DEU NO JORNAL

Roberto Motta

Você recostou a cabeça na areia em busca de um pouco de sossego. Mas o vendedor chega bem perto e berra: “Heineken! Corona!”

Todo mundo grita no Brasil. O anúncio dos voos no aeroporto é feito aos berros. Nas praias do Rio, o método mais usado para anunciar os produtos é o grito. Quanto mais alto, melhor.

Você recostou a cabeça na areia em busca de um pouco de sossego. Mas o vendedor chega bem perto e berra: “Heineken! Corona!”. O grupo de pessoas ao seu lado, espalhado entre cadeiras e barracas, conversa gritando uns com os outros. Um vendedor acredita ter desenvolvido uma técnica de marketing infalível. Ele para seu carrinho – que tem um panelão de água fervente – no meio da areia. Depois olha em volta com uma expressão desaforada e grita: “Olha a p*rra do milho! Olha a p*rra do milho!”.

Juro.

Outro vendedor atravessa a areia gemendo a frase “olha o árabe” no tom de quem está sendo torturado, em um volume insuportável. Dá vontade de comprar o estoque todo só para fazê-lo parar.

Quase todos os barraqueiros, e a maioria dos grupos de banhistas, têm uma caixa de som reproduzindo suas músicas favoritas. Não existe a opção de não ouvir. E berros, sempre berros, muito berros. É difícil ouvir o barulho do mar e quase impossível ouvir os próprios pensamentos. Então eu continuo amando a praia – vou todos os dias. Mas, no Brasil, todo mundo berra. E o culto ao barulho é generalizado. Silêncio é visto como um problema a ser resolvido, e o direito de fazer barulho alto é considerado constitucional.

Postei o início desse texto no X e recebi muitos comentários. A maioria concordava comigo. Houve duas exceções: uma das pessoas fez uma referência pouco elogiosa à minha idade, recomendando que me mudasse para um asilo, e outro usou uma expressão de baixo calão. Como grosserias são imperdoáveis, bloqueei os dois – em silêncio. Eu não quero comprar briga com a humanidade e nem fundar nenhum movimento antibarulho. Ao contrário: só quero ser deixado em paz.

Mas a paz, principalmente a sonora, parece ser difícil nessa terra. Em um domingo, há algumas semanas, fui acordado por um coro de gritos desesperados. Não se tratava de nenhuma catástrofe. Era apenas uma maratona. Os gritos vinham de grupos que se aglomeravam ao longo do trajeto e queriam encorajar os competidores. Haja berro.

Não sou nenhum puritano auricular ou xiita sonoro. Sei muito bem que há momentos e lugares em que gritos são justificados ou até necessários. Por exemplo, para alertar alguém de um perigo iminente, para expressar uma alegria imensa ou celebrar um momento extraordinário. Quando o papa João Paulo II veio a primeira vez ao Brasil, em junho de 1980, eu estava no meio da multidão, nas arquibancadas do estádio do Maracanã. Para a surpresa de todos ao meu lado eu soltei um grande berro: “dá-lhe Paulão”. O papa era pop. Essa deve ter sido a minha manifestação religiosa mais enfática até hoje. Mas, se os berros são usados em todos os lugares e em quase todos os momentos, a expressão fica sem sentido.

E não são apenas berros: é o barulho generalizado. Quando visito o meu irmão que mora nos Estados Unidos eu sempre me espanto. Ele mora em uma área urbana, no centro de uma cidade, uma grande capital. O barulho na rua onde ele mora é absolutamente zero. Aqui na minha vizinhança, na República Democrática do Arpoador, o nível de ruído é alto e permanente. É assim em todas as cidades brasileiras.

Não sei como é onde você mora, mas por aqui parece que qualquer evento é motivo para soltar rojões. A vitória do time em algum campeonato, o aniversário de alguém, a chegada de drogas no morro: tudo é justificativa para rajadas de foguetes. Quantas vezes acordamos no meio da madrugada, três ou quatro da manhã, arrancados violentamente do sono por uma sequência de explosões sem qualquer explicação. Quem sofre mais é o Cocada, que sempre leva um susto enorme, pula da cama e corre até a janela, onde fica latindo, expressando sua revolta contra esse barbarismo sonoro, até que tudo se acalme. Às vezes nada se acalma e atravessamos uma noite insone, sujeitos aos caprichos explosivos de alguém cujo conceito de prazer e diversão envolve a destruição da paz alheia. Que tipo de pessoa solta rojões às 3h00 da madrugada no meio de uma cidade?

Outros países que conheço não são assim. O Brasil parece sofrer de um aumento irremediável de desorganização sonora. Isso necessariamente afeta a mente das pessoas. É difícil pensar ouvindo barulho o tempo inteiro. Aliás, a necessidade de ter sempre alguma coisa tocando é indicador de algum problema. Há quem não suporte o silêncio; tem gente que liga a televisão em canais aleatórios só para não sofrer com o vazio sonoro. Estou no outro extremo do espectro: não suporto barulho constante, principalmente quando o barulho não é da minha escolha. Basta um rádio distante, ligado em algum apartamento vizinho, para minha paz ser destruída e a minha atenção severamente prejudicada.

Sou o caçador do silêncio perdido.

Minha hora favorita é de manhã bem cedo, quando caminho na beira da praia com meu cachorro, ouvindo o silêncio que só é quebrado pelo som das ondas quebrando na areia.

Essa é a trilha sonora da eternidade, uma música que vai estar aqui muito depois que os homens tiverem ido embora com todas as explosões e berros.

3 pensou em “TODO MUNDO GRITA: O BRASIL É FEITO AOS BERROS

  1. No Brasil é mais fácil desce mais fundo r ao inferno( mundo inferior) do que ascender ( ao Paraíso Eterno) por isso mesmo. Qualquer gnóstico ou teurgico sabe que o inferno , são as trevas exteriores, o céu só se encontra indo para dentro de nós mesmos, no silêncio onde não há nenhum ruído. Encontramos Deus dentro e não fora de nós.

    A Voz do Silêncio – Helena P. Blavatsky (Edição de Luxo) – Editora Teosófica

    A última obra de H. P. Blavatsky, é um tratado de Budismo tibetano que apresenta ao mundo ocidental a ética do desenvolvimento espiritual para o bem de todos os seres.
    De forma extremamente poética e inspiradora, descreve passo a passo a jornada do aspirante rumo à espiritualidade.
    https://www.editorateosofica.com.br/a-voz-do-silencio-blavatsky-edicao-de-luxo

  2. Moro em São Paulo, a cidade mais barulhenta do país e aqui no bairro onde moro há um hospital (com muitos pacientes , é claro) que convive lado a lado com um estridente e histérico pessoal de um templo de uma religião qq. e um boteco / bar com as mesmas histeria e estridência do templo . Fiscalização da prefeitura ? Zero.

  3. “Postei o início desse texto no X e recebi muitos comentários. A maioria concordava comigo. Houve duas exceções: uma das pessoas fez uma referência pouco elogiosa à minha idade, recomendando que me mudasse para um asilo, e outro usou uma expressão de baixo calão.”

    Nesta comunidade fubânica também tem gente que não gosta do que lê – ou de quem escreve – e se acha no direito de comentar fazendo referências pouco elogiosas à idade de dos outros.

Deixe um comentário para Valter Ego Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *