MAGNOVALDO BEZERRA - EXCRESCÊNCIAS

Em 1963 o Professor T. Cruz dava aulas de Geometria Descritiva para o primeiro ano dos cursos de Engenharia na Escola Politécnica da USP. Professor extremamente competente na matéria, era exigente com seus alunos e metódico na sua maneira de ensinar. Fazia questão absoluta de deixar claro que professor era professor e aluno era aluno. Seu tradicionalismo permeava inclusive seu linguajar: escrevia “theorema” em vez de “teorema”, “descriptiva” em vez de “descritiva”, e assim por diante, ortografia típica de quem havia nascido ainda nos primeiros anos do século XX, seguindo os ensinamentos do eminente Professor Antenor Nascentes.

Suas aulas começavam rigorosamente com o toque das 8:00 horas, e afirmava que futuros engenheiros tinham a obrigação moral de saber que a grandeza numérica 8:00 era diferente de 8:01, ou “8 mais qualquer outro número acima de zero”, e que deveriam, portanto, estar na sala de aula antes desse horário a tempo de acompanhar a ensinação da matéria desde o começo. Deixava também claro que se a média final das notas do aluno fosse 4,99 ele não seria aprovado, porque a nota mínima era 5, e 4,99 era menor do que 5, como é do conhecimento de qualquer cabra que não tenha sido alfabetizado por Paulo Freire. Com ele não havia essa conversa mole de arredondar a média.

O comportamento formal do professor era absolutamente rigoroso. Todas as suas aulas começavam invariavelmente com o seguinte prolegômeno:

– Bom dia, senhores alunos, vamos começar a aula de hoje. Mantenham-se sentados, em silêncio, e prestem toda a atenção, pois não terão uma segunda oportunidade de ouvir-me sobre este tema.

Um dia, que já longe se vai, resolvemos testar a tenacidade do Prof. Cruz sobre o rigoroso horário a que se impunha. Toda a turma ficou do lado de fora da sala de aula, olhando pelas janelinhas de vidro das portas para ver o que se passaria após o toque das 8:00 horas. A sineta tocou, o Prof. Cruz entrou, viu a sala totalmente vazia, mas não se intimidou com isso e já sacou da algibeira vocal sua ladainha:

– Bom dia, senhores alunos, vamos começar a aula de hoje. Mantenham-se sentados, em silêncio, e prestem toda a atenção, pois não terão uma segunda oportunidade de ouvir-me sobre este tema.

E já foi desenhando suas linhas retas e curvas no quadro negro. Todos entraram correndo na sala.

A outra característica do velho e respeitado professor era, como foi dito acima, seu absoluto distanciamento físico e social dos estudantes. “Imagina se um aluno encosta em mim”, deveria horrorizar-se o ilustre mestre quando se imaginava acometido de tal infortúnio.

Somente haviam duas linhas de ônibus servindo a Cidade Universitária: uma da CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos) e outra da Viação Vani, ambas com ônibus velhos e esculhambosos, além de uma deplorável falta de regularidade no horário. A Cidade Universitária era longe de tudo naquela época. Quando as aulas terminavam havia um acúmulo de jovens (os pobres, que não tinham carro) pedindo carona para irem embora. E aí então algumas vezes pintava o Prof. Cruz com seu possante Aero-Willys vazio, uma tentação irresistível para a estudantada pidonchenta de carona.

O professor parava seu carro ao lado da moçada, pacientemente colocava a alavanca do câmbio no ponto morto, acionava o freio de estacionamento, movia-se para o lado direito do banco, rodava a maçaneta para abrir a janela do carro, aproximava-se dela e declarava pausada e pacientemente à ignara plebe:

– Não… dou… carona… para… alunos!

Rodava a maçaneta de volta, fechava o vidro da janela, voltava ao seu posto de motorista, acomodava-se no banco, soltava o freio de estacionamento, engatava a primeira marcha e saía vagarosamente, certamente saboreando intimamente a confirmação de sua poderosa posição hierárquica na vida acadêmica.

Ah, o Professor Cruz, uma figura inesquecível daqueles arretados tempos!

7 pensou em “O PROFESSOR CRUZ

    • Meu caro Osnaldo: eu digo que os carros de antigamente tinham personalidade. Tinham seu estilo, sua marca, seu charme. Os de hoje, modelados pelas leis da aerodinâmica, sempre visando economia, são todos parecidos. As poucas exceções são os carros muito caros – Mercedes Benz, BMW, Rolls Royce e alguns esportivos como Ferrari, Corvette, etc. Todos os outros têm a mesma cara.
      Um grande abraço,

  1. Figuraça esse T Cruz. Eu fico morrendo de inveja dessa vivência de Magnovaldo com o curso de Engenharia. Impressionante: o cara certo no lugar certo para testemunhar tantos feitos. Meu professor de Desenho Geométrico era João Duarte, irmão de Mário Duarte que era professor de descritiva. João era extremamente tímido, não olhava para os alunos, olhava pra o chão. Fim de aula os alunos se aproximavam dele e ele se faltava, tentando manter uma distância mínima de 1m. Quando era uma aluna, a distância ia pra 1,5m e cada passo na direção dele, era um passo que ele dava em direção a porta. De costas, pra porta. Mario virou pro reitor e aí eu tive que pagar descritiva com João, mas eu assistia aula com outro professor. As curvas de nível de João era quase no chão.

    • Caro Maurício,
      obrigado por suas palavras. A minha estória sobre o Prof. Cruz não era para ser publicada agora. Ela estava na fila para o mês que vem, mas seu comentário no Cabaré do Berto sobre os geômetras me fez antecipar minha “descomposição” da semana.
      A geometria é uma das minhas paixões, e foi através dela que comecei a entender música. O Prof. Cruz dizia que Deus, quando estava trabalhando, fazia Geometria, e quando descansava fazia música. Não tive nenhuma formação musical, mas a minha admiração pela música clássica passou para o meu filho Alexandre: além de médico, completou toda a educação em Conservatório e hoje toca piano, por prazer, na Orquestra Filarmônica de Santo Amaro (a OFISA) em São Paulo. Está publicando um livro sobre as doenças e causas da morte dos compositores clássicos. É a realização do sonho paterno. Já foi entrevistado em uma série sobre música no “Brasil Paralelo”.
      Um grande abraço e um ótimo final de semana.

      • Que coisa extraordinária!!!! Fico feliz por tudo isso. Mas, quero lhe dizer o seguinte: dentro em breve estarei explicando a Função Gama para meus alunos. Gostaria que você desse essa aula. O melhor dia seria na sexta que tenho duas aulas síncronas. De 15 às 17h. Se não puderes, problema zero.

        • Prezado Maurício:
          Fico honrado com seu convite para essa aula sobre Função Gama.
          Tenho a considerar que estive envolvido com essa belezura há 56 anos, e desde então não mais lidei com isso.
          Vou dar uma refrescada, mas se não me sentir confortável tomaria a liberdade de recusar seu convite, OK?
          Dê-me alguns dias para ter uma posição final.
          Grato mais uma vez.
          Abraços

  2. Mas, é claro. Se não se sentir a vontade eu lhe convido pra assistir. Se não puder, não há problema algum. É uma questão de sintonia com você. Parece que fui seu colega de classe.

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