Editorial Gazeta do Povo

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, afirmou que não deve pautar tão cedo a ADPF que pede a legalização do aborto
O ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, voltou a afirmar, nesta quarta-feira, que não pretende colocar em votação a ADPF 442, que pretende legalizar o aborto no Brasil, em um futuro próximo. A ação tem um voto favorável, da ex-ministra Rosa Weber, que era relatora e presidente do STF e, às vésperas da aposentadoria, colocou a ADPF na pauta do plenário virtual apenas para poder depositar seu voto – logo em seguida, o julgamento foi suspenso a pedido de Barroso. De acordo com o ministro, é preciso que a sociedade esteja “esclarecida” sobre o tema – por “esclarecida”, leia-se “endossando a opinião do ministro”, claro.
Em outras ocasiões, já explicamos que a justificativa não convence. Barroso tem a firme convicção de que cabe ao Judiciário “empurrar a história na direção certa”, ou seja, na direção que ele considera correta, sendo irrelevante a opinião da maioria da população. Tanto é assim que o presidente do STF anunciou, no fim do ano passado, a intenção de encerrar neste primeiro semestre de 2024 outro julgamento crucial sobre uma pauta que também conta com a simpatia do ministro, mas que tem considerável resistência da população: a descriminalização do porte de maconha. O mais provável, portanto, é que Barroso, o maior entusiasta da legalização do aborto no STF, já teria reiniciado o julgamento se estivesse convicto da vitória; se não o fez, possivelmente é por acreditar que faltam os votos necessários para que a ADPF 442 prospere, e ela não será pautada enquanto Barroso não tiver certeza absoluta de que sua opinião prevalecerá.
Estratégias à parte, é sempre útil desmontar o discurso de Barroso sobre este assunto, a começar pela pressuposição, bastante paternalista, de que a sociedade, no fundo, não sabe o que está sendo discutido. Ocorre que o presidente do STF se acostumou a tratar a gestante como o único ser humano envolvido na questão, esquecendo-se completamente da principal vítima do aborto: o nascituro. Daí a lógica da legislação que trata o aborto como crime: ela não reflete nenhuma insensibilidade da sociedade em relação às mulheres – insensíveis são os abortistas que exploram o desespero das mães, ao vender-lhes o aborto como a única opção aceitável –, tanto que o legislador, ao decidir não punir os abortos realizados em caso de gravidez resultante de estupro ou risco de vida para a mãe, escolheu uma solução humanitária para casos dramáticos. Se o aborto é crime, não é por desprezo ou ódio às mulheres, mas porque se reconhece a enorme barbaridade que existe na eliminação do ser humano mais indefeso e inocente que há, e se busca a proteção da vida por nascer.
Também fica patente a tentativa de transformar o aborto em questão religiosa, o que abriria um flanco para a legalização sob a alegação de que as igrejas estariam apenas tentando impor as regras morais de sua fé aos que não compartilham dela. “Tudo que mistura o sentimento religioso torna difícil porque é um espaço de dogmas, e não um espaço do debate racional”, disse o ministro, deixando implícita uma associação bastante preconceituosa entre dogmas e irracionalidade. O aborto, no entanto, não é um assunto religioso, mas científico, filosófico e ético, que envolve questões sobre o momento do início da vida humana, o conceito de ser humano e pessoa humana, e o choque entre princípios bioéticos como a autonomia e a não maleficência; mesmo quando são líderes religiosos a defender a vida no debate público, eles o fazem principalmente por esses prismas, já que se trata de argumentos que não dependem da filiação religiosa para serem entendidos e aceitos por qualquer um, como bem preconiza John Rawls. Por fim, não pode passar batida a ironia da comparação feita por Barroso entre o aborto e o fumo, no sentido de que seria melhor dedicar esforços a apresentar os males da prática – afinal, se há algo no Brasil sujeito a inúmeras proibições, inclusive legais, é justamente o ato de fumar.
Uma sociedade que defenda o direito à vida do nascituro não é obscurantista e necessitada de “iluminação”, para usar outro tema muito caro a Barroso sobre o papel da suprema corte. Pelo contrário: nada pode ser mais esclarecido que uma sociedade consciente da necessidade de defender todos os seres humanos, da concepção à morte natural, concedendo proteção especial aos mais vulneráveis, incluindo o nascituro, mas também a mãe em situação de desespero – daí o famoso slogan pró-vida argentino “salvemos as duas vidas”. É esta convicção que precisa estar refletida no ordenamento legal e na jurisprudência, e não concepções que desprezam a vida humana indefesa e inocente, por mais “esclarecidas” que soem.