era discurso presente
Mas fugi dessa verdade
Da podre sociedade
Jamais quis herdar corrente.

8
Eu nunca tive medo
De casar ou não casar
Sempre tive minha luz
Que acendi pra me guiar
Munida de inteligência
Não quis viver de aparência
Tive peito pra encarar.

9
A luxúria dos senhores
Fez filho no cabaré
O santo padre endeusado
Profanou a sua fé
Mas tudo era encoberto
O pecador era o certo
Na vida como ela é.

10
Eu vi a mulher do próximo
Nos braços do seu amante
Vi o próximo noutros braços
Situação semelhante
Mas tudo era abafado
O tal do patriarcado
Tinha o grito retumbante!

11
Vi esposas recebendo
No lar putas do marido
O homem podia tudo
Sempre era obedecido
E a mulher subjugada
Não podia falar nada
Seu orgulho era engolido.

12
Eu vi telhado de vidro
Querendo pedra atirar
Presenciei falsas virgens
Casando em frente ao altar
Noivo ganhando boiada
Pra assumir a desonrada
E o nome dela salvar.

13
O homem tinha direitos
Mas não os tinha mulher
Se deixasse de ser casta
Viraria uma qualquer
De sua casa era expulsa
Sobrava-lhe só repulsa
E compaixão nem sequer.

14
Eu escrevi outra história
E fiz o sertão ferver
Fiz um filho sem casar
Começou meu padecer
E para meu desencanto
Não era do espírito santo
Foi difícil resolver.

15
A cidade jogou pedra
No meu lar não me cabia
Todos lavaram as mãos
Enquanto eu me despedia
Aceitei a minha cruz
Apeguei-me com Jesus
E com a Virgem Maria.

16
Não vou dizer que foi fácil
Porém não me entreguei.
O sangue de nordestina
Comigo eu carreguei
Trabalhei como ninguém
Pra consegui ir além
Eu nunca me desgracei.

17
Não tive pena de mim
Não chorei a pouca sorte
Resolvi virar o jogo
Meu orgulho me fez forte
Empinei bem o nariz
Vivo do jeito que quis
Eu mesma fui meu suporte.

18
Tangida ganhei o mundo
Sem esquecer minha aldeia
Lá voltei mais de mil vezes
Sem medo de cara feia
Não saí do meu lugar
Sem aprender a nadar
Para não morrer na areia.

19
E cada vez que eu voltava
Pra minha satisfação
Tinha nova mãe solteira
Em meu querido rincão
Eu vi que servi de exemplo
Só me falta agora um templo
Pra minha coroação.

20
Sou mãe de dois meninos
Que ao meu lado vi crescer
Dei casa, comida e estudo.
Criar bem foi meu dever
Os dois já estão formados
Todos dois bem colocados
Esse é meu maior prazer.

21
Sempre volto a Ipueiras
Onde vou veranear
Hoje me chamam Senhora
Chego quase a gargalhar
Mesmo tendo eira e beira
Continuo mãe solteira
Apesar de ter meu par.

22
Escorregando e caindo
Aprendi a levantar
Eu nunca deixei barato
Quando ousaram me afrontar
Sempre tomei atitude
Se muitas vezes fui rude
Foi pra ninguém me pisar.

23
Sou filha da intolerância
Conheci o preconceito
Guerreira que não se dobra
E pra flecha abri meu peito
De cada dardo escapei
Criei minha própria lei
Pois nutri esse direito

24
Agora sou poetisa
Não acho o mundo perverso
Eu dei a volta por cima
Essa história conto em verso
E digo com alegria
Eu sou mais uma Maria
Coragem nesse universo.

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