JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

Porteira de acesso à casa da Vovó

Nunca atrasava ou adiantava. O ônibus da empresa Expresso de Luxo, da família Paula Joca fazia a linha intermunicipal entre Pacajus e Fortaleza. Saindo de Fortaleza na “Cidade das Crianças” rigorosamente às 15:30 h, sempre e pontualmente às 16:00 estava parando no Olho d´Água, hoje Horizonte.

E, não havia demora, por que o tráfego pela BR-116, ainda era pequeno, e a estrada de boa qualidade facilitava o percurso de pouco mais de 40 Km.

Desci do ônibus e, como fiz por muitos anos durante as férias, peguei a direção da estrada vicinal, de areia pura e frouxa, que levava à casa da minha Avó. Mochila nas costas, ainda pensei em tirar o tênis e percorrer a distância de uns 6 Km descalço. Mas, logo vi que, ainda que sendo a mesma, a estrada não tinha mais tanta areia. Segui caminho.

O sol começara a esfriar, e logo entendi que não havia necessidade de andar rápido, pois Vovó e Vovô me receberiam bem na hora que eu chegasse.

Andava e andava, tendo sempre a atenção voltada, de repente, para algo que acontecia. A mesma cerca velha feita de toras de sabiá (mimosa caesalpiniaefolia) construída há dezenas de anos. Quase tudo igual.

Longe dali, mas tão perto para a captação dos ouvidos, a rolinha cantava chorosa, fogo-pagooooouuuuu, fogo-pagoooooouuuu, num lamentável cântico que tornava o fim de tarde mais triste ainda. E tome estrada. Aquela mesma que, antes tão distante, agora era percorrida com apenas um “salto” (dizer da Vovó).

Caminhando, sozinho, sequer sentia o peso ou o incômodo da mochila. Não demorou, e cheguei na porteira corrediça da casa da Tia Maria e ainda me atrevi a avisar:

– Ô de casa, tô chegando! Tô passando, mas depois eu volto!

E continuava a caminhada, que tinha o objetivo de atingir e atravessar a mata fechada antes da noite chegar. Precisaria caminhar por mais de meia hora mata à dentro, antes de atingir a porteira do destino. Não era recomendável atravessar, andando no escuro aquele matagal, sempre avisou o meu Avô.

E, poucos metros antes de entrar na mata, o susto veio através do vôo repentino no “inhambu”, despertando um medo que até então não existia. Mas, era seguir em frente, e deixar pra lá as crendices nas assombrações e lobos maus.

Mata atravessada, eis a porteira à frente. Longe, dava para escutar o toque-toque da mão do pilão, pilando fubá de milho torrado, ou café: – toque, toque, toque tão ritmado que mais parecia um ensaio de bateria de escola de samba do Rio de Janeiro!

Anunciada – a prima pilando fubá de milho torrado

Provavelmente, o rangido feito pela dobradiça enferrujada, ao abrir o portão-porteira, despertou o cachorro Bimba, até então em sono profundo, enquanto deitado sobre o forro do cambito encostado na parede da sala. Desesperado e balançando o rabo, veio ao meu encontro. Cheirou. Conferiu o faro, e me deixou entrar sem alarido ou latido.

Subi o batente, abri a porta de baixo, pois a de cima estava sempre aberta. Apesar do silêncio, arrisquei um cumprimento:

– Ô de casa! Tem alguém aí? Vó, a senhora tá em casa?

Resolvi entrar e, como conhecia a casa em todos os cômodos, fui até a cozinha e vi o fogo do fogão aceso e, sobre a bancada, a fumaça do café que estava sendo preparado (provavelmente para a novidade que estava chegando – eu!), ainda fora do bule.

Já demonstrando preocupação, voltei a chamar. Vóóóóó, a senhora está em casa? Tá onde?

Como, provavelmente, ela estaria em casa, pois era a hora de preparar o dicumê para o Vovô, resolvi procurar também no quintal, onde talvez ela tivesse ido pegar uma toras de lenha para atiçar o fogo.

Café ainda no coador esperando a visita

Descendo o batente da porta da cozinha, logo percebi as galinhas ciscando o chão à procura de milho, ou algo para comer. Eram muitas as galinhas criadas no sistema “meeiro” com o dono das terras – e a netaiada, crescida e morando na capital, nem vinha mais aos domingos, suscitando o abate das penosas. A tendência era aumentar o rebanho.

Se eram tantas as galinhas, com certeza em alta postura, dava para imaginar a quantidade de ovos guardados nas cuias da Vovó dentro da camarinha – esperando alguém para levar pros meninos na cidade grande, ou para fazer aquela gemada gostosa, caso alguém precisasse.

Como continuei chamando e não fui atendido, deduzi que não havia ninguém em casa. Coisa lógica.

Galinhas soltas cacarejando no quintal

Continuei passeando pelo quintal, quando avistei, ao lado do antigo girau, aquela mesma porca pintada na cara, comendo babugens ao lado dos dois bacurins – e esses me deram a impressão que continuavam do mesmo tamanho de mais de 50 anos atrás.

A porca e os bacurins procurando “babugens”

Interessante que, um dos bacurins tinha a cara “cagada e cuspida” de Zé Luciano, um primo, que não dispensava nada. Comia até buraco na cerca, ou na parede. Nem me admiro que tenha emprenhado a coitada da porca. Se é que isso seria possível.

Embora já se fizesse escutar, a cantata das cigarras e dos grilos, ainda havia claridade. Como não aparecia ninguém, continuei passeando pelo quintal, matando a saudade da convivência com os bichos criados por Vovó.

Foi quando percebi que, uma pata pastoreava os onze patinhos que acabara de alimentar, e agora os levara à beber água. Um pato, mais afoito, acabou caindo dentro da bacia improvisada de bebedouro. Todos, inclusive a pata, levantaram os olhos para mim, admirados pela presença – depois, descobri que fazia muito tempo não recebiam o incômodo de ninguém.

Pata e patinhos assustados com minha presença

Segui o passeio, e ninguém dava o ar da graça. Comecei me sentir “só”, necessitando entender o por que de, até aquele momento, não ter aparecido ninguém. E a noite começava a dar o ar de sua presença. Pelo menos eu teria que me preparar para enfrentar a noite, sozinho, enquanto Vovó ou Vovô não chegavam de volta para casa.

Galo Messias “galando” mais um ovo para a cuia da Vovó

Ali mesmo onde estava, escutei (ou imaginei ter escutado) um latido de Bimba. Era a senha que eu precisava, para ter a certeza que alguém chegava de volta em casa. Fui até a portas de entrada e, percebi que não era ninguém menos que o jumento Policarpo, querendo entrar – e ele mesmo, com certeza, como se acostumara fazer durante todos aqueles anos, caminhou até encontrar o buraco da cerca por onde entrava para dormir ao lado do chiqueiro das cabras.

Assim, continuei andando, agora, curioso para conhecer as novidades. E, aparentemente não havia muita coisa nova naquela casa com ares de abandonada, embora o fogo do fogão se mantivesse acesso e o coador do café ainda fumegasse.

E, daquela forma, quem havia jogado milho para as galinhas; ou, quem havia servido água da bacia para os patinhos?

Antes de resolver parar para entrar e procurar uma lamparina, percebi o que para mim era uma novidade, sim. A moita de “mufumbo” havia crescido, e dessa feita, os catraios haviam posto muitos ovos – e nenhuma cobra se atreveu a come-los.

Os ovos das “capotas” (catraias) continuaram já eram muitos

Ligeira, a noite chegou e me pegou desprevenido. Como e onde encontrar uma lamparina que iluminasse aquela casa até a chegada da Vovó?

Eis que, enquanto procurava a lamparina, tropecei, e me dei conta que, nas costas, carregava uma mochila. Perguntei para mim mesmo: de onde saiu essa mochila? Eu nunca possui ou usei mochila, quando era criança!

O barulho do carro que faz a coleta do lixo de dois em dois dias, me acordou. Só então consegui perceber que tudo aquilo não passara de um sonho. De um bom e saudoso sonho.

Mas, e o cheirado de Bimba, o cachorro; o fogo aceso no fogão e o café fumegante; o milho para as galinhas; a água para os patinhos, e a chegada da noite? Como explicar tudo isso?

20 pensou em “A MOCHILA E A VOLTA AO INÍCIO DA VIDA

  1. Vez em quando tenho sonhos assim. Quem é da roça e vive embretado na cidade sofre eternamente com essa saudade. Faz lembrar a canção de Dominguinhos “Lamento Sertanejo”.

    • Flavio: conheço tanto de sonhos ou de tentar explica-los, quanto entendo do dia a dia do Flamengo (meu inimigo número 0001 em qualquer guerra ou situação). Mas, tenho uma certeza: a gente nunca sonha com o “futuro”. Quase sempre sonha com o que aconteceu. Será que temos um ship “gravado” e a gente faz o “backup” quando sonha?

  2. Cumpadi ZéRamos, sua narrativa é perfeita, volto no tempo, não lembrava mais do Expresso de Luxo, das catraias, ler sua coluna aos domingos é simplesmente prazerosa, a forma como voce descreve sua vó, é lírica. Obrigado e bom domingo.

    • Marcos: no mesmo sonho descobri onde “tava a minha Avó” – tava jogando barro fora. Era uma figuraça na minha vida inicial.

    • Dra. Valéria, fico agradecido e prometo procurar esse tal Marcel para me esclarecer essas coisas. Prometo que só vamos falar de saudades e de sonhos do futuro.

      • José Ramos ,você não precisa procurar pois você já sabe, senão não teria escrito esta página. Veio do seu mais profundo interior.
        Quem busca somos nós que não temos o dom.

    • d.matt: as coisas da vida do sertão, que muitos chamam roça, não fazem parte dos dicionários formais. Só dos dicionários do falar da vida e dos cafundós. O catraio, na roça onde nasci, também é chamado de capote. A fêmea, se não é “presidenta”, é chamada de “capota”. Do “catraio”….. visse?

      • Sim, mas o que é Catraio ? , ave ? bicho de quatro patas ?
        Lagarto ?
        Fêmea presidenta ?????
        Desculpe a minha ignorância, mas ainda não entendi bulhufas.

        • d.matt: não se apoquente. “Catraio”, é o mesmo capote, ou galinha d´angola! E, se é uma ave, ter quatro patas fica complicado!

  3. Ramos, simplesmente não se explica! Vim embora pra Recife em 1975. No ano anterior, Roberto Carlos gravou O Portão e fizeram um comercial do cigarro continental. Era um jovem voltando de ônibus pra casa. A praça, o coreto, as crianças brincando, a vida seguindo e o fundo musical era O Portão. Eu chorava de saudade da minha terra. Sentia muita saudade e me apropriava de músicas (os verdes campos, de Timóteo. Embora lá de verde só papagaio, pano de sinuca e a bandeira brasileira). Do mesmo jeito que você, Ramos, eu volto todo dia, sem sair do lugar.

    • Maurício, qualquer viagem é um sonho que se realiza. Nosso, ou de outrem. Agora, quando alguém vai passear naquelas ruínas do Peru, e faz o que alguns alfabetizados pelo método salvador de Paulo Freire, só pode dar no que deu recentemente.

  4. Belíssima crônica, querido Zé Ramos:

    Para o sonhar não existe explicação científica.

    Ou existe?

    A gente está dentro de uma realidade espiritual que demonstra que naquele momento a gente está bem, física e mentalmente bem.

    Por que temer a passagem da mata escura se agente caminha ao encontro de Vovó, Vovô, a mulher pisando o café, o milho, a galinha pondo ovos, o vira lata latindo e conhecendo gente… a diversão que só a criança sabe decifrar?…

    Parabéns, grande cronista! Uma delícia “A MOCHILA E A VOLTA AO INÍCIO DA VIDA”.

    • Cicero: por falar em sonhar, estão dizendo por aí que, quando estava na carceragem, toda noite Lula “sonhava” em voltar a ser Presidente. Tem até quem diga que ele quer isso, para concluir a obra inacabada. Que tipo de sonho pode ser esse?

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