PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, Assaré-CE (1909-2002)

ROGANDO PRAGAS – Patativa do Assaré

Dizia o velho Agostinho
que este mundo é cheio de arte
e se encontra em toda parte
pedaços de mau caminho
um pessoal meu vizinho,
sem amor e sem moral,
atrás de fazer o mal,
para feijão cozinhar,
começaram a roubar
as varas do meu quintal.

Toda noite e todo dia
iam as varas roubando
e eu já não suportando
aquela grande anarquia
pois quem era eu não sabia
pra poder denunciar,
com aquele grande azar
vivia de saco cheio,
até que inventei um meio
pra do roubo me livrar.

Eu dei a cada freguês,
com humildade o perdão
e lancei a maldição
em quem roubasse outra vez
e com muita atividez
na minha pena peguei,
umas estrofes rimei
sobre as linhas de uns papéis
rogando pragas cruéis
e lá na cerca botei.

Deus permita que o safado,
sem vergonha ignorante,
que roubar de agora em diante
madeira do meu cercado,
se veja um dia atacado
com um cancro no toitiço,
toda espécie de feitiço
e em cima do mesmo caia
e em cada dedo lhe saia
um olho de panariço.

O santo Deus de Moisés
lhe mande bexiga roxa
saia carbúnculo na coxa,
cravo na sola dos pés,
sofra os incômodos cruéis
da doença hidropisia
icterícia e anemia
tuberculose e diarreia
e a lepra da morfeia
seja a sua companhia.

Deus lhe dê reumatismo
com a sinusite crônica
a sezão, o impaludismo
e os ataques da bubônica,
além de quatro picadas
de quatro cobras danadas
cada qual a mais cruel
de veneno fatal
a urutu, a coral
jararaca e cascavel.

Eu já perdoei bastante
o que puderam roubar,
para ninguém censurar
que sou muito extravagante
mas de agora por diante,
ninguém será perdoado,
Deus queira que cão danado
um dia morda na cara
de quem roubar uma vara
na cerca do meu cercado.

E o que não ouvir o rogo
que faço neste momento
tomara que tenha aumento
como correia ao fogo,
dinheiro em mesa de jogo
e cana no tabuleiro
e no dia derradeiro,
a vela pra sua mão,
seja um pequeno tição
de vara de marmeleiro.

* * *

A grande dupla de poetas repentistas Geraldo Amâncio e Ivanildo Vilanova

* * *

O SERTÃO EM CARNE E ALMA

Ivanildo Vilanova

Uma tarde de inverno no sertão
É um grande espetáculo pra quem passa
Serra envolta nos tufos de fumaça
Água forte rolando pelo chão
O estrondo da máquina do trovão
Entre as nuvens do céu arroxeado
O raio caindo assombra o gado
Atolado por entre as lamas pretas
Rosna o vento fazendo pirueta
Nas espigas de milho do roçado.

Geraldo Amâncio

No sertão quando o chão está molhado
Corre água nas veias de um regato
Pula a onça da furna corre o gato
Um cavalo galopa estropiado
Um garrote atravessa o rio de nado
Uma cobra se acua com um cancão
A cantiga saudosa do carão
Faz lembrar o lugar que fui nascido
Entre as telas do filme colorido
Que Deus fez pra o cinema do sertão.

Ivanildo Vilanova

Quando é festa animada de São João
Nunca falta canjica nem sequilho
Pamonha, mingau, bolo de milho
Buscapé, estrelinha e foguetão
Cantoria, namoro, discussão
Quebra pote, corrida de argolinha
Padrinho de fogueira e a madrinha
Casamento matuto, samba e jogo
E a cabocla com o rosto cor de fogo
Tocaiando as panelas da cozinha.

Geraldo Amâncio

No sertão quando é bem de manhãzinha
Sertanejo se acorda na palhoça
Chama o filho mais velho sai pra roça
A mulher toma conta da cozinha
Faz o fogo de lenha e encaminha
Um guisado, angu quente ou fava pura
E depois de fazer essa mistura
Sai faceira igualmente uma condessa
Com um quibumbo de barro na cabeça
E vai levar aos heróis da agricultura.

Ivanildo Vilanova

No sertão a tarefa é muito dura
Mas se tem a colheita, a criação
Ferramenta da roça, produção
Uma rede, um Grajau de rapadura
Uma dez polegadas na cintura
A viola, o baú, uma cabaça
A tarrafa e o litro de cachaça
Mescla azul, botinão, chapéu baeta
Fumo grosso, espingarda de espoleta
E um cachorro mestiço bom de caça.

Geraldo Amâncio

A riqueza do pobre nunca passa
De um pote que mata sua sede
Uma enxada num canto de parede
Dois chapéus, um de palha, outro de massa
Um cambito tingido de fumaça
Uns dez filhos que tem sua aparência
Uma esposa que é mãe da paciência
Se chorar ou sofrer não se maldiz
E ele às vezes é muito mais feliz
Do que um rico ladrão de consciência.

Ivanildo Vilanova

É preciso ter muita paciência
Guardar milho num quarto empaiolado
Sustentar criação com alastrado
Numa terra que tem pouca assistência
Trabalhar no serviço de emergência
Esperando o inverno que não vem
Insistir, crer em Deus e tratar bem
Manter sempre a família tão unida
Do chão seco arrancar o pão da vida
Sertanejo faz isso e mais ninguém.

Geraldo Amâncio

No sertão quando o inverno não vem
Só se encontra desolação e mágoa
No riacho não vê-se um pingo d’água
Sopra um vento assombroso do além
Seca o tronco robusto do muquém
Cai a folha mais grossa, murcha a fina
Toda árvore murchece, se inclina
No calor do sol quente verga as costas
Parecendo um fantasma de mãos postas
No altar de uma seca nordestina.

Ivanildo Vilanova

No verão quando o sol se descortina
Se escuta o zumbido das abelhas
O balir melancólico das ovelhas
O dueto dos pássaros da matina
O bonito alazão sacode a crina
O vaqueiro aboiando chama a rês
Os cancões gritam todos de uma vez
Acusando a presença da serpente
No concerto de música diferente
Da orquestra sinfônica que Deus fez.

Geraldo Amâncio

E o traje do homem camponês
Quando sai para a festa ou para feira
É a calça de mescla, uma peixeira
Um paletó listrado de xadrez
Umas botas do couro de uma rês
Para dançar forró enquanto é moço
Um chapéu aba larga grande e grosso
Com a pena qualquer de um passarinho
E a medalha fiel do meu padrinho
Com um rosário enfiado no pescoço.

Ivanildo Vilanova

Falar mal do sertão hoje eu não ouço
Não se entrega ao cansaço ou enxaqueca
Um herói pelejando contra a seca
Contra a cheia combate sem sobrosso
Respeita a moral de velho ou moço
Também quer vê a sua respeitada
Sem Brasil a América é derrotada
Com Brasil a América vale mil
Sem Nordeste o Brasil não é Brasil
E sem Sertão o Nordeste não é nada.

Geraldo Amâncio

No sertão quando rompe a alvorada
No oitão do terreiro um frango pia
Uma cobra valente engole jia
Na floresta desperta a passarada
Canta uma canção tão afinada
Que parece uma orquestra universal
Um peru dá três voltas no quintal
Um cabrito na cabra puxa os seios
E o vaqueiro esvazio os peitos cheios
De uma vaca leiteira no curral.

Ivanildo Vilanova

Numa sombra que dá no mangueiral
O cachorro brigando com o teiú
A caçada de peba e de tatu
A novena, uma noite de natal
A carne de sol com pouco sal
Cantoria louvada com bandeja
No pilão duas moças na peleja
Uma arranca de inhame e de maniva
Isso aí é a cópia pura e viva
Da mais bela paisagem sertaneja.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *