É A VIDA, É A VIDA
Eu os via toda semana num supermercado, empurrando o carrinho, ou de mãos dadas enquanto caminhavam para fazer as compras. Ele muito gordo, meão, o rosto sisudo que não irradiava simpatia, que parecia se acentuar com o uso de óculos. Ela nem magra, nem gorda, mais alta do que ele, e, se a boca não estivesse sempre prestes a anunciar um sorriso, não era cerrada, como a do marido. Não formavam um casal bonito, mesmo, presumo, de quando jovens, mas a mulher, apesar da passagem dos anos, conservara o porte esbelto ao andar e uma certa elegância, que faltava a ele. Caminhavam conversando em voz baixa, e nunca percebi, ainda que discretamente, que estivessem discutindo por alguma coisa.
E um dia o vi sozinho. Supus que ela ficara em casa, presa por alguma doença sem gravidade – uma gripe, ou um simples resfriado. Mas já estranhei quando, na semana seguinte, ele de novo apareceu sozinho. E assim sucedeu daí para frente.
Passou-se, passou-se, passou-se, eis que numa noite depois de jantar, conversando com a minha companheira de anos sem conta, enquanto aguardávamos o início do telejornal, soube que a mulher estava sofrendo do Mal de Parkinson. E aqui preciso dizer que o casal mora na rua ao lado da minha. Da janela do meu quarto vi muitas vezes o homem no portão da casa, barrigão nu, sozinho, ou conversando com alguém. Em diversas ocasiões vi o carro dele chegando ou saindo. Em sua caminhada diária, minha mulher passa na calçada da residência do casal e quase sempre encontra a empregada, que lhes serve desde jovem. Dos cumprimentos iniciais, passaram a manter um contato, e conversa vai, conversa vem, aflorou a informação da enfermidade da patroa.
Continuei a ver o homem solitário no supermercado, me parecendo cada vez mais carrancudo. E, de repente, ele também deixou de aparecer. Foi quando soube que estava internado num hospital com uma doença grave. E lá mesmo se finou poucos dias depois.
E o que passei a ver através da minha janela? A senhora, que via sempre ao lado do marido, andando com uma certa desenvoltura para a idade, passou a caminhar a passo de tartaruga por um trecho da calçada, amparada por uma enfermeira. Já ontem, a vi numa numa cadeira de rodas, que a mesma moça empurrava; e pensei que, não fazia tanto tempo assim, ela, sem grande esforço, empurrava o carrinho de compras. Já quase não conhece os filhos, nem a antiga e dedicada empregada. Pior: nem tem ideia de que o companheiro, de quase toda uma vida, partiu para sempre.
“Se te queres matar, por que não te queres matar?”
C’est la vie. Essa experiência breve que nos faz rir ou chorar, mas que sempre surpreende.