A algodoeira Nóbrega & Dantas nos meados dos anos 960 chegou a ser a maior do norte-nordeste.
Foi nessa organização empresarial que papai assinou a carteira pela primeira vez.
Nos meados dos anos 980 a grupo foi sendo derrotado pelo bicudo-do-algodoeiro (Anthonomus Grandis) e mudando de atividade principal, sempre diversificando no ramo têxtil.
Trabalhando na malharia do grupo Nóbrega & Dantas, instalada no prédio onde por muitos anos foi o escritório sede da algodoeira em Acary, durante um tempo – entre o finalzinho de 1989 e o início de 1991 – papai ficou responsável pelo pagamento dos “moradores” da Fazenda Margarida, propriedade dos Nóbregas.
Todo domingo ele abdicava do seu descanso logo cedo e se dirigia a Cruzeta numa moto adquirida por seus patrões para uso exclusivo desse fim.
Um dia o chamaram em Macaíba, onde ficava a sede da FAMOSA, nova razão social da extinta Nóbrega & Dantas. Saiu de casa esperançoso que receberia o aumento solicitado e prometido três anos antes, para se aposentar com “um salário melhorzinho”.
Faltavam seis meses para se aposentar. Foi apenas comunicado de sua demissão.
Como consolo ficou a afirmação que ele era o último demitido do grupo em Acary.
Chegou em casa arrasado.
Fora leal à família durante quase trinta anos, sempre recebendo um salário mínimo, mesmo tendo sido “promovido” duas vezes.
Papai foi um dos poucos que exerceu cargo de chefia e mexeu diretamente com o dinheiro dos Nóbregas e não “saiu rico”.
Sua honestidade é um norte para mim. Um exemplo mais valioso que muitas heranças gordas.
Para se aposentar meu irmão mais velho assumiu as obrigações com o Estado durante os seis meses restantes.
Papai se aposentou com um salário mínimo. Um!
Ainda assim cobrou enquanto pode que tivéssemos gratidão: “sustentei vocês com o salário que recebia de lá”.
Coisas que o Alzheimer dele já o fez esquecer.
Mas, às vezes, eu ainda lembro.
Poeta, são coisas da vida ingrata mesmo. Chico Anysio tinha um conto num dos seus livros que eu acho magistral. Um cara dedicou-se durante anos a cuidar do alambique de uma família, nunca faltou um dia de trabalho, nem quando a esposa morreu. Foi do enterro para o trabalho e era sempre elogiado pelo patrão. Começou transportando cana, depois virou encarregado. Era o personagem que relatava o caso. Um belo dia, o patrão não gostou de uma coisa e na frente de uma visita esculhambou com o cara. Ele não conseguia entender aquele comportamento depois de quase 30 anos de dedicação. Não consegui olhar nos olhos do patrão e cabisbaixo não pronunciou uma palavra sequer. Depois do relho, perguntou: “posso me sair, patrão?”. “E você acha que tenho mais alguma pra falar? Saia!”. Bem, depois disso, todo dia ele mijava no alambique.
Pois é…
Capitalismo brutal e cruel. É sempre assim. Infelizmente.
Caro Jesus Miúdo
Eu também passei por esse perrengue. Meu pai contava os meses que faltavam para se aposentar e foi despedido. Teve que encarar um emprego de vigia noturno para completar o tempo requerido,
A espera foi um sufoco para ele e para nós, os 8 filhos, no aguardo de um salário mínimo de aposentadoria.
Você tem razão. Isto é uma grande ingratidão cometida com os trabalhadores em idade próxima a aposentadoria
Papai quando nos lembrava que devíamos ter gratidão por haver nos criado com aquele salário, esquecia-se, porém, do filho mais velho que começou a trabalhar aos dez anos numa mercearia para ajudar nas despesas de casa. Da filha pintando fraldas desde a adolescência para também ajudar em casa. Do filho com nome de santo vendendo dindins (geladinho, sacolé) aos oito anos para ajudar a pagar a geladeira… Esqueceu-se de mamãe, horas a fio durante anos debruçada sobre as unhas das madames, das mãos e dos pés, para ajudar nas despesas de casa. Era manicure afamada.
Ainda assim, somos gratos. Sim. Somos!
Principalmente a Deus que jamais nos deixou faltar nada. Nem comida, nem remédios, nem livros e, o mais importante, nem amor que nos traz a paz até hoje.
uma lição. gratidão!
Caro Jesus
Temos uma coincidência em nossa criação: Aos 8 anos você vendia sacolés para ajudar a família. Nesta idade, em 1958, eu vendia cocada junto com meu irmão de 10 anos, levando uma quartinha (moringa) de água fresca para oferecer à quem comprasse a cocada.
Éramos empreendedores e não sabíamos. rsrsrsrsrsrr
Eu só me orgulho.
Eu sequer podia com a caixa de isopor onde íam os dindins, era magro e pequeno demais.
Mas os 5% que Mamãe me pagava pela venda, eu dividia com o Galego de D. Maria de Seu Pedão.
Três anos mais velho que eu, mais taludo, era ele quem ficava com a caixa pendurada no ombro.
Eu tomava conta da caixinha do dinheiro. Sabia passar troco bem direitinho.
A comissão a gente gastava com Guaraná e pão doce na bodega do Cego Pacanã.
Agora correu água nos meus olhos, Zé Domingos.
Ritinha,
São essas reações estúpidas da raça que me fazem refletir ser o homem lobo do próprio homem!
Quantas gentes dignas e sensatas já não foram injustiçadas como seu Velho Pai nesse mundo estúpido de “Meu Deus”?
Meus parabéns pela crônica.
Seu Miúdo vale um abraço e o mestre, um aplauso pelo escrito.
Eu fico aqui pensando o mesmo, Cícero!
Minha solidariedade, grande poeta Jesus de Ritinha de Miúdo.
É revoltante a ganância dos ricos patrões, versus a dedicação dos grandes empregados.
O caso do seu pai, antes de tudo, foi uma falta de respeito à pessoa humana.
Esses empregadores, geralmente, pagam em vida, a maldade praticada contra seus mais fieis subalternos.
Fiquei com nojo dessa algodoeira. Tive um parente que trabalhou lá e saiu com uma mão na frente e outra atrás, sem aviso prévio.
Muita saúde para seu pai, e uma ótima semana!
Pois é, querida Violante.
O nome disso é capitalismo brutal, selvagem e cruel, meu Caro Jesus.
Também, amigo Xico.
Porém, eu penso assim, tem muito mais de (des)consideração que de sobrevivência no mercado, ou de busca por mais-valia, ou por interesse no maior lucro final.