JESUS DE RITINHA DE MIÚDO

Pela primeira vez nesses meus cinquenta e um ano de vida, eu não estou sentando ao lado de papai ante uma TV para acompanhar os principais jogos de uma Copa do Mundo de Futebol. Minhas obrigações não me permitiram – ainda – correr para o sofá de Dona Ritinha, lá no Acary do meu amor.

Não obstante a distância, fiz uma chamada de vídeo para papai após o jogo do Brasil contra os suíços, a fim de comemorar a nossa vitória. Ele ainda vestido com a camisa da Seleção, já não lembrava, no entanto, que acabara de assistir ao jogo. O alemão que vai derrotando-o lentamente faz um estrago pior que aqueles sete a um de dois mile e quatorze. O Alzheimer é uma falta desleal que nem o mais avançado VAR consegue reverter em favor de quem a sofre.

Bom, como os dias são de futebol, alegria do povo, eu vim aqui hoje foi deixar duas histórias interessantes.

Contaram-me que lá no começo do século passado, dias do Coronel José Bezerra “d’Aba da Serra” (1843-1926) como líder absoluto em Currais Novos, quando o coronelismo arbitrava e os coronéis decidiam até sobre o jogo da vida dos seus conterrâneos, criou-se um time de futebol por aquelas ribeiras. O nome da equipe certamente se perdeu no tempo. Mas não o fato que passarei a narrar.

Organizaram um jogo e convidaram especialmente o Coronel José Bezerra para assistir ao grande evento. A intenção era despertar no comandante político a mesma paixão pelo futebol alcançada Brasil afora e, assim, conseguir dele alguma ajuda para a manutenção da equipe.

Tudo arrumado, equipe visitante em campo, puseram em um lugar alto e de destaque uma cadeira confortável, à beira do campo de terra batida, e nela sentaram o homem. Falaram sobre o objetivo, explicando-lhe sobre o gol e as regras principais, duração da partida, o goleiro, os defensores de linha, os atacantes, o poder do árbitro etc.

O jogo seguiu sem a bola passar por entre os paus, encaminhando-se ao final sem gol, num empate que parecia não estimular a atenção do coronel. Porém, aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, o árbitro marcou um pênalti contra Currais Novos. Houve um verdadeiro alarido. A multidão gritava revoltada. “Por que o jogo está parado”, perguntou o coronel. Alguém lhe respondeu “foi pênalti”. E ele sem entender perguntou “o que é isso?”

Pediram silêncio e calmamente alguém lhe explicou: “Coronel, é um gol certo. Mas, contra Currais Novos!”

O coronel alisou a barba e decretou calmamente: “Então mande bater do outro lado.”

Quase um VAR que arruma a jogada e interfere no resultado do jogo.

O estádio de Currais Novos leva o seu nome.

Tempos depois, já nas terras da Fazenda Soledade, entre as cercas de José Braz Filho (1925-1996), bisneto do Coronel Zé Bezerra d’Aba da Serra, ajeitaram um terreno, jogaram a cal traçando linhas na terra, fincaram quatro madeiras no chão em dois pares, norte e sul, amarraram um travessão em cada par, e estava criado um campo de futebol, no lugar onde a vaquejada era de fato o esporte mais praticado poucos metros à frente.

Obra de dois dos três filhos machos de Zé Braz “Novo”, José Braz Neto (1953), o Dedé de Zé Braz, e Jarbas Braz (1956), o caçula de todos; um se aventurando na linha e o outro debaixo dos paus, no “Campo da Soledade”.

Conta-se que num domingo de clássico o time de Dedé de Zé Braz perdia pelo placar mais magro, e o sol já era um fiozinho de luz quase apagada, quando o árbitro recebeu a ordem “não acabe ainda”.

Descambava o segundo tempo para uma hora e quinze minutos, céu escuro, jogadores de ambas as equipes exaustos, quando houve um escanteio em favor do “time da Soledade”.

Batido na área adversária, novo escanteio se deu. O segundo seguido.

Bola levantada no tumulto outra vez, a zaga cortou jogando pela linha de fundo. O terceiro escanteio consecutivo.

Foi quando Dedé de Zé Braz correu atrás da bola e, segurando-a entre os espinhos das juremas atrás do campo, decretou a décima oitava regra do futebol:

– Três escanteios é pênalti.

Bateu, converteu e a partida terminou empatada.

Nem o emir do Catar tem tanto poder de mudar ou criar regras no futebol. Né não?

8 pensou em “VAR DE ANTIGAMENTE E REGRA NOVA

  1. JRM, eu fico numa tristeza danada com a situação de Miúdo, mas numa emoção maior ao lhe ver escrever sobre o assunto. “O alemão que vai derrotando-o lentamente faz um estrago pior que aqueles sete a um de dois mile e quatorze. O Alzheimer é uma falta desleal que nem o mais avançado VAR consegue reverter em favor de quem a sofre”. Há lutas inglórias. Daquelas cuja derrota é uma probabilidade certa para um dos envolvidos. Era para o alemão ter inventado a cerveja e pronto, mas … Eu passei anos vendo pessoas dizendo: “palavras cruzadas reduz a chance de Alzheimer”, ou seja, a mente em exercício, resolvendo desafios, afastaria a ameaça, mas vi um grande professor da universidade, um cara que abriu espaço para mim no ensino superior, ser diagnosticado com Alzheimer. Não bastasse, em setembro num aniversário de um professor amigo, eu soube que um grande matemático – foi meu professor, inclusive – estava com Alzheimer. Continuo fazendo minhas palavras cruzadas, continuo com meu devotamento à matemática, mas hoje me sinto tão provável quanto qualquer um.

    • Assuero, desde o primeiro diagnóstico que eu sabia exatamente o que me esperava no futuro de papai.
      Logo escolhi desde então viver os dias com lirismo.
      Não me importa se ele vai esquecendo de mim. Pois eu sempre me lembro de quem ele é.
      E assim digo ruminando a vida.

  2. Guardo nas minhas entranhas mentais muita curiosidade sobre esse coronel, essa foto de barba longa lembrando matusalém, esse olhar austero me acompanha desde que me entendo de gente. As suas histórias contadas e recontadas tantas vezes em livros, contos e à mesa pelo meu avô, neto dele. Falava com respeito e admiração sobre esse sobrinho do padre. Deve ter sido muito bom tê-lo como líder, pena que aqueles valores não farão o percurso da volta. O episódio do jogo em Currais Novos é bem pouco conhecido, minha mãe vai vibrar com seu texto, enviarei a ela. Obrigada primo por tudo o que escreve, jure que não irá parar, certo?

  3. Jesus de Ritinha, falar no Alzheimer, dias atrás me encontrei com Évio, primo de Tejo, o grande Tejo, na Conde da Boa Vista, e ele me confessou que passou mais de seis anos sem visitar o autor de Zé Limeira – O Poeta do Absurdo, com medo de topar com aquela situação desagradável em que o Homem vivia isolado como se tivesse no porão da Idade Média, qual um vime sem mais utilidade.

    Disse-me Évio: até hoje guardo dentro de mim o Tejo alegre, brincalhão, cheio de presepada. Não teria coragem de vê-lo no quarto escuro, isolado, esquecido do mundo e o mundo esquecido dele.

    Tirou o lenço do bolso, enxugou as lágrimas, me pediu desculpas e se foi-se com um abraço, que repasso ao estimado Poeta.

    Já eu sou diferente: encaro a situação como algo absolutamente normal. Para mim o maior bem ao ser é respeitá-lo e amá-lo enquanto vida tiver.

    Ao seu pai um grande xêro na testa!

    • Cícero, a vida é para ser encarada de frente. Olho no olho.
      Evitar a dor não mede a intensidade do prazer.
      Obrigado por sua participação.

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