CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

VOCÊ SERÁ O MEU VICE

Nos primórdios da humanidade não existia a figura do vice. Vice-rei, vice-governador e assim por diante. Então, por aqueles tempos, sucedeu um episódio do seguinte teor:

Certo rei, estressado com a rotina da corte, resolveu dar uma volta, a fim de afugentar a fadiga, desenfadar a vida de ferrolho. Ordenou, então, ao chefe da cavalariça que preparasse o Predileto, seu cavalo de estimação. Com o cavalo devidamente encilhado, o rei, agora descaracterizado, a bem dizer, travestido de modo a aparentar outra pessoa, dispensou a escolta real e, sozinho, partiu, sem destino.

De tanto entreter-se com as paisagens sertanejas e a vida campesina, o rei não percebeu que o dia escorrera rapidamente, o entardecer já era realidade. Distante da corte, a noite se avizinhando, endereçou-se a um casebre e ali pediu pouso. Bem acolhido, como é da tradição cabocla, não faltou ao desconhecido visitante a peculiar cortesia matuta e, obviamente, um escasso e franciscano jantar, a lenha. Nessa noite, o visitante não pôde repimpar-se aos moldes dos jantares lautos da corte.

Durante a sesta, os dois, anfitrião e visitante, engataram um manso cavaquear. Em certa altura da conversa, o visitante quis saber a opinião do camponês acerca da administração da corte e a conduta do monarca. Desapressadamente, ao estilo da sinceridade matuta, e da singeleza cabocla, disse o camponês, enquanto entretinha o fogo com galhos secos:

– A bem da verdade, essa corte é uma desordem, uma bagunça, um covil de vagabundos. O rei é um incompetente, desajuizado, extravagante.

No amanhecer do dia seguinte o visitante agradeceu a boa acolhida, estugou o cavalo e partiu. Agora, na corte, desanuviado, o rei restabeleceu a sua rotina.

Não demorou muito, o rei precisou afastar-se por um longo período a fim de visitar um reino distante. Ultimados os preparativos da viagem, despachou uma escolta de cavalaria com o propósito de buscar o tal camponês que lhe concedera pouso. À chegada, o rei pergunta ao camponês se ele mantém a opinião que, naquela noite, proferira sobre a corte e sobre o rei. Sendo de uma palavra só, o camponês reafirmou sua opinião. Então, disse o rei:

– Farei uma longa viagem e, na minha ausência, você será o rei substituto, terá o apoio e a obediência de todos.

Ato continuo, o rei monta e parte com sua cavalaria real.

O camponês, então, manda transformar um couro cru de boi em chibata. Sequentemente manda avisar à vassalagem que no dia seguinte estaria no gabinete real dando expediente. À hora estabelecida formou-se, como de costume, uma longa fila de vassalos, cada qual com sua interminável cantilena, ou queixa, para despejar nos ouvidos do rei substituo.

A cada portador de fuxico, intriga, enredo, ou conversa fiada, o rei mandava aplicar uma ou duas chibatadas, conforme o caso.

No segundo dia de expediente, a fila havia desaparecido. As atividades do reino, então, se tornavam, progressivamente, azeitadas, produtivas, eficientes.

De retorno da viagem, o rei titular pergunta ao camponês sobre o funcionamento do reino. Em resposta, disse o camponês:

– Nunca se viu tanta ordem, tanta produção e prosperidade neste reino.

Constatado o admirável progresso, disse o rei ao camponês:

– Você será o meu vice.

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