FERNANDO ANTÔNIO GONÇALVES - SEM OXENTES NEM MAIS OU MENOS

Nunca escondi a minha admiração pelo escritor português Fernando Pessoa, um legítimo poeta-aguilhão, que jamais se deixou mumificar nas torres de marfim de um intelectualismo sensaborão, contemplador do próprio umbigo, saudosista por excelência, desvinculado das dores dos seus derredores e do mundo. Suas intervenções na realidade cultural, social, econômica e política do seu tempo, cáusticas algumas, recheadas de humor triturante outras tantas, são minuciosamente analisadas, hoje, por cientistas sociais das mais variadas especialidades e graus acadêmicos. O que bem vem a demonstrar a contemporaneidade dos seus escritos em prosa e verso, ardorosos defensores de amanhãs menos miméticos da humanidade. No Recife, um talento pessoano merece amplos aplausos: José Paulo Cavalcanti Filho, integrante da Academia Brasileira de Letras.

Em setembro de 1928, num artigo publicado no Notícias Populares, Pessoa busca alertar seus patrícios acerca do provincianismo lusitano, considerado por ele “o mal superior português”. Um mal que também aflige outros países, “que se consideram civilizantes com orgulho e erro”. E alguns estados de alguns países latino-americanos de língua portuguesa, que se imaginam eternos líderes regionais, desapercebidos ingenuamente da chegada veloz de novos tempos e outros horizontes. Inclusive de tentativas fascistóides golpistas patrocinadas por manés aloprados, financiados por portadores de bons trocados.

Segundo o poeta luso, a síndrome provinciana se caracteriza por três sintomas: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e a incapacidade de ironia, na esfera superior.

O poeta explicando o primeiro dos sintomas, afirma que um parisiense não admira Paris, ele gosta de Paris. Não se pode admirar aquilo do qual se faz parte. “Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranoico com o delírio das grandezas”. Em São Paulo, segundo lá se fala, aos cardosenses – moradores do município de Cardoso – são atribuídos o uso e abuso de inúmeras práticas auto-ufanosas, algumas até grotescas, ainda que aplaudidíssimas pelos da corte de lá, os bajuladores de sempre.

Para o segundo sintoma, Fernando Pessoa é taxativo: “Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção”. Traduzindo: quem já é civilizado, não necessita arrotar grandezas ridiculosas, vangloriando-se disso e daquilo, tal e qual um pavão de rabo muito lindo e pés nada charmosos. E por ser civilizado, comporta-se como os demais das outras áreas, sempre prescrevendo futuros, jamais desejando vê-los reproduzir coisas pretéritas, ultrapassadas e sem mais utilidade comunitária.

No sintoma terceiro, a incapacidade de ironia, Fernando Pessoa diz que aí reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Na definição do notável lusitano, por ironia “entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redações, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário”. Não muito recentemente, para se dar um exemplo, um presidente brasileiro disse que ia dar um banho no sertão do Nordeste. E um outro exemplo notável foi dado por Swift, considerado o maior de todos os ironistas. Durante uma fome cruel na Irlanda, ele propôs como solução, uma sátira brutal à Inglaterra: alimentar todos pela utilização de crianças de menos de sete anos. Com a maior seriedade possível, sem possibilitar ver, nas entrelinhas, a ironia mortal. Espera-se, com esta explicação, que ninguém pense, por aqui, que a proposta é verdadeira. Nem esculhambe a mãe de ninguém, por nada saber sobre o assunto.

Um exercício de primeira necessidade, eu recomendaria aos nordestinos mais civilizados, mormente os pernambucanos pensantes que estão numa luta feroz pelo soerguimento da imagem empreendedora do Leão do Norte, atualmente ameaçado de ficar castrado, banguela e sem rabo: leituras reflexivas sobre provincianismo. E mais: sobre a artificialidade do apenas progresso e sobre os arrotos grandiloquentes de um já-fui-bom-nisso que apenas inspiram lamúrias choramingueiras, sem nada de proveitoso.

No mais é continuar caminhando, buscando reerguer-se a cada amanhecer com a disposição de apanhar cada vez menos de manés e sacripantas, jamais abandonando a convicção do compositor Geraldo Vandré: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

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