JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

Sic transit gloria mundi (assim passa a glória deste mundo). Os papas pronunciam a frase três vezes, na cerimônia de posse, para lembrar a miséria que há na vaidade das pompas terrestres. Não por acaso, para os gregos, ídolo é o mesmo que fantasma, como que reconhecendo a dimensão especial dos papéis que lhe são reservados. Tanto que Scott Fitzgerald dizia (em O Grande Gatsby) “mostre-me um herói e escreverei uma tragédia”. E segue a vida. E vem a morte. Não há como alterar esse roteiro.

Momento mais evidente dessa finitude, e também do prazer intenso de viver, para mim é quando perco alguma pessoa próxima. E, de logo, tomo emprestado frase atribuída a Chopin, “não me compreendam tão depressa”. Porque essa aparente contradição entre sentimento de perda, e alegria indescritível, só pode ser explicada em função do cenário em que tudo isso ocorre, a alameda que vai da pequena capela do Cemitério de Santo Amaro (Recife) até o portão de entrada que lhe fica em frente. Depois de cada um desses enterros, invariavelmente, me dirijo a essa capelinha. E, dali, “vou por onde me levam meus próprios passos”, em palavras de José Régio (Cântico Negro), até o portão e depois à rua. Um caminhar lento, e em tão profunda solidão, que sou capaz de ouvir meus próprios passos, como se fossem de outra pessoa. E, em certo sentido, são mesmo.

Capela e portão convertidos em símbolos. Com diferenças grandes. A porta da capela está usualmente fechada; e o portão, aberto sempre. Atrás fica um homem morto, pregado na cruz; em frente, pessoas de carne e osso, vivendo suas bem-aventuranças e seus martírios. Atrás, apenas uma imagem de pureza e perfeição; em frente, vendedores de amendoim, motoristas de táxi, curiosos, pedintes, o circo da realidade. Atrás, a inscrição Jesus Nazarenus Rex Judaeorum; à frente, no portão, inscrição nenhuma. Mas quando passo por ele sempre lembro, por alguma razão imprecisa, da porta do inferno na divina Comédia, de Dante, onde se lê “deixai toda esperança, vós que entrais”.

Nessa caminhada, de um lado e de outro, uma legião de mortos que um dia tiveram as mesmas esperanças e desalentos que hoje temos. Mulheres e homens como nós, velhos e moços, gordos e magricelos, ricos e desvalidos, brancos, negros, pardos, mulatos. Todos democraticamente enterrados, lado a lado. Lembrando aos que passamos, com seu silêncio impotente, que o destino do homem é a igualdade. É o esquecimento. É o pó.

Olhando esses desconhecidos, sempre com muita pena (eu que nem os conhecia), fica para mim claro que o homem não nasce quando nasce, nem morre quando morre. Ele começa a nascer muito antes de se converter em feto, já traçando raízes nos locais onde andará, nos amigos que terá, quase como se seu itinerário já estivesse previamente traçado. Assim é com quase todos. E ele morre, no enterro, apenas sua primeira morte; para depois ir morrendo outras mortes, devagar, primeiro na memória dos amigos, depois em suas ideias, até que um dia desaparece de todas as lembranças para cumprir seu destino de ser, completamente, só nada.

O amigo Pessoa disse (em Sá Carneiro) “Nunca supus que isto que chamam morte/ Tivesse qualquer espécie de sentido”. E essa morte é sempre dura. Sinto isso agora, na carne, por terem sido tantos, em volta, e em tão pouco tempo. Menos de um ano. Uma sobrinha, Juliana. Minha mãe (ah!, minha mãe). Dona do Carmo (mãe de Lectícia). E agora, nessa terça, nossa irmã Patrícia. De Covid. Mesmo já tendo tomado a segunda dose da Coronavac quase 50 dias antes. Mulher de Pedro Arruda. E mãe de Gustavo (com Renatinha) e Bruna (com Alonso). Éramos 6, como no título do romance de Maria José Dupré. Hoje, somos apenas 5, a melhor parte de nós se foi. Choro por ela e por todos nós.

12 pensou em “UMA PROCISSÃO DE MORTOS

  1. Que texto profundo e tocante. Para quem tem um mínimo de sensibilidade, não consegue segurar a emoção e as lágrimas e fazer uma reflexão. Obrigado.

  2. Pêsames sentidos, Dr. Paulo. Não o conheço pessoalmente, apenas através de seus artigos (sempre muito bons) nesta gazeta escrota (como não se cansa de dizer nosso amigo Luiz Berto). Mas este seu artigo emocionou-me. Acho que não estou sozinho. Qualquer ´pessoa, com um mínimo de sensibilidade, pode aquilatar o tamanho de sua perda e entristecer-se com ela, como se sua fôsse. A morte sempre nos leva à constatação de que não somos nada e que nosso destino sempre será o pó. Mesmo que tenhamos tido, em vida, muita glória, ou não.

  3. Dr.º José Paulo,

    Seu texto, profundo, sincero, coerente e comovente, é uma ode de amor aos que se foram sem poderem dizer “adeus e até aquele encontro que combinamos debaixo da saudade.”

    Não acredito na vida pós morte. Sempre pensei que devemos amar e solidarizar enquanto vida tiver, porque da vida não se leva nada, somente as boas lembranças que deixamos, e mesmo assim elas se diluem com o tempo.

    É tão óbvia essa assertiva do ser que parte a gente só se lembra da obra que ele deixou; raramente dele. Percebi essa obviedade depois de ter assistido por duas vezes, eu e meu filho, à “Era Uma Vez No Oeste.” O filme nos encanta, SEMPRE, mas a gente não se lembra do diretor que criou aquela obra-prima.

    A Natureza é sábia!

    Meus pêsames, Amigo do Coração.

  4. Meus sentimentos, mestre. Infelizmente no Brasil buscam-se culpados, não soluções. A gente fica nessa contabilidade tétrica, impotente.

  5. Meus sentimentos pela perda de Patrícia. Sigamos onde nos levam nossos próprios passos, como dizia José Régio. É o destino de todos nós.

  6. Já enviei minha solidariedade fraternal ao casal que muito estimo. O ZéPaulinho reflete a dor de milhões de terrestres que perderam seus entes queridos. Dor ampliada diante das irresponsabilidades praticadas por dirigentes negativistas e nada solidários.

  7. Como é que pode a realidade nos emocionar tanto ? Obrigado pelo belíssimo texto, meus sentimentos pela partida de sua irmã Patrícia. .

  8. Minha solidariedade, Dr. José Paulo Cavalcanti!
    Como dizia Vinícius de Moraes, “a morte é a angústia de quem vive” (Soneto de Fidelidade).
    Conviver com a ausência permanente e a saudade de pessoas queridas, é doloroso, mesmo com a certeza de que um dia, a morte, também, nos atingirá.

    Silêncio e Paz, é o que podemos desejar aos nossos mortos queridos.

  9. Dr. Paulo, quando a maior das dores nos toca, também morremos um pouco. O torpor que de nós se apodera é imensurável, a sensação de escuridão deflagrada parece ser eterna.

    Inobstante vossa descrença num ordenador supremo que põe ordem no caos universal, lhe rendo minhas condolências, rogando que o braço forte do Onipotente, a acolha e guarde em seu seio.. ,

  10. Prezado Dr. José Paulo,

    Sou seu admirador desde sempre, muito mais agora após ler este tocante desabafo, onde o senhor expõe seus profundos sentimentos e pensamentos diante das sucessivas perdas que vem sofrendo.

    Estou em viagem a Teresina. Acabei de chegar. Vim especialmente para assistir à missa de 7o dia de um amigo muito querido e que foi um segundo pai para mim. Também faleceu de Covid, mesmo tendo sido vacinado duas vezes.

    Não sei quanto ao senhor mas, de minha parte, sinto ânsias de vômito ao ver algumas pessoas insistirem em politicagem imbecis e rasteiras, mesmo num momento em que o que menos nos interessa é ouvir este tipo de babaquice.

    Ao contrário de alguns amigos, creio profundamente nas vidas sucessivas e na existência de um ordenador supremo. Rogo-lhe que alivie a sua dor (e a minha), propiciando que nos acolha em seu seio quando chegar a nossa hora.

    Como Santo Agostinho, “Considero muito melhor uma dúvida sincera (como a sua), que uma fé hipócrita! (e politiqueira)

  11. Mestre José Paulo. Perdi 3 irmãos nos últimos anos. Éramos 13 e agora somos apenas 5. Bem sei da dor que sentimos com estas perdas do convívio fraterno. Suas reflexões me ajudam a aliviar a dor sentida. Receba minha solidariedade nesse triste momento

  12. É um momento para o qual nunca estamos preparados, caro amigo José Paulo.
    Toda a nossa formação filosófica, todas as nossas convicções acerca da vida após a morte, tudo é insatisfatório para encarar o momento em que alguém querido nos deixa por esse caminho.
    Resta-nos a aceitação e a esperança que o tempo amenize a dor, sem nos tirar as boas lembranças.
    Um grande e fraterno abraço, caro amigo.

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