DEU NO JORNAL

Editorial Gazeta do Povo

Em uma corte com tantos “editores de um país inteiro” – uma definição que não veio de fora, mas de um deles, o ministro do STF Dias Toffoli –, o voto de André Mendonça no julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet foi notável pela defesa da liberdade de expressão, das prerrogativas do Poder Legislativo e da autocontenção do Supremo Tribunal Federal. Mendonça divergiu dos três colegas que já votaram (o relator Toffoli, Luiz Fux e o presidente da corte, Luís Roberto Barroso) para defender, em um voto cuja leitura durou duas sessões, que o texto discutido e aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado em 2014 pela então presidente Dilma Rousseff não viola a Constituição e deve ser mantido.

Ainda na quarta-feira, quando lançou as premissas que guiariam seu voto, Mendonça começou criticando o Judiciário por “assumir maior protagonismo em questões que deveriam ser objeto de deliberação pelo Congresso Nacional”, instituição que, segundo o ministro, também neste caso deveria ser o lócus do debate sobre a regulamentação do que é publicado na internet. No entanto, como o caso já está em debate no Supremo, não restaria a Mendonça outra alternativa a não ser defender, além da autocontenção do Judiciário, a liberdade de expressão como direito fundamental do brasileiro e “meio indispensável para a defesa das demais liberdades e direitos fundamentais”. O ministro disse que “apenas em uma sociedade na qual o cidadão seja livre para expressar sua vontade, sem receio de reprimenda estatal, se pode falar em soberania popular” – e “receio de reprimenda estatal” é aquilo que os brasileiros mais sentem atualmente, graças aos inquéritos abusivos que tramitam no STF desde 2019.

Chamou também a atenção a defesa que Mendonça fez de um “direito à desconfiança”, e o ministro não se furtou a citar a Justiça Eleitoral brasileira. “A Justiça Eleitoral brasileira é confiável e digna de orgulho. Se, apesar disso, um cidadão brasileiro vier a desconfiar dela, este é um direito. No Brasil, é lícito duvidar da existência de Deus, de que o homem foi à Lua e também das instituições”, afirmou ele, acrescentando que “a partir do momento em que um povo é proibido de até mesmo desconfiar – ou é obrigado a acreditar –, instaura-se o ambiente perfeito para subjugá-lo pela sua impotência”. Igualmente digna de menção foi sua defesa da tolerância. Mendonça citou o filósofo português Desidério Murcho, para quem “ser tolerante é aceitar o direito de alguém afirmar o que pensamos firmemente ser falso ou errado ou inaceitável ou ofensivo […] Ser tolerante é defender as pessoas que têm ideias falsas, idiotas ou inaceitáveis e atacar essas ideias”.

Sob um ponto de vista mais prático, Mendonça não deixou de reconhecer o fenômeno das fake news, nem de admitir seu efeito nocivo; mas rejeitou o paternalismo implícito nos votos de seus colegas ministros, para quem os usuários seriam meros cordeirinhos que tendem a crer em tudo o que veem na internet e, por isso, teriam de ser “defendidos” pelas autoridades. O ministro lembrou que os modelos de regulação europeus, que são a inspiração para os votos dos ministros que antecederam Mendonça, tendem a sufocar não só a liberdade de expressão, mas também a inovação, ao contrário do modelo norte-americano, no qual o Marco Civil da Internet se inspirou. E alertou para um perigo: o “dever de cuidado” que os ministros querem impor às plataformas pode levar a um tipo de “classificação” de usuários de acordo com seu “risco” de fazer afirmações inconvenientes na internet, criando uma espécie de ranqueamento similar ao imposto pela ditadura chinesa – só que, desta vez, com caráter privado.

Ao contrário de Barroso, que em seu voto até apresentou boas premissas, mas acabou descambando para a defesa de modelos que levarão à censura, Mendonça levou seu raciocínio até o fim de forma coerente. Afirmou que as regras atuais, pelas quais as plataformas só podem ser responsabilizadas se desobedecerem ordem judicial de remoção de conteúdo (com apenas duas exceções em que basta a notificação da parte ofendida para a remoção se tornar obrigatória) são constitucionais. Mas ele ainda foi além, classificando como inconstitucional a remoção ou bloqueio de perfis em mídias sociais, a não ser quando forem comprovadamente falsos, como no caso de robôs ou usuários se passando por outra pessoa. Qualquer pessoa minimamente familiarizada com o funcionamento das mídias sociais e com a Constituição já sabia que é assim, pois a lei maior não permite esse tipo de censura prévia; mas que Mendonça queira colocar essa questão em pratos limpíssimos é extremamente bem-vindo, já que essa tem sido uma das principais ferramentas de Alexandre de Moraes para calar aqueles que ousam criticá-lo.

Os quase seis meses passados desde que Mendonça pediu vista até a apresentação de seu voto foram muito bem empregados na construção de uma argumentação sólida que defende a liberdade de expressão, condena a censura – especialmente um tipo de censura que se tornou cada vez mais comum no Brasil atual – e tenta conter o ativismo judicial. Em um ambiente cada vez mais carregado, como demonstram alguns dos últimos acontecimentos da vida nacional, o voto de Mendonça desponta como uma muito necessária manifestação sensata e lúcida. Resta saber se essa argumentação será capaz de convencer uma quantidade suficiente de ministros, dos sete que ainda votarão sobre esse tema, para que a liberdade de expressão ganhe ao menos uma sobrevida no Brasil.

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