A PALAVRA DO EDITOR

Francisca da Silva de Oliveira nasceu em 1732, no Arraial do Tijuco, atual Diamantina, MG. Escrava alforriada transformada em mito devido ao fato de pertencer a nobreza colonial em pleno regime escravista. Sua história ganhou notoriedade 72 anos após sua morte, através do livro “Memórias do Distrito Diamantino”, publicado em 1868, por Joaquim Felício dos Santos. Filha de Antônio Caetano de Sá, português e capitão das ordenanças e Maria da Costa, africana da Costa da Mina (Benim) e escrava.

Aos 22 anos foi comprada pelo contador de diamantes João Fernandes de Oliveira, com quem viveu 15 anos e teve 13 filhos. Todos receberam sobrenome do pai e foram educados nos padrões da elite da época, fato incomum naquela época. Entre 1755 e 1770 a família viveu num belo casarão situado no que hoje é a praça Lobo de Mesquita, nº 6, em Diamantina. Em 1770 ele retornou à Portugal e levou os 4 filhos, que lá tiveram educação superior e tornaram-se nobres da corte portuguesa. Ela ficou junto com as filhas e a posse das propriedades. Assim, a família conseguiu manter um elevado padrão de vida com distinção social e respeito na sociedade escravocrata do século XVIII. Integrou-se às Irmandades de São Francisco e do Carmo, exclusiva de brancos, mas também às irmandades das Mercês, composta por mulatos, e do Rosário, reservada aos negros. Sua riqueza permitiu que parte da riqueza fosse doada às quatro irmandades religiosas.

Como se vê, era uma mulher experiente e sábia na administração dos bens, dividindo-os de forma a contemplar todas as classes. Mantinha a posse de mais de 100 escravos negros e mulatos e vivia basicamente da exploração dessa mão-de-obra, alugada e empregada nas minas, agricultura e pecuária. Não existe evidência documental de que ela tenha concedido alforria a seus escravos, exceto a algumas escravas domésticas com quem convivia. A união consensual entre um branco e uma negra era comum na época. O caso Chica da Silva distinguiu-se por ter sido público, intenso e duradouro, além de envolver um dos ricaços da região. Suas filhas foram educadas semelhante às moças da aristocracia local: enviadas para o Recolhimento de Macaúbas, onde as filhas da elite mineira eram recolhidas. Algumas seguiram a vida monástica e outras só saíram em idade de se casar. Os filhos, já adultos, retornaram ao Brasil e um deles – José Agostinho – recebeu a patente de capitão de milícias no Tijuco; outro – Simão Pires Sardinha – participou do movimento que eclodiu na Inconfidência Mineira e tornou-se nobre, amigo do príncipe regente D. João VI.

Falecida em 15/2/1796, tinha o direito de ser sepultada em qualquer uma das quatro irmandades a que pertencia. Foi escolhida a de São Francisco de Assis, a mais importante. O fato em si revela que ela se manteve na mais alta condição social, mesmo vários anos após a partida do marido para Portugal. Sua história ficou relegada ao esquecimento durante muito tempo até o surgimento do livro de Joaquim Felício dos Santos (1872) e quase tudo que se sabe a respeito de sua vida é baseado neste livro. Desse modo, sua história distancia-se bastante da realidade, caindo na ficção e transformando-a num mito, conforme as intenções de cada escritor. E são muitas as publicações que ensaiaram textos biográficos e históricos sobre o mito Chica da Silva.

A historiadora Júnia Ferreira Furtado, que escreveu sua biografia em 2009, (Chica da Silva e o contratador de diamantes: O outro lado do mito. Editora Companhia das Letras) fez críticas contundentes a esses trabalhos. Segundo ela, a história foi contada sem a devida preocupação com a construção da realidade, distanciando-se da real trajetória de vida e caindo na ficção. Em consequência, o que o grande público conhece dela é um mito no qual realidade e fantasia se misturam. Critica principalmente a telenovela Xica da Silva, exibida pela extinta TV Manchete entre setembro de 1996 e agosto de 1997, responsável pela massificação do mito, asseverando que “os limites do erótico e do mau gosto foram ultrapassados, sem nenhum compromisso com a realidade do século XVIII, que tem sido revelada na sua multiplicidade e complexidade pela pesquisa histórica”. Antes disso, em 1976, Cacá Diegues, havia dirigido um filme com o mesmo título da novela e protagonizado por Zezé Motta, onde o aspecto erótico também foi privilegiado, não obstante o cineasta ter afirmado que “construí meu filme como uma fábula política”.

Cecília Meirelles fez uma premonição em seu Romanceiro da Independência (1953): “Ainda vai chegar o dia de nos virem perguntar: quem foi Chica da Silva que viveu neste lugar?”. Este dia chegou em meados de 2015, quando houve a intenção de se contar sua verdadeira história através de um documentário de longa metragem, produzido por Rosi Young, Tathiana Mourão e Jonas Klabin, com direção de Zezé Motta, intitulado “A Rainha das Américas”. O projeto cinematográfico, de grande envergadura, contou com a exumação de seus restos mortais realizada em 23/11/2015 para saber suas verdadeiras características físicas. O projeto conta também com a reconstrução do seu rosto em 3D, a construção de uma escultura em Diamantina e a criação de um holograma em tamanho real. Esta imagem seria projetada durante o desfile de uma escola de samba em 2018.

Seria se o projeto fosse concluído a tempo. Mas ainda não foi devido a problemas ocorridos na exumação de sua ossada. Tais problemas chegaram a causar um incidente diplomático entre o Brasil e EUA. A exumação envolveu a contratação de dois especialistas norte-americanos, da Arizona State University, responsáveis pela reconstituição do crânio de Chica. A ossada foi levada para os EUA e o trabalho demorava bastante para ser realizado, mesmo sendo cobrado pela produtora Rosi Young. Em seguida ela viu no site na Universidade um vídeo com a manchete: “Professores descobrem escrava brasileira”. Os professores contratados agiram como se eles fossem os autores da pesquisa original. O caso foi noticiado aqui como “o sequestro de Chica da Silva”.

O fato é que o “imbróglio” levou mais de um ano na resolução do problema e devolução da ossada, que só retornou ao Brasil em 5/5/2017, envolvendo o Iphan, a Interpol e o Consulado do Brasil nos EUA. O trabalho científico acabou sendo concluído aqui mesmo e a reconstituição do rosto ficou a cargo do designer Everton da Rosa. A filmagem só poderá iniciar após a conclusão dessa parte e a previsão era que o documentário fosse lançado em 2019. Infelizmente ainda não se deu o tal lançamento, e torçamos para que seja possível ver este importante capítulo da nossa história na telona ou na telinha. A História do Brasil está repleta de bons “causos”, que a indústria cinematográfica brasileira tem ignorado sistematicamente. A preferência dos nossos cineastas têm recaído mais sobre os heróis/bandidos do sertão ou dos morros cariocas.

22 pensou em “AS BRASILEIRAS: Chica da Silva

    • Vamos reiterar, repetir e refletir o dito acima

      “A verdade está lá fora” Disse o oráculo anônimo
      “Grandes mulhertes brasileiras. Porém vai ganhar o Oscarr o Do Cu Mentário sobre a presidenta que pedalava e caiu”

      Agradeço ao leitor anônimo, que fez uma síntese, um contraste (visão) cinematográfica muito boa. Me alegro de poder contar na coluna com mais um leitor qualificado

      .

      • Grato também ao leitor Airton .
        Ganhei o domingo com dois leitores qualificados:.o primeiro é anônimo, mas o segundo é bem conhecido e meu amigo

  1. Não li o livro da Dra. Júnia Ferreira Furtado, mas me parecem relevantes os seguintes trechos que constam de sua apresentação: “Heroína, perdulária, megera, devoradora de homens? A autora reconstrói a trajetória de Chica da Silva, desmonta o estereótipo de sensualidade que a acompanha e mostra como Chica se inseriu na sociedade das Minas Gerais do século XVIII por meio do concubinato com o contratador dos diamantes João Fernandes de Oliveira, com quem teve treze filhos.” … “Amparada em documentação de arquivo do Brasil, de Portugal e dos Estados Unidos, Júnia Ferreira Furtado mostra como Chica não foi exceção, mas um exemplo, entre muitos, da grande camada de mulatos e negros forros que procuravam diminuir o estigma da cor e da condição de ex-escravos”.

    • Caio
      Estou pensando em contratar um assistente de pesquisa e redação para o Memorial. Topas? Eu mato a cobra e tu mostra o pau.Já fizeste isso antes e estou vendo que tens talento para o serviço

  2. Ah, interessante também a história do roubo pelos especialistas americanos da pesquisa e da ossada! Pensa que picareta só tem por aqui???

  3. Obrigado Brito por mais este sensacional trabalho biográfico
    de uma das figuras mais lendárias do nosso Brasil Império.
    Tudo está perfeito, você não julga, apresenta os fatos e descreve
    os acontecimento, como deve ser sempre um bom biógrafo.
    É mais uma aula de como ser um biógrafo isento e bem estruturado.

    A propósito , você fala no seu texto que haveria um enredo de Escola de Samba
    com a história de |Chica da Silva, desfile este que foi abortado etc…
    Acontece que já houve um desfile de uma Escola de Samba do RJ. não me
    lembro do ano, foi há muito tempo , pois ainda residia no RJ.

    Habitualmente eu gostava de assistir todo ano os desfilhes das escolas principais e
    de surpresa , uma dessas escola desfilou com o enredo de Chica das Silva.
    Foi um deslumbramento, foi o desfile mais belo, com fantasias de grande luxo,
    cores deslumbrantes e a música, … A música acompanhando o desfile foi
    um espetáculo à parte. Acredite, eles tiveram a ousadia de paramentados
    como nobres da corte, dançaram valsa na avenida e também um MINUANO com toda
    pompa e gestos nobres, numa perfeição tal que parecia estarmos assistindo um
    baile da corte na avenida.
    Foi um deslumbre total, o povo de pé aplaudia e jogava serpentinas
    maravilhado com tão belo espetáculo. Esse desfile reavivou o estudo e
    toda pesquisa posterior sobre a famosa personagem.
    Obrigado.
    Um abraço , mestre.

    • Caríssimo comentarista do coração Dmatt:

      A escola de samba a fazer uma grande homenagem a essa grande mulher Chica da Silva que, infelizmente se sabe pouco sobre ela até hoje, foi em 1963, pela escola de samba Salgueiro. Foi um desfile apoteótico na presidente Vargas, a altura da personagem homenageada.

      De lá para cá, não sei se houve outra homenagem. Mas entre filmes já realizados, escola de samba homenageando, e biografia sendo lançada, a interrogação da grande poeta Cecília Meirelles ainda continua pendente de resposta decente.

      Quando alguém fará tudo isso, resgatando uma grande personagem da História do Brasil com isenção, sem paixão?

      • Prezado amigo Cícero.

        Todas as informações acima dadas pelo amigo estão cem por cento
        corretas.
        .
        A sua memória é melhor do que a minha, que assisti ao vivo na
        av. Presidente Vargas no Rio este desfile monumental. Naquela
        época ainda não existia o hoje famoso Sambódromo que foi depois
        construído com a finalidade servir para os desfiles como é feito até hoje.
        Naquela época 1963, eu estava com apenas 28 anos e ainda
        tinha saco para assisti desfile de carnaval, o que sempre ajudava
        a arranjar uma boa parceira para desfrutar uma noite inteira, pois
        os desfiles sempre terminavam as 7 ou 10 horas do dia seguinte.

        O sucesso foi tão grande, que o então governador do RJ Carlos Lacerda, querendo tirar proveito político do sucesso do desfile. determinou que a mulata que desfilou como Chica da Silva
        participasse no dia seguinte à noite, no concurso oficial de fantasia
        do baile do Teatro Municipal do Rio, que todo ano contava com
        a presença de artistas de Hollywood, convidados pela
        prefeitura para abrilhantar a festa. E ela ” ganhou ” é claro
        o prêmio como primeiro lugar como a melhor fantasia.

      • Aí está o diferencial em termos leitores qualificados. No meu texto apenas citei a possibilidade de Chica da Silva ser homenageada no Carnaval de 2018, mas que não foi ,sem mencionar o fato dela já ter sido tema do samba-enredo da Escola de Samba Salgueiro anos antes.

        Vemos, então, o leitor D. Matt lembrar-nos do fato com detalhes exuberantes com emoção o desfile carnavalesco. Só quem este presente naquela festa pode descrever como D. Matt fe.
        Em seguida, vem o leitor Cícero e complementa com a data (1963) em que se deu o desfile majestoso.

        Não é uma beleza?!!
        Grato meus amigos D. Matt e Cicero Tavares

    • Caro D. Matt
      Muito grato por me incluir entre os biógrafos isentos e bem estruturados. Creio que este é o melhor objetivo de quem se dedica a esse trabalho. Fico envaidecido com seu depoimento. Ganhei não apenas o domingo, mas a semana inteira
      Gratissimo

  4. Só espero que o novo filme, não venha com o estigma do politicamente correto, que inferniza tudo,com seu desconhecimento dos costumes e condições de vida, na época dos acontecimentos históricos.. .

  5. Caro Brito:

    Chica da Silva não era uma mulata qualquer para sua época. Inteligente, deva ter comido muitos homens para chegar onde chegou. E homens influentes da época.

    Outra mulher não teria feito o que ela fez se não fosse inteligente, após a viagem do marido a Portugal levando quatro filhos.

    Sua integração às Irmandades de São Francisco e do Carmo, compostas de gente branca; às Irmandades das Mercês, composta de mulatos, e do Rosário, composta de negros, provam que ela não era burra: sabia onde queria chegar.

    Para uma mulher inteligente e revolucionária como ela foi para época, não é novidade que haja até hoje todo esse “imbróglio” na reconstituição de sua história.

    Pela sua importância na história, a indagação da grande poeta Cecília Meirelles ainda continua pertinente até hoje.

    Chica da Silva está ainda a merecer uma biografia digna e isenta de qualquer inverossimilhança, bem como um filme que dê dignidade ao que ela representou para época.

    Obrigado, Grande Memorialista, pela excelente minibiografia dessa grande Negra!

    • Grande cronista Cicero Tavares

      Seus comentários de hoje não apenas enriqueceram a biografia de Chica da Silva, mas deram um brilho fantástico com os detalhes em sua homenagem no desfile carnavalesco de 1963, em homenagem à ilustre brasileira

  6. Esta semana a mídia mencionou em suas páginas a diferença histórica em nosso país entre ‘nação’ e ‘país’. O país teria sido criado antes da nação. E essa seria uma das razões do subdesenvolvimento brasileiro. Na realidade, meu caro Brito, sua tarefa com esse seu Jornal, é promover a ‘nação brasileira’ contando com sabedoria a história dos brasileiros. Presta com isso um grande serviço à NAÇãO.

  7. Mestre Plínio
    Na verdade quando comecei este trabalho não tinha a pretensão de “prestar um grande serviço à Nação”, conforme disse. O objetivo era e é tão somente divulgar alguns brasileiros e brasileiros mais ou menos esquecidos na memória nacional.
    Seu depoimento me deixa lisonjeado e estimulado a prosseguir nesta lida.
    Muito agradecido

    • Tens razão Paulo, nossa secretária Chupicleide cometeu um equivoco. Mas o fato é que não dispomos de imagem da Chica da Silva. Vamos mudar a foto numa próxima edição.
      Grato pela correção

Deixe um comentário para Airton Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *