Para o Velho Capita, Carlito Lima, colunista deste JBF
Belarmino Xexéu era o típico louco de cidade pequena. Conhecido por todos. Querido, mas também zombado dada à sua figura. Mistura de profeta do Apocalipse cruzado com espírito de Bocage e Gil Vicente zanzava pelas ruas de Goiabeiras, cidadezinha do interior, poerenta e mimosa. Lugar em que morcego passava protetor solar mesmo à noite, dado ao seu calor e vento seco.
No barato, era uma espécie de faz tudo. Capinava, varria, fazia serviço de moleque de recados, guarda noturno dos puteiros e cabarés da cidade, servindo de leão de chácara e sparring para os amantes um pouco mais impetuosos da cachaça nossa de todos os dias. Conheci Belarmino pratrasmente de uns vinte anos quando ainda era ajuizado, morava protegido por telhado e tinha seu brim de fim de semana para as missas, pois era devocioneiro de São Lifôncio, santo sempre cuidadoso na proteção de picadas de inseto peçonhento.
Naqueles idos tempos, só tinha três paixões: Zizinha, moça de porta aberta que era a mais procurada de Goiabeiras, cachaça de fundo de barril e pescaria. Nos fins de semana, não contasse com ele. Vivia tabocado em pé de pau, mais pubo que mandioca na água, na ânsia de pescar um rubafo que desdenhava de sua pessoa e de toda a sua parentagem. Havia jurado de juramento firme que não morreria enquanto não passasse aquele rubafo semvergonhista e desrespeitoso no seu anzol. E assim, passava os sábados e domingos. Atocaiado, mais fiel que perdigueiro, buscando seu rubafo.
Belarmino José Montenegro da Cruz Souza e Sá, nome comprido, desses que dão uma boa sonoridade para firma de doutor de lei, ou mesmo médico que vive de poções e sinapismos para curar vermina de criança comedora de terra, mas por alguma sorte do destino mudou completamente de vida. Os mais piedosos diziam que foi algum sortilégio lançado sobre ele. Os mais maldosos diziam que foi a cachaça mesmo. Mas isso tudo era bocagem do povo. Ninguém sabia por que motivo Belarmino descarrilou da vida. O que se sabe é que um dia ele sumiu da cidade, voltando, passado um bom par de anos, modificado, tocado pelo destino a apregoar virtudes, desdenhando posses e vivendo para auxiliar os outros.
Ganhou o apelido de Xexéu porque se tornou inimigo da água e do sabão, alegando que era coisa do Tinhoso. Vivia de bentinhos, ladainhas e ensinamentos de Deus, Nosso Senhor e de todo o povo do céu. Trabalhava de miúdo, apenas para ganhar o pão desse dia que vivia.
Vim depois a saber que Belarmino perdeu o juízo quando em um fim de semana, indo para a sua penitência juramentada, viu que um moleque pegador de passarinho, adiantara-se a ele e pegara o rubafo juramentado que por muito tempo zombou de sua pessoa. Aquela visão do peixe no samburá do moleque o transtornou. Perdeu alguns parafusos do miolo. Largou caniço e anzol e saiu pelo mundo, sem dar notícia a ninguém. Sem escrever missiva, ou mesmo mandar lembranças. Agarrou-se à fé como uma tábua no meio do oceano e teve os vislumbres da santidade, perdendo o juízo para as coisas da terra.
O mundo virou um saco de maldade, onde magotes de hereges viviam em pecado mortal, lambuzados em zombarias contra o povo do céu. Sua volta foi um espanto. Mas, como dizem o tempo cura tudo. As pessoas passaram a gostar de sua companhia e o fizeram um faz tudo na cidade, que ele executava com rapidez e segurança.
Nas feiras de domingo Belarmino se via ocupado. E mesmo se tivesse dez baços e outras tantas pernas não era capaz de atender aos favores que lhe pediam, sempre a troco de algumas moedas que ele guardava em sua calça surrada e depois ia gastar comprando guloseimas que repartia com os filhos dos pobres da cidade e comia com alegria, com todos os dentes gozando da felicidade dos desajuizados, que são puros e inocentes.
Certa vez, carregando quatro sacolas de feira, ia dirigindo um caminhão caçamba na sua cabeça, fazendo o atchim dos rodofreios sempre que chegava em uma esquina. Nesse dia, para azar de todos, Dona Clementina, Dona Cotinha e Dona Josefa resolveram pegar a fresca da manhã sentadas em cadeira de vime na larga calçada que Belarmino fazia de sua pista de caminhão.
Meio adernado pelo peso das sacolas, vinha o caminhoneiro trocando marcha, freando e acelerando o seu caminhão imaginário. Ao ver as senhoras – as três maiores fofoqueiras da cidade – Belarmino puxou a cordinha do apito de seu caminhão. Mas, sem tempo de frear, atropelou as três velhas. Foi um verdadeiro acidente automobilístico. Um ajuntamento de coentro voou pelos ares, uma sociedade de tomates que estavam embrulhados em sacola de plástico virou patê no meio da calçada e duas cabeças de repolho rolaram para o meio da rua, enquanto as velhas tentavam se levantar.
– Louco filho de uma puta! Você não viu que a gente estava sentada aqui na calçada e veio correndo?
– Eu vi, dona Cotinha. Apitei com meu caminhão, as senhoras não saíram da rua e eu não consegui frear, aí tive que atropelar, porque ‘tava’ com bastante velocidade!
Até hoje não sei, se depois desse acidente tiveram que chamar a perícia de trânsito, ou os maridos das velhas. O que sei é que Belarmino Xexéu juntou sua carga e foi entregar a encomenda contratada no endereço do freguês, em troca de uns cobres para as guloseimas de domingo.
Magnífico. Um conto bem contatado e de dar inveja em que ler.
Obrigado meu caro Maurício.
Estava precisado desse momento para desopilar os miolos