MAGNOVALDO BEZERRA - EXCRESCÊNCIAS

Uma de minhas especialidades é produzir diarréias comportamentais em terras estrangeiras.

Explico.

Em um dia perdido nas brumas do tempo, no começo do ano de 2005, fui trabalhar por uma semana em uma empresa na cidade de Ashby-de-la-Zouch, perto de Birmingham, na Inglaterra.

Meu voo teve Londres como destino, e um trem me levou até Birmingham, aonde um colega inglês iria encontrar-se comigo no hotel na segunda-feira cedo e de lá rumaríamos de carro para Ashby-de-la-Zouch, situada no coração da região que testemunhou as estripulias de Robin Hood.

Na saída do hotel meu colega, à vista de meu comentário sobre dirigir pela mão esquerda, tentou convencer-me de que isso era muito fácil, sendo apenas uma questão de prática. E para provar seu ponto de vista ofereceu-me a direção do carro. Eis-me, portanto, sentado no banco direito de um velho Jaguar, dirigindo cuidadosamente pelo que chamaríamos aqui de contramão!

E as coisas estavam indo bem, até que chegamos na rotatória “Bordesley Circus”.

Aí veio a zorbada!

Instintivamente virei para a direita na entrada da rotatória, quando o certo era virar à esquerda. Imediatamente os carros que estavam vindo na minha direção pararam. Também parei, felizmente, e fiquei totalmente abestalhado sem saber o que fazer, quando notei um policial enorme, com aquele chapéu de pele de urso na cabeça, vindo calmamente na minha direção. Já me aperreei todo, imaginando como seriam as acomodações carcerárias nas catacumbas inglesas e a comida que teria que rangar.

E o trânsito inteiro na rotatória ficou completamente parado. Nenhuma buzinada, nenhum xingamento. Até lembrava o pacato e tranquilo trânsito da cidade do Rio de Janeiro nas imediações do Maracanã pouco antes do jogo Vasco x Flamengo.

E aí o policial, um guapo e bem saradão mancebo, potencial provocador de profundos e doces suspiros na alma e nas partes pudendas da Benedita da Silva, entabulou o seguinte diálogo com este sacudido filho de potiguares:

– Bom dia, cavalheiro! Posso tomar a liberdade de imaginar que o senhor é do Continente?

Para os ingleses todos os outros são do Continente!

– Sim”, disse eu. “Só que de um Continente bem mais longínquo. Sou do Brasil.

– Ah, então está explicada a razão pela qual o senhor fez uma manobra tão errada. Permita-me perguntar-lhe, por favor, para onde o senhor pretende ir?

– Quero pegar a estrada A-45 e daí alcançar a freeway M6 para Ashby-de-la-Zouch.

– Nisto o senhor está correto. É a terceira saída aqui da rotatória. Como o senhor já entrou na direção errada, e vai dar muito trabalho fazer a correção aqui na pista com todos esses veículos parados, vou avisar pelo rádio ao meu colega do outro lado para segurar o trânsito e assim o senhor poderá então continuar este pequeno trecho na contramão, pelo acostamento, alcançar a A-45 e entrar no sentido correto de direção. Mas, por favor, evite dirigir da forma errada como se dirige no Brasil, pois o senhor poderá causar um sério acidente. Seja bem-vindo à Inglaterra e tenha um bom dia!

O amável representante da lei não me pediu nenhum documento nem me aplicou nenhuma multa. Não se ouviu nenhuma buzina. O guarda do outro lado estava segurando o trânsito e me dirigiu um amigável aceno quando passei por ele. Senti-me como um perú assado na mesa de jantar do Natal: pelado, sem a cabeça, com as pernas abertas e o rabo cheio de farofa, exposto e olhado com gula para ser devorado por todos os comensais. Atravessei a rotatória sob o olhar frio dos súditos de Sua Majestade britânica.

Assim que cheguei na A-45 parei o velho Jaguar no acostamento e renunciei solenemente à vontade de dirigir naquele país. Foi uma acertada decisão. A entrada para rodovia M6 nos arredores de Birmingham é quase tão complicada quanto o entroncamento entre a BR-226 e a RN-118 em Jucurutu, no Rio Grande do Norte.

9 pensou em “UMA ZORBADA BRITÂNICA

  1. Quando estive na Grã Bretanha pela primeira vez, décadas atrás, eles iam ainda mais longe: não diziam “o continente”, diziam “a Europa”, como se eles fossem alguma coisa que não a Europa.
    Data vênia, eles têm muita consciência em relação aos “europeus” que os visitam: em cada faixa de pedestre sempre está escrito “look right” ou “look left” para um “europeu” desavisado não morrer atropelado.

  2. A entrada para rodovia M6 é quase tão complicada quanto o entroncamento entre a BR-226 e a RN-118 em Jucurutu, no Rio Grande do Norte. A diferença é a educação dos guardas que existem lá e a dos que deveriam existir por aqui. Imagino também uma outra diferença: o piso em que gastamos nossos pneus …

    • Xico, é verdade. Mas não se avexe não: os guardas mexicanos são bem piores.
      Um grande abraço, tenha um excelente final de semana.
      Magnovaldo

  3. Magnovaldo, eu tenho amigo que também pegou uma contramão em Londres e foi atendido, atenciosamente, por guarda que o socorreu. Sem buzinada, sem grito e sem multas. Apenas orientação, trânsito parado pra ele fazer o correto

    • Pois é, Mauricio, eu sempre digo que o que faz um país desenvolvido não é o tamanho do viaduto ou a altura dos prédios, mas o desenvolvimento humano e material de seu povo. A Polícia é composta de cidadãos e, portanto, refletem também os valores deles.
      Um abraço,
      Magnovaldo

  4. Magnovaldo Santos,

    Primeira impressão que se tem ao ler cuidadosamente sua magnífica “zorbada britânica” é que seu mui amigo britânico, sem querer, lhe pregou uma sinuca de bico. Nem que Robin Hood tivesse de mutuca numa daquelas esquinas para lhe tirar da enrascada, conseguiria o feito, pois ele estava em terra pátria, e não estava em missão de defender os oprimidos das contra mãos do trânsito.

    Quem lhe salvou foi o guarda saradão, com um bundão menor do que o da Benedita da Silva. Só o bundão mesmo, porque a educação e a feiúra, certamente iriam para a lata do lixo, porque, além de está dirigindo errado no trânsito, era de raça branca.

    Mas o mais arretado mesmo foi o comportamento dos motoristas que ficaram em seus carros aguardando a solução, o desfecho do “equívoco.”

    Fosse aqui, e principalmente na saída do bloco carnavalesco Papagaio na Vara do Recife, mesmo com Habeas Corpus na mão com autorização para pular, estravasar nas ruas, o pau comeria no centro porque a balbúrdia está na desordem cultural.

    Mais uma magnífica crônica, Magnovaldo Santos, digna de louvação.

    Ótimo final de semana ao querido amigo, e obrigado pela diversão literária.

    Desculpe-me o atraso do comentário. É que o safado do “SARS-CoV-2 Ag Antígeno me deixou reagente. Mas nada grave.

    • Ciço, meu bom compadre:
      O guarda realmente impressionava. O cabra era mesmo grandão. Acho que também o Eduardo Leite ficaria deleitado com a figura.
      Cuide-se dessa porcaria do bicho chinês. Sua saúde é o bem mais importante que você tem.
      Um abraço, bom final de semana.
      Magnovaldo

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