PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

PELEJA DE CEGO ADERALDO COM ZÉ PRETINHO – Firmino Teixeira do Amaral

Apreciem meus leitores
uma forte discussão
que tive com Zé Pretinho
um cantador do sertão
o qual no tanger do verso
vencia qualquer questão

Um dia determinei
a sair do Quixadá
uma das belas cidades
do Estado do Ceará
fui até o Piauí
ver os cantores de lá

Hospedei-me em Pimenteira
depois em Alagoinha
cantei no Campo Maior
no Angico e na Baixinha
de lá tive um convite
para cantar na Varzinha

Quando cheguei na Varzinha
foi de manhã bem cedinho
então o dono da casa
me perguntou sem carinho:
cego, você não tem medo
da fama do Zé Pretinho?

Eu lhe disse: não senhor
mas da verdade eu não zombo
mande chamar esse preto
qu`eu quero dar-lhe um tombo
ele vindo, um de nós dois,
hoje há de arder o lombo

O dono da casa disse:
Zé Preto pelo comum
dá em dez ou doze cegos
quanto mais sendo só um;
mandou um macumanzeiro
chamar José do Tucum

Chamou um dos filhos e disse:
meu filho, você vá já
dizer a José Pretinho
que desculpe eu não ir lá
e ele como sem falta
à noite venha por cá

Em casa do tal Pretinho
foi chegando o portador
foi dizendo: lá em casa
tem um cego cantador
o meu pai manda dizer
que vá tirar-lhe o calor

Zé Pretinho respondeu:
bom amigo é quem avisa
menino, dizei ao cego
que vá tirando a camisa
mande benzer logo o lombo
que eu vou dar-lhe uma pisa

Tudo zombava de mim
eu ainda não sabia
que o tal José Pretinho
vinha para a cantoria
às cinco horas da tarde
chegou a cavalaria

O preto vinha na frente
todo vestido de branco
seu cavalo encapotado
com um passo muito franco
riscaram de uma só vez
todos no primeiro arranco

Saudaram o dono da casa
todos com muita alegria
o velho bem satisfeito
folgava alegre e sorria
vou dizer o nome do povo
que veio pra cantoria

Vieram o Capitão Duda
Tonheiro e Pedro Galvão
Augusto Antônio Feitosa
Francisco Manoel Simão
senhor José Carpinteiro
Francisco e Pedro Aragão

O José da Cabeceira
e seu Manoel Casado
Chico Lopes, Pedro Rosa
e Manoel Bronzeado
Antônio Lopes de Aquino
e um tal de “Pé Furado”

José Antônio de Andrade
Samuel e Jeremias
senhor Manoel Tomás
Manduca João de Ananias
e veio o vigário velho
cura de três freguesias

Foi dona Meridiana
do Grêmio das Professoras
essa levou duas filhas
bonitas e encantadoras
essas eram na Igreja
as mais exímias cantoras

Foi também Pedro Martins
Alfredo e José Raimundo
senhor Francisco Palmeira
e João Sampaio Segundo
e um grupo de rapazes
do batalhão vagabundo

Levaram o negro pra sala
e depois para a cozinha
lhe ofereceram um jantar
de doce, queijo e galinha
para mim veio um café
com uma magra bolachinha

Depois trouxeram o negro
e colocaram no salão
assentado num sofá
com a viola na mão
junto a uma escarradeira
para não cuspir no chão

Ele tirou a viola
dum saco novo de chita
e cuja viola estava
toda enfeitada de fita
ouvi as moças dizendo:
grande viola bonita!

Então para me sentar
botaram um pobre caixão
já velho, desmantelado
desses que vêm com sabão
eu sentei, ele envergou
e me deu um beliscão

Eu tirei a rabequinha
dum pobre saco de meia
já meio desconfiado
por estar em terra alheia
ouvi as moças dizendo:
meu Deus, que rabeca feia!

Um disse a Zé Pretinho:
a roupa do cego é suja
bote três guardas na porta
para que ele não fuja
cego feio assim de óculos
só parece uma coruja

Dissera o capitão Duda
como homem mui sensato:
vamos fazer uma bolsa
botem o dinheiro no prato
que é mesmo que botar
manteiga em venta de gato

Disse mais: eu quero ver
Pretinho espalhar os pés
e para os dois cantadores
tirei setenta mil réis
mas vou inteirar oitenta
da minha parte dou dez

Me disse o capitão Duda:
cego, você não estranha
este dinheiro do prato
eu vou lhe dizer quem ganha
pertence ao vencedor
nada leva quem apanha

Nisso as moças disseram:
já tem oitenta mil réis
porque o capitão Duda
da parte dele deu dez
se encostaram a Zé Pretinho
e botaram mais três anéis

Então disse Zé Pretinho:
de perder não tenho medo
este cego logo apanha
falo sem pedir segredo
tendo isto como certo
botou os anéis no dedo

Afinemos os instrumentos
entremos em discussão
o meu guia disse a mim
o negro parece o cão
tenha cuidado com ele
quando entrar em questão

Eu lhe disse seu José
sei que o senhor tem ciência
parece que és dotado
da Divina Providência
vamos saudar o povo
com a justa excelência

P – Sai daí, cego amarelo
cor de couro de toucinho
um cego da tua forma
chama-se abusa vizinho
aonde eu botar os pés
cego não bota o focinho

C – Já vi que seu Zé Pretinho
é um homem sem ação
como se maltrata outro
sem haver alteração
eu pensava que o senhor
possuísse educação

P – Esse cego bruto hoje
apanha que foca roxo
cara de pão de cruzado
testa de carneiro mocho
cego, tu és um bichinho
que quando come vira o coxo

C – Seu José, o seu cantar
merece ricos fulgores
merece ganhar na sala
rosas e trovas de amores
mais tarde as moças lhe dão
bonitas palmas de flores

P – Cego, eu creio que tu és
da terra do sapo sunga
cego não adora Deus
o Deus de cego é calunga
aonde os homens conversam
o cego chega e resmunga

C – Zé Preto não me aborreça
com o teu cantar ruim
o homem que canta bem
não trabalha em verso assim
tirando as faltas que tem
botando em cima de mim

P – Cala-te, cego ruim
cego aqui não faz figura
cego quando abre a boca
é uma mentira pura
o cego quanto mais mente
inda mais sustenta e jura

C – Este negro foi cativo
por isso é tão positivo
quer ser na sala de branco
exagerado e ativo
negro de canela fino
todo ele foi cativo

P – Dou-te uma surra
de cipó e urtiga
te furo a barriga
mais tarde tu urra
hoje o cego esturra
pedindo socorro:
sai dizendo: eu morro
meu Deus, que fadiga!
por uma intriga
eu de medo corro

C – Se eu der um tapa
num nego de fama
ele come lama
dizendo que é papa
eu rompo-lhe o mapa
lhe rasgo de espora
o negro hoje negro chora
com febre e com íngua
eu deixo-lhe a língua
com um palmo de fora

P – No sertão eu peguei
um cego malcriado
danei-lhe o machado
caiu, eu sangrei
o coro eu tirei
em regra de escala
espichei numa sala
puxei para um beco
depois dele seco
fiz mais duma mala

C – Negro, és monturo
molambo rasgado
cachimbo apagado
recanto de muro
negro sem futuro
perna de tição
boca de purrão
beiço de gamela
venta de moela
moleque ladrão

P – Vejo a cousa ruim
o cego está danado
cante moderado
que não quero assim;
olhe para mim
que sou verdadeiro
sou bom companheiro
canto sem maldade;
eu quero a metade
cego, do dinheiro

C – Nem que o negro seque
a engolideira
peça a noite inteira
qu`eu não lhe abreque
mas este moleque
hoje dá pinote
boca de bispote
venta de boeiro
tu queres dinheiro
eu dou-te chicote

P – Cante mais moderno
Perfeito e bonito
como tenho escrito
cá no meu caderno
sou seu subalterno
embora estranho
creio que apanho
e não dou um caldo
lhe peço, Aderaldo
reparta o ganho

C – Negro é raiz
que apodreceu
casco de judeu
moleque infeliz
vai pra teus país
senão eu te surro
dou-te até de murro
te tiro o regalo
cara de cavalo
cabeça de burro

P – Fale de outro jeito
com melhor agrado
seja delicado
cante mais perfeito
olhe, eu não aceito
tanto desespero
cante mais maneiro
com verso capaz
façamos e paz
e reparta o dinheiro

C – Negro careteiro
eu rasgo-te a giba
cara de guariba
pajé feiticeiro
queres dinheiro
barriga de angu
barba de quandu
camisa de saia
te deixo na praia
escovando urubu

P – Eu vou mudar a toada
pra uma que mete medo
nunca encontrei contador
que desmanchasse esse enredo
é 1 dedo, é 1 dado, é um dia
é um dia, é um dado, é 1 dedo

C – Zé Preto, este teu enredo
te serve de zombaria
tu hoje cegas de raiva
o diabo será teu guia;
é um dia, é um dado, é 1 dedo
é 1 dedo, é 1 dado, é um dia

P – Cego, respondeste bem
como tivesse estudado
eu também da minha parte
canto verso aprumado;
é 1 dado, é 1 dedo, é 1 dia
é 1 dia, é 1 dedo, é 1 dado

C – Vamos lá, José Pretinho
que eu já perdi o medo
sou bravo como um leão
sou forte como penedo
é 1 dedo, é 1 dia, é 1 dado
é 1 dado, é 1 dia, é 1 dedo

P – Cego, agora puxa uma
das tuas belas toadas
pra ver se estas moças
dão algumas gargalhadas
quase todo povo ri
só as moças estão caladas

C – Amigo José Pretinho
eu não sei o que será
de você no fim da luta
porque vencido já está;
quem a paca cara compra
a paca cara pagará

P – Cego, estou apertado
que só um pinto no ovo
estás cantando aprumado
e satisfazendo ao povo
este seu tema de paca
por favor diga de novo

C – Disse uma e digo dez
no cantar não tenho pompa
presentemente não acho
quem o meu mapa rompa;
paca cara pagará
quem a paca cara compra

P – Cego, teu peito é de aço
foi bem ferreiro que fez
pensei que o cego não tinha
no verso tal rapidez
cego, se não for massada
repita a paca outra vez

C – Arre com tanta pergunta
deste negro capivara
não há quem cuspa pra cima
que não lhe caia na cara
quem a paca cara compra
pagará a paca cara

P – Agora, cego, me ouça
cantarei a paca, já
tema assim é um borrego
no bico dum “carcará”
quem a cara cara compra
caca caca cacará

Houve um trovão de risadas
pelo verso do Pretinho
o capitão Duda disse:
arreda pra lá, negrinho
vai descansar teu juízo
que o cego canta sozinho

Ficou vaiado o Pretinho
aí eu lhe disse: me ouça
José, quem canta comigo
pega devagar na louça
agora o amigo entregue
o anel de cada moça

Desculpe, José Pretinho
se não cantei a seu gosto
negro não tem pé, tem gancho
não tem cara, tem é rosto
negro na sala de branco
só serve pra dar desgosto

Quando eu fiz estes versos
com a minha rabequinha
procurei o negro na sala
já estava na cozinha
de volta queria entrar
na porta da camarinha.

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