Estava zapeando pela TV quando me deparei com o filme “Molly’s Game” (em português, “A Grande Jogada”), que conta a história real de Molly Bloom, uma ex-atleta olímpica que entrou para o mundo dos jogadores milionários de pôquer. Explicando melhor, ela organizava as noites de jogo para esses milionários: locais luxuosos, bebidas caras, as mordomias de costume. Depois de dez anos e de ganhar e perder muitos milhões de dólares, ela foi presa sob a acusação de ter ligações com mafiosos russos (porque alguns deles supostamente participaram dos seus jogos) e em seguida da tradicional ladainha que o governo alega quando quer prender alguém: atividade ilícita, evasão de impostos, lavagem de dinheiro, etc, etc.
Alguém pode dizer “Calma aí! O que há de ilícito em organizar uma sala onde pessoas adultas participam, de livre e espontânea vontade, do mesmo jogo que é praticado 24 horas por dia em centenas de cassinos?” A resposta, claro, é que os cassinos pagam o arrego para o governo e aceitam que ele mande e desmande nos seus negócios (quem quiser entender, recomendo outro filme: Cassino, com Sharon Stone e Robert de Niro). E governos odeiam quando alguém faz concorrência para os seus protegidos. Assim, quando descobriu o que Molly fazia, enviou 17 agentes do FBI armados com metralhadoras para prendê-la em sua casa. Quando a mãe de Molly penhorou a casa para pagar a fiança, Molly foi solta e descobriu que precisava arranjar um bom advogado para enfrentar a equipe de promotores que havia decidido transformá-la em um escândalo público. Só que bons advogados custam caro, e Molly também descobriu que todo o seu dinheiro havia sido confiscado pelo governo.
Bem, não vou aqui contar todo o filme (deixo isso para Cícero Tavares, o especialista em cinema aqui do JBF). Minha reflexão é sobre os métodos adotados pelo governo para quem não se comporta como ele gosta. Afinal, não aprendemos que todos são inocentes até prova em contrário? Não está na constituição, em linguagem mais rebuscada, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença”? Não, não. Isso pode valer quando a vítima é uma pessoa comum, mas quando o governo se considera a vítima, aí não há “suspeito” ou “suposto crime”; aí o método é atirar primeiro e perguntar depois. Duvida? Então vamos deixar a ficção de lado e mostrar um caso real:
Alguns anos atrás, em uma região rural próxima à grande São Paulo, a Polícia Rodoviária parou um motorista que trafegava na rodovia, e encontrou no veículo uma maleta contendo quinhentos mil reais. O motorista foi levado à delegacia para depoimento, e teve o dinheiro, o carro e o telefone celular apreendidos. A polícia informou que o dinheiro ficará retido “até a comprovação de sua origem lícita” e a Polícia Federal investigará “o crime de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores”. (pense por um momento como seria ruim perder o celular. Agora pense como seria ser largado em outra cidade sem o seu celular, sem o seu carro e sem o seu dinheiro)
Carregar dinheiro é crime? Não, não é. Aliás, o dinheiro brasileiro é de “uso obrigatório”, o que é crime é recusar-se a usá-lo. E quanto a “comprovar a origem lícita”, isso significa o quê? Quem anda com dinheiro na carteira deve ter um papel grampeado em cada nota explicando de onde o dinheiro veio? E como andar de carro com uma maleta seria “ocultação de bens”, se a maleta nem ao menos estava escondida?
Todas essas perguntas, obviamente, são inúteis. O que acontece é que a tal “presunção de inocência” vale para quem é suspeito de um crime contra outra pessoa, como um assassinato, roubo ou estupro. Nestes casos, o culpado se safa com facilidade, porque para isso a justiça é lenta, burocrática, detalhista e incrivelmente desconectada da realidade. Mas quando o governo suspeita que foi prejudicado, a situação é completamente diferente: todos são culpados até que consigam provar que são inocentes. Até mesmo para algo trivial como vender um imóvel, o cidadão brasileiro é considerado culpado. Tem que correr atrás de cartórios e repartições públicas, juntando certidões, para provar que não deve nada, e só então seguir com a venda.
Para mostrar melhor a desproporcionalidade, outro caso: “A Polícia Federal prendeu nesta segunda-feira, 12, um homem que portava pepitas de ouro de procedência ilegal com aproximadamente 19 gramas, no porto fluvial de Santo Antônio do Iça, no Amazonas.” Segundo a notícia, o homem foi levado à delegacia para “prestar esclarecimentos” (outro eufemismo que já faz parte do inconsciente coletivo).
Certamente é espantoso ser ilegal portar 19 gramas de ouro em pepitas, quando qualquer colar ou pulseira contém mais que isso. De fato, nos tempos do Brasil Colônia, quem achava uma pepita de ouro era dono dela, devendo pagar 20% de imposto ao governo. Hoje, dois séculos depois, quem acha uma pepita de ouro comete crime se ficar com ela. Mais espantoso, porém, é constatar que a pena por homicídio culposo – ou seja, causar a morte de uma pessoa – é de um a três anos de prisão, enquanto a pena por guardar no bolso uma pepita de ouro – sem matar ninguém – é de até cinco anos de prisão, mais multa.
Essa idéia de que causar prejuízo ou incômodo ao governo é o pior dos crimes já está bem assimilada pela sociedade. Assim que terminei de assistir o filme da Molly, pulei para outro canal e vi um “especialista” qualquer em um noticiário, exatamente no momento em que ele dizia que era necessário “apertar o cerco” contra as empresas (todas as empresas), porque “muitos” dos criminosos envolvidos em tráfico de drogas, tráfico de armas, pedofilia e prostituição lavam seu dinheiro usando empresas como fachada. Tendo sido empresário por vinte anos, de repente me senti acusado de ser um criminoso. Aí lembrei-me que prostituição não é crime no Brasil, e que tráfico de drogas e de armas só são crime quando ninguém do governo está levando sua parte. Quando o pagamento está em dia, tudo certo. E dessa reflexão surgiu a idéia deste pitaco.
Então ficamos assim: quem mata, rouba ou estupra é inocente “até o trânsito em julgado”, o que costuma levar vários anos. Mas ao mesmo tempo todo mundo acha normal e razoável que alguém tenha as contas bancárias bloqueadas e os bens apreendidos antes mesmo de saber que foi considerado suspeito. Afinal, isso só acontece com os outros, não é mesmo?
P.S. Em poucos anos, o dinheiro digital será implantado e o dinheiro de papel deixará de existir. Aí, será literalmente impossível para os suspeitos tomar um táxi, pagar um advogado, fazer compras no supermercado, comer em um restaurante ou comprar um chicabo
Caro Marcelo, vou contar um caso pior do que o do motorista que trafegava com 500 mil reais em uma rodovia de SP, como qualquer outra pessoa faz.
Tem um cara que trabalhou por mais de 30 anos como funcionário público, sempre ganhando o teto do funcionalismo. Ao final de seu trabalho, foi aos EUA, pegou cerca de 150 mil USD que juntou durante todo este período fruto de seu salário, transferiu entre contas do BB daqui para uma agência do mesmo banco de lá e viajou.
Ao voltar, 3 meses depois, teve seu dinheiro confiscado porque o STF daqui alegou que ele, estando nos EUA e fora da vida pública, queria fazer um golpe de estado e usaria os $150 k para viver folgadamente nos EUA caso o golpe desse errado.
Este caso não é mais horripilante que o do Motorista que gosta de passear com uma maleta de 500 mil reais em seu carro como todo brasileiro faz?
João, já disse e vou dizer de novo: para mim, achar que existem bonzinhos na política (especialmente na política brasileira) é como achar que um tolete de merda tem uma parte que é limpinha e cheirosa.
Das muitas coisas que me desgostam no Brasil, talvez a pior de todas seja esse amor dos brasileiros por ser capacho de político e por acreditar em caudilhos salvadores da pátria.
Portanto, sua pergunta vai ficar sem resposta.
Eu não acredito em salvadores da pátria, mas em hipocrisia sim.
Marcelo Bertoluci,
Sua menção ao meu nome como exemplo de “especialista em filmes de tribunais, ou investigativos”, sem censura, coisa que sói acontece nos Estados Unidos onde ninguém mete o bedelho, é de uma honra especialíssima para mim vinda do nobre colunista.
Ainda nutro uma esperança imensa numa grinalda nesse brasilzão adormecido.
Todo brasileiro de bem precisa ser reconhecido, admirado, e aplaudido pelos feitos, honestidades. Breve veremos essa esperança ser materializada.
Boa esperança.