JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

“Toda criança precisa ter contato com o chão, brincando descalça – para contrair as bactérias defensivas do corpo.” – Raimunda Buretama (minha Avó), uma analfabeta que nunca entrou numa escola.

Criança brincando na beirada do rio

Hoje vamos pegar o túnel do tempo, e “voltar para o futuro”. Relembrar as feridas dos “chaboques” feitos nos dedos dos pés jogando bola no piso duro do chão; tentando (e conseguindo) derrubar e roubar mangas e goiabas no pomar dos vizinhos; tocar a campainha na frente das casas e sair em disparada – práticas da infância que o tempo levou, e que nos fez “filhos que eram castigados pelos pais e mães” e os obedeciam e respeitavam.

Esses filhos que estão aí, hoje, não são nossos. São dos conselheiros tutelares – que nossos filhos abriram as portas de suas casas para eles entrarem e determinarem os hábitos, a educação e a alimentação.

Esses filhos que estão aí, hoje, só são nossos para pagarmos pensão alimentícia – e esperar a hora que, certamente, nos “depositarão” num asilo e continuarão a receber nossas aposentadorias.

Mas, jamais vamos dizer que nenhuma criança de antigamente fazia por merecer os castigos que recebia dos pais. Da mesa forma, também jamais diremos que criança fazia tudo certo ou, tudo de acordo com o atual “politicamente correto”.

Mas, era a nossa fórmula encontrada para sermos felizes. Para sermos crianças. Para sermos gente e parte de uma família difícil de ser destruída. Como acontece nos dias de hoje.

Também fazíamos coisas erradas. Hoje receberiam o rótulo de “politicamente incorretas”.

E uma dessas coisas erradas que fazíamos, era “criar passarinhos”. Pelo prazer inocente de ouvi-los cantar. Por ignorância, digamos.

Alçapão para pegar passarinhos

Durante as férias escolares, ou aos domingos e feriados, a rotina era a mesma: duas gaiolas-alçapão em cada mão, e lá íamos à caminho da Lagoa da Agronomia.

Ali, por conta da quantidade de água e pelo capim existente, era comum “pegarmos” passarinhos. As gaiolas eram armadas na cerca. Os passarinhos eram quase sempre o papa-capim, o bigodeiro, o gola (coleiro) e o caboclinho (caboclo lindo). Mas, de vez em quando aparecia um curió.

Papa-capim “virado”

Aquelas manhãs eram tomadas pela ansiedade de “pegar passarinhos”. Os passarinhos pegos, nem sempre eram aceitos. Quando pegávamos algum que não nos agradava, soltávamos para que ele fosse viver a vida em liberdade. Era assim, com o “tiziu”, um pequeno pássaro preto que se alimenta do mesmo capim preferido pelo papa-capim e pelo caboclinho.

O tiziu tem uma característica de vida e de canto. Ele canta, voa e “cai na vertical”. Esse não tem tanto a preferência dos “passarinheiros”. E isso se dá por conta da dificuldade para encontrar no comércio especializado algum tipo de ração para ele.

O tiziu é, digamos, um pássaro chato. Perturbador.

Tiziu “virado”

Hoje, muitos anos depois daquela maldade inocente, temos consciência que o melhor para as aves é a alegria de viverem soltas. Procurando e encontrando sua própria ração, praticando seus voos, reproduzindo no habitat que melhor lhe convier.

E, cantando para a nossa alegria.

16 pensou em “A CRIANÇA – O ALÇAPÃO – E OS PÁSSAROS

  1. Muito bom!. . Nunca pus as mãos numa gaiola , nunca peguei num estilingue e nunca apreciei um pássaro preso .
    Mas apreciava uma gravação do engenheiro professor Johan Dalgas Frisch sobre canto de pássaros quando era menino.
    Hoje o conselho tutelar não ajuda a educar ninguém , e os meninos continuam a aprisioná-los , ou matá-los com ou sem o politicamente correto.
    O tal conselho , desaconselha o respeito , sendo meramente um cabide de empregos.
    Não se respeita os pais , os mais velhos ,nem mesmo a polícia quando é chamada. A violência agora é maior, e fica abrigada nas próprias leis , na psicologia , e na metodologia do ensino .
    Ainda bem que pássaro voa , o que lhes garante alguma defesa.
    É uma pena que criança não seja educada da antiga forma , o que lhes garantia exceto em pouquíssimos casos , admiração e bela formação moral.

    • Este é mais um daqueles seus “escritos” cujo título deveria ser “enxugando lágrimas” e não gelo. Quem foi criança naqueles tempos não tem como não se emocionar com as “remembranças”. Obrigado.

    • Joaquim, por ação ou por inércia, temos boa parte de culpa nisso tudo. Se é que a solução se inicia na procura de culpados. Hoje, o homem/mulher “teoriza muito”. Blá-blá-blá, e só! Concluo, afirmando que, “se o poder emana do povo”, por que as decisões seriam diferentes?

  2. Já tive pássaros em gaiola. Tínhamos uma patativa de canto maravilhoso.
    Hoje. mantenho um pedaço de galho fora da janela e três potes, um com terra para pássaros, outro com água e um terceiro com ração para aves silvestres. O resultado é semelhante.

  3. Estimado Zé Ramos:

    Hoje, só de imaginar ver um passarinho preso numa gaiola cantando solitário me provoca um farnesin na boca do estômago.

    Já possui muito canário, galo de campina, pintassilgo e papa-capim, mas nunca os maltratei. Quando tomei consciência de que aquilo lhes era uma prisão injusta, soltei-os para cantar libre nas matas, livre das grades. Fiquei com a consciência liberta e feliz.

    Hoje, quando vejo um preso numa gaiola, apesar de ter um equilíbrio mental muito acentuado, não seguro a dor no peito. Me dá vontade de ir lá e soltar, mesmo a contragosto do dono.

    Se dependesse de mim, hoje, eu os soltaria a todos.

    Imagine a solidão de um pássaro cantando preso na gaiola?!

    • Cícero, quem nasceu e viveu na roça, teve uma infância diferente de quem nasceu entre prédios e barulhos mil. Mas, quando quem nasceu na roça amadurece, vai compreender essas coisas. Agora, pelo visto, você também é favorável ao “Lula livre”! Kkkkkkkkkkkkkkkkk

  4. Hoje ser criança tem uma conotação diferente porque a criança não vive esse momento de ser criança. No meu tempo tinha carro de rolimã, banho de rio, sinuca, futebol, barra bandeira, pega-pega, queimada, etc. A gente brincacava como e com crianças. Hoje, as crianças não convivem entre si, principalmente nas grandes cidades.

    • Segundo Chico Buarque tinha até outra brincadeira que Aasuero ( não confundir com Assuero ) não mencionou ,e que viciou muita criança , hoje adulteros. Brincadeira !!!!!!

      • Joaquim, foi isso sim, mermão. Era comum a gente convidar os amigos para “brincar”. A gente inventava a brincadeira. As meninas brincavam de casinha, de ser professora, etc. E chegamos nós, devemos de presente um celular ou um tablete, tudo com a intenção de ficarmos “livres das aporrinhações” (que nada mais são que as necessidades da convivência entre pais e filhos) dos filhos.

    • Assuero, concordo contigo. Mas não podemos nos livrar da pecha de ter contribuído para isso, quando passamos a facilitar tudo para eles, inclusive comprando os brinquedos (minha Avó dizia: não dê o peixe. Ensine a pescar), em vez de ensina-los a fazer. Não satisfeitos com o que fazemos com e para os filhos, continuamos a fazer com os netos.

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