MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

Há algumas semanas, houve um dia em que enriqueci significativamente o meu vocabulário. Não em um exemplar das Seleções Reader´s Digest, apesar do espaço ali dedicado a essa finalidade, mas em fonte tanto quanto ou mais profícua: a coluna “Penso, logo insisto”, do jurista e escritor José Paulo Cavalcanti, no Jornal da Besta Fubana.

Em sua crônica postada em 23 de abril deste ano, o grande José Paulo expôs o significado de palavras raras da língua portuguesa. Palavras só acessíveis aos que têm verdadeira intimidade com a última flor do Lácio, inculta e bela, como diria Bilac. Ou Fernando Sabino, pela boca de Geraldo Viramundo, em “O Grande Mentecapto”.

Vocábulos como biltre, burlão, engrimanço, pícaro e pirrónico. Uma riqueza!

Não sei se por serem palavras que muitos plebeus gostariam de dizer a certos nobres; não sei se por causa do título da crônica de José Paulo ser “Um país de estultos”; o fato é que, após sua leitura, lúdicos pensamentos levaram-me a um reino imaginário, em plena Europa Medieval.

Uma monarquia onde o rei vivia engalfinhando-se em querelas com os membros da sua corte de nobres, sempre ansiosos por uma oportunidade para se apropriarem do trono e da coroa.

Como se sabe, com a queda do Império Romano do Ocidente, a Europa transformou-se em verdadeira colcha de retalhos, com seus territórios ocupados por hunos, godos, alamanos, burgúndios e tantos outros.

Na minha cabeça de contador de histórias, se entre esses povos, chamados genericamente de bárbaros, existiram os vândalos, teriam convivido também com eles os biltres, os burlões, os engrimanços, os pícaros e os pirrônicos.

A essas etnias fictícias, cujos nomes engendrei a partir da crônica de José Paulo, não resisto à tentação de acrescentar os néscios, os torpes, os incautos, os sáfaros e até os probos. Embora estes últimos certamente fossem minoria, frequentemente desalojados de sua aldeias e perseguidos por seus inimigos.

Nessa viagem no tempo, percorro cerca de mil anos, até chegar à época da formação das monarquias nacionais absolutistas. E ao tempo do flagelo da Peste Negra.

Vejo, então, vários desses povos reunidos em uma mesma monarquia: néscios, biltres, sáfaros, burlões, probos e incautos, agrupados sob um mesmo brasão.

A unificação é um tanto forçada, e se dá mais por conveniência dos nobres que para benefício de camponeses, artesãos e mesmo de burgueses.

Daí por que, como fora antes anunciado, esses nobres vivem metidos em escaramuças. Entre si e com o monarca da vez. Digo “da vez” porque nesse reino, o rei, que pouco manda, frequentemente é deposto por outro nobre mais poderoso, mas que também acaba caindo.

Um reino onde a paz é sempre frágil e de curta duração. Alguns dos poucos momentos de menor beligerância ocorrem durante grandes festas populares que ali ocorrem, as quais recebem apoio do próprio rei e de todos os nobres.

Essas festas são conhecidas como “as badernas”, e acontecem todos os anos. Nelas, o povo se diverte livremente nas ruas dos burgos, bebendo, cantando e dançando, celebrando não se sabe exatamente o quê.

Em nossa viagem imaginária ao passado, encontramos esse reino em mais um período conturbado, enfrentando toda sorte de problemas econômicos, sociais e políticos, apesar de ter acabado de acontecer, com muito sucesso, mais uma edição das badernas anuais.

O país está sob o comando do Rei Lorpa, que é da linhagem dos néscios, mas, para conquistar o trono, precisou do apoio dos incautos e dos probos. Estes já não estão felizes com sua posição no governo, mas acreditam que ficariam em situação ainda pior, se a cetro voltasse para as mãos dos inimigos do Rei Lorpa.

Idolatrado pelos néscios, Lorpa é odiado pelos biltres, os sáfaros e os burlões. Estes também brigam entre si, mas têm agido como aliados, e tudo farão para arrancar o rei do trono. Ou o trono do rei, ainda que, para isso, seja necessário pôr em risco a unidade do próprio reino.

Tornando a situação ainda mais dramática, o reino, assim como todo o Velho Mundo, está sendo assolado pela Peste Negra.

Trazida da China pelas caravanas que faziam a Rota da Seda, ou pelos mercadores que cruzavam o Mar Mediterrâneo em suas naus, a peste já ceifou a vida de cerca de um terço da população do continente europeu.

Nesse reino, a situação não é diferente. Não se conhece prevenção ou tratamento para a doença. Tenta-se cuidar dos pacientes com sangrias, infusões, chás de ervas e novenas. Mas nada funciona.

Centenas de pessoas morrem todos os dias. Chega a faltar coveiros, porque os que não morreram têm medo de enterrar os cadáveres.

O povo sofre com a peste, a fome e o desemprego.

Mas o Rei Lorpa e os nobres de sua corte estão ocupados demais, em sua luta pelo trono, para dedicar alguma atenção a quem morreu ou está prestes a morrer.

Tempos difíceis no imaginário Reino da Bazófia.

13 pensou em “NO REINO DA BAZÓFIA

  1. Marcos, sua metáfora está perfeita.
    Mas, deixe-me entrar em sua estória apenas fazendo um adendo, passado pela oralidade e do qual eu tive conhecimento através de Sir Waldyr, bandoleiro daquelas bandas europeias atuais.
    Pois bem, o Rei Lorpa descende diretamente dos Lhanos, pelo lado paterno.
    Os Lhanos dificilmente eram compreendidos por seus contemporâneos, já que esses eram quase todos descendentes dos Ardis.
    Já os Ardis tinham o costume de falar olhando para o chão e de cruzarem o “maior de todos” sobre o indicador mesmo quando juravam fidelidade à luta pelo bem-estar do povo e paz do reino.
    Aliás, os Ardis nunca se deram com os Lhanos por uma questão de religiosidade: os Ardis sacrificavam em louvor às divindades Dolo, Apáte e Pseudeia.
    É isso e parabéns pela coluna. Fantástica!

  2. Também segundo conta um ajudante de escritor, os piores eram os Liber e os Aequus que, a pretexto de serem isentos e imparciais, tomavam partido quando lhes convinha ou quando viam seus interesses e privilégios em risco. Aí, somavam-se a um lado ou a outro conforme conveniência do momento Sempre, claro, alegando imparcialidade e isenção. Nos seus burgos, problemas de cinquenta anos nunca tinham solução e mais e mais acumulavam-se. Usando do privilégio concedido de fazer justiça dentro dos seus burgos, adentravam nos burgos alheios. Quando confrontados com a realidade saíam-se com as desculpas mais estapafúrdias. Como a verdade já tinha morrido fazia tempo, cada contava a sua versão e danem-se todos que não gozem de privilégios. O importante era dizer que culpa era, sempre e sempre, dos outros.

    • Viva Padre José Paulo!
      Sem a sua crônica, caro amigo, a visita ao Reino da Bazófia não teria acontecido.
      Gratidão!

  3. Caro Marcos,

    Esta sua crônica é ANTOLÓGICA!

    Deveria constar dos livros textos a serem lidos por nossa juventude para responder no ENEM.

    Grande abraço.

    • Essa tal de juventude, a tal de internética – já nasce velha, pois no seu universo lingüístico, a cada momento, surge uma novidade, aposentando implacavelmente o que, há bem pouco tempo, era novo.

      Assim, a sua totalidade vocabular, cada vez mais, resume-se em algumas palavras em inglês e uma sucessão de abreviaturas (de algo, em português), que aparecem e desaparecem, ao sabor dos ventos de uma suposta informação, que só aos demais iniciados é compreensível.

      Esse contínuo e irrefreável empobrecimento vocabular – aliado, também, aos, conseqüentemente, podres frutos da imposição pedagógica(?) freireana – somente tem um futuro indiscutível: o analfabetismo funcional, em todas as áreas do que resta de conhecimento.

      Isso está chegando a tal ponto sem retorno, que, cada vez mais, uma minoria – talvez!!! – seja capaz de “acolherar as letras”, mas, dificilmente, entenderá aquilo que foi escrito.

      E, nesta marcha involucionária retroalimentada, também, rapidamente, se aproxima o estágio decadente e final da comunicação, isto é, a dita cuja se resumir a primitivos grunhidos, rosnados e resmungos básicos.

      Quem viver, verá!!!

      Se alguém acredita que estou exagerando – no radical empobrecimento vocabular, e lingüístico em geral, – tente se comunicar com um mais novo, e vai constatar que ele/ela, dificilmente, entenderá o que foi escrito e/ou lhe foi dito.

      Ou – após 12anos de estudo(?) da língua portuguesa – as “preciosidades” que há na maioria das provas de redação, daí o absurdo de “zeros”, isto é, a maioria dos alunos(?) não sabem nem sobre o que escrever e, muito menos, como escrevê-la.

      Ou – aquilo que (graça a maioria absoluta de supostos jornalistas) se ouve ou se escreve, ad nauseam, na mídia.

      Confesso que a enxurrada contínua de besteiróis a que fui (e sou) submetido (aos 76 anos e não sei lá quantas Reformas), faz com que, muitas vezes, duvide do que escrevi e de como se escreve.

      A começar por essa última e absurda Reforma Ortográfica lulística – que os “lambe-sacos” (de sempre!!!) adotaram, sem haver aprovação oficial – e que em nenhum outro país lusofônico foi aceita, a começar pela pátria-mãe, Portugal.

      Como escreveu o poeta Mário Quintana:

      “O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro.”

      Ou, segundo Wittgenstein:

      “O universo vocabular delimita o tamanho do cérebro!”

      Ou, como tu, Adônis – com toda a razão, há algum tempo, escreveste:

      “Os alunos entram burros na universidade e saem promovidos a jumentos diplomados.
      […] Os sintomas mais graves da longa e constante derrocada são os seguintes:
      1. Dramática redução do universo vocabular.
      Só Deus sabe a angústia que me dá ao franquear a palavra a um destes meus alunos e vê-lo gaguejar e tartamudear num tatibitati digno de uma criança pouco instruida de 5 ou 6 anos.
      É uma verdadeira tortura!
      Para nós dois!
      […] Por estas ocasiões, dá para ter uma ideia bem clara da pandemia de microcefalia que afeta nossa juventude universitária.
      […] 3. Baixíssima capacidade de análise e de crítica.
      O certo e o errado não existem.
      Tudo se limita a uma questão de opinião e, segundo eles, cada um tem direito de ter a sua, por mais imbecil que possa ser, devendo ser por todos respeitada.
      Esta idiotice seria o cerne daquilo que eles conhecem como “Democracia”.
      Nas aulas de metodologia científica, ensinam-lhes a paginação normatizada dos trabalhos (3-3-2-2), o tipo e o tamanho das letras, como citar fulano apud sicrano, etc.
      Quanto à capacidade de raciocinar, o máximo a que chegam é o ensino da dialética marxista-hegeliana, onde o fundamental é ganhar a discussão através do uso dos mais diversos sofismas e falácias (Erística), e não a busca da verdade.
      Nada se fala a respeito da dialética socrática, onde a real arena das discussões e da busca do conhecimento é interna e pessoal.
      4. Total e absoluta confusão entre os conceitos relativos a:
      a) Conjectura,
      b) Opinião,
      c) Argumento,
      d) Prova,
      e) Lei científica,
      f) Crença e
      g) Ideologia.
      A consequência é uma barafunda mental onde se misturam anarquicamente farrapos de ideias, muitas delas acreditadas simplesmente porque o crente deseja que sejam verdadeiras, método este que é a base de todas as ideologias que tanta miséria trouxeram ao mundo ao longo dos séculos.
      Sabe o que é o mais irônico disso tudo?
      É essa multidão de anencéfalos, ao ir atrás da ilusão de criar um paraíso na Terra, terminaram criando infernos piores que a mais aterradora descrição bíblica .
      Vejam o exemplo do que ocorreu com Pol Pot, Hitler, Stalin, Mao, Fidel Castro, Hugo Chaves et caterva.”

      E la nave và. Avanti!!!

  4. Acho que sou descendente do clã dos lerdos ou dos resignados, tribo que paga as mordomias da corte e segue em frente sem nada cobrar..

  5. Pingback: AS MACAQUICES DE PODER NO REINO DA BAZÓFIA | JORNAL DA BESTA FUBANA

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